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domingo, 27 de março de 2011

Capítulo VI – Frederico Mimieux e o Buraco na Sebe


França, 1997.


- A casa da vovó é bem grande, meninos, vocês vão adorar! – disse a doce voz da mulher sentada no banco do passageiro. Aquela voz sempre era tão sonora ao ouvido das crianças! Soava como uma cascata de mel escorrendo sobre lírios brancos perfumados. Em pensar que a mãe deles já fora cantora há tanto tempo atrás, pulando as janelas da casa dos pais em alguma cidadezinha do interior da França para ir cantar nos clubes noturnos! E quanto sucesso Amelie fazia, a cantora mascarada que nunca revelava sua identidade! Ela fora um mistério e tanto para os jovens e seus hormônios aflorados naquele tempo. Agora ela era só mais uma moça envelhecida de cabelos e seios fartos e de poucos luxos. Mesmo assim ainda tinha os trejeitos elegantes de duquesa daqueles tempos. Aquilo encantava o casal de crianças, frutos de seu ventre, nascidos das fugas noturnas pela janela, eles a enxergavam como muito mais do que uma rainha, uma verdadeira deusa apoteótica e inexorável. Que ser maravilhoso sua mãe era!

- Lá tem jardim? – perguntou a pequena Amélia que era mais vestido do que menina. Sua roupinha cheia de laços e babados mais lembrava uma barraca, e ela tinha a leve impressão de que poderia recolher sua cabecinha de cabelos negros e escorridos para dentro de seu casco de pano exatamente como as tartarugas faziam se caso ficasse envergonhada ou se sentisse ameaçada. Poderia morar dentro daquele vestido se quisesse!

- Tem sim meu amor, tem um jardim enorme, cheio de flores pra você fotografar e com uma grama verdinha onde você pode deitar e rolar sem se sujar! – riu a voz de sino da mãe. – eu passava tardes inteiras do mês de maio escondida embaixo dos arbustos e das sebes, caçando sapos e pequenos roedores, eu adorava!

- SAPOS! – Frederico finalmente se manifestou. Estivera preso, hipnotizado pelo campo que passava voando pela janela do carro, admirando as vacas e as casas do infinito verde que era o campo do interior da França. – podemos caçar sapos se quisermos, mamãe?

- Claro que podem! – riu outra vez. – desde que não vão muito longe, a propriedade é enorme! – esticou sua mãozinha gorda de unhas bem feitas para trás e fez um gesto, pedindo que o filho se aproximasse – vem cá meu bem, meu anjo, minha delícia!

Frederico deu uma risadinha e se atracou nas costas do banco do carro, abraçando a mãe pelo pescoço.

- Ah! Meu Deus! Nossa Senhora nos proteja! – fez ela, teatral. – olhe querido! Olhe Dimitri! Um sapo gigante! Ele está me atacando Dimitri! O pai que se mantivera calado esse tempo todo, olhos fixos na estrada, finalmente se manifestou.

- Jogue-o para fora da janela, Amelie! Jogue! – gargalhou. – ele pode ser venenoso!

- Sou eu mamãe, não seja boba! – disse a vozinha fina de Frederico, com um sorriso enorme de orelha a orelha, seus dentinhos de bebê ainda brancos e separadinhos, sua boquinha cor de rosa brilhante e úmida, era um pequeno querubim.

- Ora, seu moleque! Você nos enganou, agora vai ter que pagar! – fez-se um silêncio mortal, ela puxou o filho para o colo, no banco da frente. – COM MUITOS BEIJINHOS!

Fred gritou e começou a se contorcer enquanto a mãe lhe salpicava de estalos agudos com os lábios.

- EI, EI! EU POSSO SER UM SAPO MALVADO TAMBÉM, ME BEIJEM! – Amélia pôs-se de pé no banco de trás do carro, tinha apenas três anos, mas se comportava como se tivesse cinco, agarrou o cabelo da mãe com sua mão de boneca. O pai parou o carro, pegou-a e colocou no colo.

