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segunda-feira, 21 de março de 2011

Capítulo IV – Frederico Mimieux e As Feiticeiras das Montanhas


O Sr. Mimieux rolou para dentro da vala com a filha e arrastou-a para o lado mais fundo da fissura entre o bosque e a estrada. Frederico desviou por sorte da segunda lança e correu para a floresta aos berros de espanto. Atrás dele, vinham seres incrivelmente brancos, usando roupas coloridas e berrantes, cheias de detalhes riquíssimos de renda em seus mantos nas cores do arco-íris. As coisas pulavam de galho em galho, atracavam-se nas árvores e depois tomavam impulso para lançarem-se em direção ao tronco seguinte como macacos multicolores. Rostos inexpressivos por vezes pintados de azul e por vezes usando máscaras tanto maravilhavam Frederico quanto o deixava mais apavorado. As coisas eram silenciosas, os poucos movimentos que faziam para flutuar entre os galhos produziam leves ruídos como a brisa da manhã soturna beijando os ciprestes.
Algumas das criaturas etéreas usavam mantos brancos também, as três primeiras pareciam estar enfiadas dentro de batas de juízes, com todos os babados frontais que se tem direito. Suas flechas eram tão rápidas e tão certeiras que não acertavam Frederico apenas por sorte. Os três seres também usavam coroas, lindas coroas amarelas que lembravam os capacetes dos antigos samurais do Japão feudal, tempos remotos e distantes do oriente, tempos de lendas e assombrações, de batalhas às cegas e assaltos furtivos nas matas. Era exatamente este sentimento que Frederico tinha ao ser perseguido por aquele bando de monstros. Eram sete no total, sete criaturas vestidas em panos exuberantes, luxuosos, riquíssimos em detalhes, cores e formas. Umas tinham rabos, outras tinham orelhas, e algumas até asas, asas de pano e lã. Máscaras de crochê.
Antes de alcançar a encosta da montanha, Frederico atingiu um campo aberto, um campo cinza e pedregoso de monumentos e monólitos pontiagudos e cheios de escrituras antigas, o tesouro que seu pai tanto procurara há minutos atrás antes do ataque daquelas harpias saltadoras.
Assim que o rapaz atingiu o meio daquele campo, o desespero o acertou em cheio como um trem descontrolado nos trilhos: as coisas voadoras o pegariam exatamente ali, num lugar descampado, desprotegido, sem árvores, sem uma caverna ou um arbusto para se esconder. Mas, para sua surpresa, ao virar-se para trás, deparou-se com uma cena intrigante, e muitas coisas lhes foram reveladas:
As criaturas que o perseguiam nada mais eram que belas mulheres fantasiadas, empunhando espadas, adagadas, lanças e arcos de flechar. Vestidas em sua lã, sua seda, seu algodão e seu crochê, usando chifres, coroas e máscaras, rostos pintados ou enrolados em tiras de gaze pintadas em tribal, as “amazonas” por assim dizer estancaram no exato limite entre o descampado de pedra e as árvores da floresta calada.
- QUEM SÃO VOCÊS?! – gritou Frederico. O eco da sua voz sacudiu as paredes ao seu redor – QUEM SÃO VOCÊS?! – ele gritou novamente. Não houve respostas. Elas eram manequins enfeitando vitrines selvagens.
- Biz die cadılar, fırtınalar ve rüzgarlar kızları üfleme bu topraklarda yıllarca sessiz durduruldu sizi çevreleyen dağların sahipleri var! Killer spektrumları olanlar, işgalciler nefret edenler Dağlar Korkutucu tarafından 300 yıldır mücadele edildi!
- Mas que diabos de língua é essa... – resmungou Frederico para si mesmo.
- Bü Türk’s – gritou um dos espectros. Frederico surpreendeu-se com a voz do que até há alguns segundos era apenas um monstro – É turco!
- E porque vocês não falam comigo em português?! – gritou ele de volta.
