Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

domingo, 20 de março de 2011

A Primeira Experiência


Eu tinha acabado de dormir quando me expulsaram da cama, jogando a corda de nylon ao redor do meu espírito e me puxando para fora do mundo dos sonhos onde eu estava seguro de todos os fantasmas que tem se feito presente na minha vida.

Não consigo mais dormir de madrugada, isso é fato. Após três meses de transformação, acabei me tornando finalmente uma criatura noturna, em dias de semana só me acordo depois de meio dia, em finais de semana, só depois das cinco da tarde. Mas não porque eu quero, é algo que foi ativado pelo meu organismo, a noite me deixa elétrico, ativo, cheio de coisas na cabeça, para escrever, para desenhar, para fazer. Em outras palavras, meu emprego terá de ser noturno, ou então estarei perdido nessa vida pra sempre. Há duas soluções: trabalhar numa lan house 24 horas ou virar prostituta. Dúvida cruel.

Me vesti da pior forma possível naquela manhã de sexta feira, a blusa mais troncha e a calça mais folgada e desbotada, meti uma sandália velha no pé e me segurei para não carregar a maquiagem, o lápis de olho. Eu estava tentando desesperadamente parecer um menino, eu nem tinha feito a barba, estava em desespero, meu coração louco para saltar pra fora do peito. Me sentia caminhando para a morte!

O que eles vão fazer comigo lá? O que vão perguntar? O que vão exigir de mim? E o meu cabelo, o meu cabelo, o meu cabelo, o meu cabelo, aquilo reverberava dentro de mim como um eco, num instante eu era um vazio profundo e sem vida, coberto por um manto de medo onde ecoava aquela frase "o meu cabelo". E se eles mandarem cortar o meu cabelo?! Eu não sou o mesmo sem o meu cabelo, eu sequer sou metade de mim sem o meu cabelo, é a coisa que eu mais amo no meu corpo, que eu cuido com tanto carinho todos os dias, penteando, escovando, passando cremes e pomadas, reparador de pontas, tudo para que ele fique lindo e lustroso, brilhante sedoso e solto. Quem me conhece sabe muito bem que eu posso entrar em depressão se cortarem meu cabelo, não há outra coisa no mundo que eu ame mais do que ele, é como se fosse um braço ou uma perna! Várias vezes tives pesadelos em que ele caía ou voltava a enrolar, e eu acordava em desespero, à beira do choro.

Você pode achar que é algum tipo de futilidade minha, mas não é. Eu sofri de complexo de inferioridade por praticamente toda a segunda metade da minha infância, desde a separação dos meus pais até os meus 14 anos eu não suportava sequer me olhar no espelho, eu tinha vontade de retalhar meu próprio rosto, eu não me suportava, eu não cuidava de mim mesmo, eu tinha dó, nojo e raiva da minha aparência ao mesmo tempo, só não enlouqueci porque minha mãe sempre foi minha amiga íntima e me confortou muitas vezes, sem ela eu não estaria aqui.

E então eu resolvi alisar meu cabelo. E a minha vida mudou, mudou MESMO. Eu me senti nascendo de novo, me senti outra pessoa, seguro de mim mesmo, me senti como nunca havia sentido antes, eu passei a me admirar e a cuidar de mim cada vez mais, a me amar como nunca havia amado, e isso não só mudou meu interior como meu exterior também! Eu me senti mais à vontade para conversar com as pessoas e isso atraiu grande parte dos amigos que tenho hoje em dia. A sensação de poder que meus cabelos escuros me dão é indescritível. Penso que sem eles, eu sequer teria forças para sair de casa!

Mas então veio os meus 18 anos.

E a maldita quitação com o exército.

E o meu cabelo, e o meu cabelo, e o meu cabelo.

Eu jamais cortaria ele, nem por um milhão de dólares, nada nesse mundo, nenhuma força nessa terra é capaz de me convencer a cortá-lo. Deus sim tem poder sobre isso, mas nenhum homem me fará cortar este cabelo, não senhor. E eu saí de casa com isso na cabeça, e chegando na frente da Junta Militar entrei em desespero ao ver os rapazes todos arrumadinhos, tive de voltar em casa para me arrumar direito: e se eles implicassem com a minha roupa também? Além do mais, restavam os documentos e as cópias para o cadastro, resolvemos isso em alguns minutos, eu e mamãe. Mamãe, sempre do meu lado. Meu Deus, mamãe, sem você eu seria um bosta! Eu jamais saberia como proceder sem você, eu entraria em desespero assim que abrisse os olhos pela manhã. Minha mãe é meu porto seguro, Deus o livre!

E aí eu fui pra fila. E aos poucos fui ficando mais à vontade, os outros rapazes pareciam tão jovens quanto eu, alguns usavam brincos até, e um daqueles que vieram de branco para fazer o juramento à bandeira usava algo semelhante a um rastafari preso num rabo de cavalo. Nossa, senti um alívio enorme naquele momento, e aos poucos fui me acalmando. Coloquei uma música e fiquei observando uma velha rechonchuda fumar cigarro após cigarro feito uma chaminé enquanto reclamava com sua voz roufenha daquela repartição jogada às traças e dos funcionários preguiçosos.

Uma repartição pública idiota como qualquer outra, pensei. E então estava completamente relaxado.

Um rapaz perguntou-me se eu iria me alistar pra servir ou ia pedir a despensa. Eu ri. Por um acaso tenho cara de quem quer servir o exército?

E então chegou a minha vez.

- PRÓXIMO - grasnou a morena fanha com cara de poucos amigos no balcão. Eu me levantei do banco e me aproximei. - alistamento? - perguntou.

Não querida, vim comprar fubá, pensei.

- Sim - disse.

- Certidão de nascimento, cópia da identidade e CPF - fez ela, curta e grossa, num nível extremo de mau humor.

- A-a-aqui. - gaguejei.

Me atrapalhei para pegar os documentos, ela bufou, colocou a mão na cintura, revirou os olhos e fez uma cara azeda, olhou sugestivamente para a velha que abriu a porta do escritório ao lado, logo atrás do balcão. Eu podia jurar que ela estava escarnecendo de mim, eu juro que vi um sorrisinho na cara daquela vadia. Maldita.

- Comprovante de residência - grasnou ela.

Entreguei-lhe a cópia. Ela o analisou como se procurando um único defeito pra chiar. Não o encontrou e pediu o último item de sua lista como se estivesse recolhendo ingredientes para jogar numa espécoe de caldeirão e fazer algum tipo de feitiço contra mim. Aquela vaca.

- Foto três por quarto - pediu.

Entreguei-lhe.

Outra vez vi em seu rosto a expressão azeda. Uma cara de cú, como costumo dizer vulgarmente. Ela mostrou a foto para a velha e apontou para o meu rosto na pequena fotografia:

- As orelhas e a testa tem que estar descobertas. - disse. - PRÓOOOOOXIMO!

E eu fiquei lá parado por um instante tentando entender a situação. Afastei-me para o rapaz que estava na ordem chegar ao balcão e comecei a guardar a papelada. Virei-me para a velha que parecia muito mais simpática e compreensível que a jovem morena com cara de ânus.

- Q-quer dizer que eu tenho que bater outra foto? - perguntei.

- Sim - disse a velha.

- E voltar outro dia? - perguntei outra vez.

- Sim - respondeu. - é.

Todos os rostos daquele recinto estavam voltados para mim.

E então eu saí do prédio.

Completamente confuso, acontecera tudo rápido demais.

E essa foi minha primeira experiência com os militares.... Bom, não exatamente com eles, mas... Bem, você entendeu.


Um comentário:

E então? O que achou?