- Pronto, minha querida, vamos dirigir juntos! – fez ele, apoiando as mãozinhas de Amélia no volante. A garotinha deu um gritinho de sabiá e bateu palmas de felicidade. Assim se fez o caminho até a cidadezinha onde a mãe de Amelie morava, seu pai havia falecido há algum tempo.

A casa era simplesmente um palacete branco perolado repleto de enormes janelas de vidraça com um brilho azul celeste maravilhoso, talvez por refletir a cor do céu francês naquele verão. Era exatamente como mamãe havia dito, pensaram as crianças, um pedacinho do paraíso escondido, uma parte do país das maravilhas onde Alice havia se perdido por imprudência. A casa principal era cercada por uma sebe alta de dois metros de altura, com folhas de um verde escuro brilhante e lustroso. Do lado de fora da sebe havia também uma cerquinha branca muito bem pintada onde rosas cresciam se entrelaçando por entre a madeira. Flores grandes gordas e brilhantes irradiavam seu brilho divino aqui e ali entre os arbustos de morango, framboesa, amora e cereja silvestre. Que lindo! Que belo lugar era aquele!

No meio do jardim havia uma mesinha branca com um enorme guarda sol vermelho e branco enfiado bem no meio, ao redor havia cadeiras de metal centenárias feitas em arabescos e curvas sinuosas e elegantes, seus pés eram patas de leões. Atrás do palacete de teto azul composto de várias e pequenas torres amontoadas aqui e ali sobre a base do casarão havia um pequeno bosque de carvalhos frondosos onde coelhos espertos brincavam. Mais pra longe ficava a baia e mais adiante o celeiro. A plantação de uvas ia campo adentro perdendo-se de vista enquanto o pasto era pequeno, mas consideravelmente grande. As vacas davam leite o ano inteiro!

- MAMÃE! – gritou Amelie, abrindo a porta do carro com violência, saltando para a grama e correndo em direção à velha senhora rechonchuda recurvada, de cabelos branco-acinzentados salpicados de mechas pretas. Era uma vovó de conto de fadas! – venham crianças! Desçam! Venham conhecer a vovó!

Tímidos, eles desceram um após o outro. Sendo que Amélia foi preciso carregar no colo, de repente sentiu-se apavorada sem quê nem por quê. Talvez fosse um tanto xenofóbica, medo de estranhos. Mas isso era comum em crianças da idade dela. Ela não deveria nem falar com tanta coerência! Era muito adulta pra idade dela.

Frederico não precisou de ajuda, abriu a porta de trás do carro e correu como um foguete de macacão listrado e suéter azul até as pernas da avó, abraçando-as.

- Oh, mon petit prince! – disse a velhota, agachando-se e beijando-o com carinho enquanto passava a mão em seus cabelos escuros que à luz do sol da manhã tinham uma certa tonalidade castanho-dourada. Ela tinha razão, ele era um príncipe! Naquela época, o único da família que falava português era o pai. Brasileiro, havia vindo de muito longe e por um acaso caiu justamente ali, naquela cidade secular onde conheceu a cantora mascarada por quem se apaixonou perdidamente.

Eles entraram, sentaram-se, comeram bolo, tomaram leite e chá, reviraram álbuns velhos de foto e abriram presentes. Cada um havia trazido algo de diferente para a vovó Marie. Ela era uma senhora de idade que adorava ser mimada, amava receber presentes e gostava de dizer o quanto a vida era boa ali. Seus outro quatro filhos, os irmãos de Amelie, todos homens, a esta altura estavam na cidade grande, mas quando não tinham contas a pagar ou documentos a assinar, estavam na lavoura ou no pasto cuidando da plantação e dos animais, eram homens sérios e respeitáveis, de poucos amigos, mas muito carinhosos. Amelie não os via há anos, e não seria daquela vez que iria vê-los. Moravam em casas próximas, mas separadas, e vinham para a fazenda todo dia de manhã.