Fez-se grande rebuliço entre as criaturas. A que havia respondido tornou a falar:
- Tua língua é proibida na nossa terra, humano, estas montanhas se calaram no exato momento em que ouviram a voz do homem pela primeira vez. A floresta prendeu sua respiração e os Espíritos de Olhos Amarelos que servem a Ousama trouxeram aquele a quem tu chamas de pai para calá-la!
A ordem dos fatos estava invertida, mas Frederico entendera exatamente o que havia acontecido. A sombra que ele vira no banco do cobrador era um ser, um ser representante de um povo que agora monopolizava o poder naquela cordilheira. Estes seres trouxeram seu pai para a floresta a fim de calá-la, pois esta, por algum motivo, não gosta da voz dos humanos.
- E porque eles trouxeram a mim e a minha irmã para cá?! – gritou Frederico – o que eles querem, o que VOCÊS querem?!
Mais rebuliço. A mulher respondeu de novo:
- Eles sabem que vocês têm o sangue! O sangue do Rei dos Monstros corre nas veias dos três, o sangue que cala a cordilheira inteira, sangue que será derramado em nome de Ousama na noite da lua vermelha, daqui há duas Coronas. Nosso mundo cairá no abismo, e então o grande terremoto sacudirá as terras do outro lado dele, e os que possuem cornos brotarão da terra como erva daninha, permeando o teu mundo de norte a sul. A nova era irá começar.
- E para isto eu e a minha família temos de morrer?! – esbravejou Frederico, revoltado.
- Não, só tu vais morrer, porque tu és o cordeiro desta oferenda! – respondeu a bruxa – nascestes com o único objetivo de morrer para que uma nova era reluza como um novo sol... Mas se tu morreres antes, a profecia jamais se cumprirá, e o teu mundo jamais sofrerá a Grande Calamidade do começo da Era dos Monstros. Nós, as Feiticeiras Mascaradas das Montanhas repudiamos aos Monstros e aos Humanos, sendo que não fazemos parte nem de uma raça nem de outra, e não permitiremos jamais a união do nosso mundo com o teu! Auriel é como as sombras chamam a esta cordilheira! Este nome nos ofende!
- Então porque vocês não vêm até aqui para me matar?! O QUE ESTÃO ESPERANDO?! – urrou Frederico em resposta, sua voz estava ficando mais alto, e suas lágrimas escorriam cada vez mais sorrateiras e aos montes.
- Este lugar que pisas não faz mais parte do nosso domínio... Tanto que nem as árvores aí cresceram... – ela silenciou por alguns segundos – o solo que pisas é amaldiçoado, é onde os discípulos de Ousama arrebentaram as gargantas de cem porcos em nome de seu rei tirano!
- Mas porque eles fizeram isso?! Qual o objetivo de tanto derramamento de sangue?! – exclamou um Frederico, pouco mais calmo, ainda preocupado com o estado de seus familiares. Teria seu pai sido atingido por alguma flecha ou sua irmã cortada ao meio por alguma lança? Aquela ideia medonha revirava seu jovem estômago de pernas para o ar como se um estorninho estivesse debatendo-se preso nos cordões de tripa ocultos por sua barriga musculosa e lisa como a pele de um bebê.
As feiticeiras gargalharam por trás de suas máscaras de crochê, seus elmos de metal, suas bandagens e vendas.
- Do que estão rindo?! Do que estão rindo?! – Frederico tornou a elevar sua voz.
- De ti, bobo! De ti! – disse a única bruxa que falava a língua dos homens, seu nome ela Kärla, a Caçadora, tinha os cabelos escuros e compridos, brilhantes como as mechas de uma sereia legendária, sua pele perolada misturava-se num balé perfeito com as cores da sua túnica, do seu manto branco rendado, mais lembrava um fantasma do que um ser humano, uma assombração vestida para o carnaval veneziano. – tu não sabes? Não sabes que o maior desejo de Ousama é virar gente? Não sabes que só sangue o libertará da forma monstruosa em que se encontra?
- Claro que não! Eu não vivo aqui! Eu não moro aqui! Eu nem deveria estar aqui, eu deveria estar em casa! – chutou um dos monólitos com força, este inclinou-se e caiu, espatifando-se em meio aos cascalhos, partindo no meio. As feiticeiras olharam estarrecidas àquela cena, silenciosas, apavoradas.
- Tu acabaste de te condenar, humano! Eles estão vindo! – fez a feiticeira, tomando uma atmosfera tenebrosa para si mesma. Uma leva de vultos fantasiados saltou por entre as árvores numa rapidez sobre-humana, sumindo em meio às folhagens como macacos coloridos sem nenhum ruído sequer, assombrações das matas que eram.
- Eles quem?! – exclamou Frederico – ELES QUEM?! – urrou, seu urro ecoou pela cordilheira. Em resposta, um uivo gorgolejante e gutural foi ouvido de norte a sul naquelas terras esquecidas e obscuras, e cada ser oculto pelas sombras contorceu-se de pavor, os cadáveres das feiticeiras mais velhas congeladas e conservadas pelo gelo dos cumes mais altos das montanhas contorceram-se em suas covas ovais de pedra.
- Os servidores de Ousama... – sibilou. E partiu, praticamente evaporou, desapareceu como surgira, num passe de mágica.
O silêncio era mortal, com toda a certeza Frederico estava longe demais da estrada para correr até lá e procurar por sua família, mas havia um frio e um medo, quais ele nunca havia sentido como sentia naquele momento, e aquilo congelava-o dos pés à cabeça, e mantinha cada músculo retesado e esticado abaixo da sua pele, impedindo-o de se mover. Era pavor, puro pavor, como se o próprio diabo o estivesse abraçando, uma presença maligna estava tomando forma ao seu redor, ela era quase palpável, ele poderia esticar a mão e tocar no mal, se pudesse.
A fumaça negra começou a escapar do chão aos poucos, tímida, como se o inferno estivesse queimando abaixo dos pés de Frederico, mas assim que aquela densa névoa negra alcançou suas narinas, seu estômago já fragilizado de medo deu a volta completa numa pirueta mortal. Aquilo fedia, fedia como uma montanha de cadáveres em decomposição, a mão escura e oleosa que esticou-se para fora dos cascalhos feito uma pata de aranha agarrando seu tornozelo foi o beliscão para o seu despertar. O que ele estava fazendo ali?!
- Você está bem, Amélia? – o pai apalpava os ombros e os braços da garota com calma, os dois haviam se arrastado para fora da vala como rãs gordas e preguiçosas, e agora se limpavam da sujeira, retirando folhas e galhos das roupas enquanto limpavam a terra de seus rostos e traseiros.
- Estou, estou bem... – respirava com dificuldade enquanto seus olhos espertos vasculhavam a área, nem sinal de monstros fantasiados, nem de arcos e nem de flechas. O ar continuava frio e parado como sempre fora.
- CORRAM! CORRAM! – os gritos de Frederico ecoavam dentro da densa floresta, pareciam vir de todas as direções, era como se a montanha estivesse falando, berrando, avisando do perigo iminente.
- FRED! FRED! – Amélia livrou-se dos braços do pai e correu floresta adentro. Os gritos pareciam muito distantes, ela não sabia de que direção vinham, estava desesperada.
- NÃO, AMÉLIA! – exclamou o Sr. Mimieux, logo às suas costas, perseguindo a filha numa corrida alucinada desviando de troncos, pedras e arbustos espinhosos.
- AMÉLIA, VOLTA! VOLTA! – Fred surgiu ao fundo da paisagem, rodando seu braço direito no ar, expulsando a irmã da mata, vinha correndo em desabalada carreira, saltando por sobre os obstáculos como um verdadeiro atleta – FORA! FORA DAQUI! OS DOIS! CORRAM PARA CASA! PARA CASA!
- FRED! FRED! – Amélia ignorava os gritos do irmão e do pai, continuava indo ao encontro do rapaz a toda velocidade.