- Mamãe, queremos brincar! – fez Amélia, puxando a barra do vestido da mãe.

- Vamos para o jardim, meus amores, assim esses danados não me quebram as porcelanas! – riu a velhota, levantando-se para abrir a janela-porta que dava para a varanda branca bem iluminada de onde descia à escada direta para o gramado. As crianças passaram na frente e correram como pequenos gatinhos felpudos para caírem na grama e rolarem aos risos. A vovó Marie deu uma risada gostosa e indicou à filha e ao genro a mesinha coberta pelo guarda-sol.

Assim se passaram as horas. O meio do dia chegou e uma farta mesa foi servida por uma empregada risonha chamada Veronica, era uma mulher baixinha, branca, de olhos muito grandes e coque no alto da cabeça, era búlgara ou bávara, algo do gênero. As crianças sequer olharam para a mesa cheia de comida, não estavam com fome, estavam rastejando embaixo das moitas e dos arbustos, sujando suas roupas novas com vontade, brincando na terra e colhendo pedrinhas, frutos e folhas de formatos estranhos. Brincaram de pique esconde e pega-pega, depois fingiram ser príncipes de um reino distante e aquele era seu reino. Depois Amélia fingiu ser Alice perdida no país das maravilhas e Frederico, o gato risonho, deitado de bruços em cima de um banco coberto de folhas secas dos carvalhos aos fundos. Eles estavam cada vez mais longe da mesa dos adultos, desbravando os jardins infinitos da casa da avó. Em uma semana estariam no Brasil para morar, e nunca mais voltariam ali. Pelo menos não tão cedo.

- Preciso ir ao banheiro – sussurrou Amélia para si mesma. Mas Frederico ouviu, e ficou olhando para a menina ficar vermelha e sair correndo para perturbar a paz da mãe. Ele ficou sozinho por muito tempo, parado de pé ao lado da sebe, no canto mais distante do jardim, onde as coisas eram meio sombrias e o cheiro de terra era mais forte, talvez pela proximidade da floresta de carvalhos. Ali a sua frente havia um lampião e um banco de pedra, mais ao longe havia uma pequena construção sustentando um teto pontiagudo azul, ele se esquecera o nome daquilo no momento, mas já vira bandas de trompete e violino tocando ali dentro em casamentos nos filmes que assistia. As sombras das árvores ali eram mais densas e o vento mais forte, o aroma das flores era gelado, para uma criança isso dava arrepios, mas nele causava uma estranha sensação de descobrimento e aventura. Decidiu explorar a área sem a irmã, estava demorando demais.

Andou por entre os arbustos, sozinho, encontrou objetos largados no chão e coisas estranhas, como um pingente dourado em forma de mão com um olho no centro. Guardou aquilo no bolso, adorava coisas estranhas, e aquilo realmente era estranho, tinha todo um mistério envolvendo aquilo, e quando Amélia voltasse eles poderiam fingir que aquilo era um amuleto mágico que servia de porta para um outro mundo, olha que maravilha! E em pensar que sua imaginação estivera quase acabando há pouco tempo! Logo eles estariam entediados, porque a tarde ia longe e a conversa dos pais com a avó também, daqui há pouco seria hora de explorar o palacete e vovó não iria gostar muito da ideia daquelas mãos sujas nas suas paredes incrivelmente brancas.

Então algo se moveu na sebe, atrás dele. Ele caiu sentado de susto e virou-se para ver do que se tratava.

Havia uma passagem ali, uma passagem que não estava ali antes. A sebe parecia ter rachado no meio, abrindo um arco perfeito para a floresta de carvalhos. Dali vinha um vento frio, gelado, causando calafrios no pequeno Frederico, porém seus olhos estavam fixos ali, fixos naquele uivo de vento, naquelas folhas que vinham voando numa corrente de ar fortíssima que brincava com suas mechas escuras como a água do mar brinca com as algas marinhas.