- AMÉLIA, VOLTA! – rugiu o Sr. Mimieux logo atrás, tentando a todo custo alcançar a garota. Os dois caíram juntos, Mia tropeçara numa pedra e seu pai tropeçara sobre ela, e só caídos e de pernas pro ar puderam ver do que o irmão Mimieux mais velho fugia. Uma fumaça negra vinha logo atrás, a toda velocidade, repleta de braços e pernas escapando-lhe por entre as densas nuvens enquanto olhos amarelos nervosos e fora de órbita giravam tontos pra lá e pra cá, era uma imagem grotesca e assustadora. Amélia gritou e levantou-se de imediato, puxou o pai pelo colarinho com uma força que ela nem sabia que tinha e correu. Correu como nunca havia corrido, aos berros, as lágrimas escorrendo e se espalhando pelo musgo do caminho conforme o percurso. Em pouco tempo, a Família Mimieux corria lado a lado, para fora da floresta, para a estrada, com uma nuvem negra amorfa e viva logo atrás, teimando em persegui-los, na tentativa de engoli-los.
Agora não era só Frederico que tinha uma mão negra apertando seu coração com força, seu pai e sua irmã também temiam pelas suas vidas como nunca temeram antes. O ser humano teme o desconhecido como jamais há de temer outra coisa neste ou em outro mundo, e aqueles três seres perdidos na cordilheira desconhecida eram a prova disso, a prova de que estamos a mercê dos nossos medos e das nossas inseguranças. Nas piores horas as pernas falham e os joelhos não se permitem dobrar para dar o impulso, nas piores horas o cascalho cinzento da estrada não parece tão unido quanto antes, as pedras embaixo dos pés estalavam e reclamavam, se esfregando umas nas outras, provocando tombos repentinos em meio à fuga. Era como correr sobre bolinhas de gude, elas encostam umas nas outras e rodam e giram embaixo da sola dos sapatos, te fazendo escorregar e cair.
- A casa! A casa! – urrou o pai, apontando para a clareira que já despontava na vista. E eles não haviam corrido nem três minutos sequer! Ao sair de casa haviam andado por mais ou menos uma hora para chegar àquele lugar estranho onde encontraram o artefato em forma de mão com o olho no centro! Os irmãos Mimieux finalmente viram que o pai falava a verdade, aquele lugar era completamente anormal.
A luta pela vida foi acentuada na subida da ladeira que levava à clareira, se era difícil descer dali sem escorregar, imagine então subir, correndo àquele monte de seixos e cascalho soltos. Era impossível!
Foi então que Amélia soltou um berro de rasgar a parede dos tímpanos. Frederico olhou para o lado e viu a irmão rolar ladeira abaixo como numa esteira, indo em alta velocidade em direção à uma boca negra cheia de dentes brancos que se abrira em meio à fumaça. Para seu espanto, um vulto cor de madeira surgiu no céu. Era um pássaro gigante, uma versão enorme daqueles pequenos passarinhos que fazem ninho nas calhas da casa, daqueles que cabem na palma da mão. Capturou Amélia pela perna e a lançou no centro da lareira, sumindo da mesma forma que apareceu, por entre as árvores, sem deixar sinal.
Aquilo foi tão perturbador que Frederico e seu pai ficaram sem palavras perante tal absurdo, e quando mal deram por si, já estavam no topo da ladeira, com a fumaça negra cheia de braços e pernas logo atrás.
- PEGUE SUA IRMÃ E ENTRE NA CASA! RÁPIDO! RÁPIDO! VAMOS! – urrava o pai no ouvido do garoto. – NADA PODE ENTRAR NA CASA, NADA DE FORA PODE ENTRAR! NADA!
Em uma fração de segundos eles já estavam em frente ao portão fechado, abrindo-o com violência e lançando-se sobre o pátio de azulejos azuis. Por incrível que pareça, a fumaça envolveu a casa como um enorme polvo abraça a vítima no fundo da bacia de corais, mas não entrou pelas frestas das grades. Milhares de olhos se abriram no escuro e ficaram maiores, maiores, grandes como bolas de basquete e estouraram num mar de sangue que tingiu a fumaça de vermelho e a dissipou como mágica. Logo parecia que ela jamais havia existido. E todo o medo deu lugar ao alívio dos irmãos Mimieux.



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