Ele deu dois passos em direção à passagem, mas recuou por causa de um uivo mais forte e assustador. Estava com medo, e aquele medo só o instigava mais, lhe dava vontades, lhe causava um formigamento e um frio no estômago que nunca havia sentido. Era adrenalina. Era vontade de descobrir, de atravessar, de encarar o desconhecido, uma criança curiosa explorando aquele mundão vasto! Ele se sentiu um cavaleiro ao atravessar a passagem com coragem e chegar do outro lado vivo, dentro da floresta de carvalhos e suas raízes grossas protuberantes da terra, escapando do chão como serpentes duras e escuras retorcidas na superfície e paradas no tempo feito fósseis ancestrais. O vento frio só aumentava mais, logo ele iria espirrar, precisava de um casaco! Em pensar que o dia estivera tão quente mais cedo, tão quente que foi capaz de fazer seu cabelinho grudar na testinha branca suada!

Uma vaca mugiu longe e o vento contrário trouxe a voz de sua mãe, a gargalhada gostosa dela. Ele olhou para trás, para a passagem, ela ainda estava lá. Por um momento as vozes de seus conhecidos lhe passaram segurança e força para seguir adiante, coragem, eles estariam logo ali atrás caso alguma coisa acontecesse, e viriam correndo, não o deixariam. Foi com essa iniciativa que Frederico iniciou sua longa caminhada, topando com patos selvagens, uma família de esquilos, pássaros de todos os tipos e bichos que ele nunca havia visto nem em livros, mas que eram fofos e curiosíssimos. Sua respiração era profunda, seus olhinhos infantis, arregalados de curiosidade, e seu coração batendo à mil. Ele sorria a cada nova descoberta.

E então o vento parou, a floresta ficou estranha de repente. Parecia não haver sol nem animais ali perto. Nem insetos voando ou pássaros cantando. As árvores pareciam ter prendido a respiração. Mesmo assim ele continuou a caminhada, olhou para trás e viu ao longe a passagem da sebe de onde escapavam raios de sol dourados tremeluzentes, onde as árvores e os arbustos ainda se mexiam com a força dos ventos franceses. Que delícia de lugar era o sítio da vovó! Ele deu mais um passo para frente, e pisou em pedras! Pedrinhas de lago! Que ótimo! Havia um lago escondido ali!

Abaixou-se então e pegou aquelas que mais lhe agradavam em aparência. Eram todas pretas ou cinzas, de diferentes formatos e tamanhos, seixo liso e gelado. Guardou-as no bolso e voltou a andar. As árvores estavam se abrindo e o sol voltara a brilhar. Ora, não havia um lago, mas uma clareira! Uma clareira cinza e seca! Teria o lago secado?

Olhou ao redor para se certificar de que estava seguro e deu mais alguns passos para fora da floresta, a clareira era bem arejada e geladinha, o lugar perfeito para um piquenique saboroso com a família. Se lembraria de avisar a mamãe e ao papai para conhecerem aquele lugar maravilhoso!

Mas havia algo estranho ali. Ele não estava sozinho. Havia um sapo, um grande sapo verde de olhos amarelos e pupilas horizontais, o encarando no meio do capim, sério, sua papada descendo e subindo num ritmo preguiçoso e asqueroso. Ele adorava aquilo. E como o sapo era grande! Onde estava a máquina fotográfica agora?

Do outro lado da clareira, após o capim e o sapo, havia uma casa, uma casa linda e amarela da cor do pão que saíra há algumas horas de dentro do forno da vovó, e havia também um poste com um braço de metal pendendo uma enorme lâmpada, que estava apagada. Logicamente, era dia.

A casinha era linda e amigável, borboletas amarelas voavam ao redor dela tornando-a mágica. Suas janelinhas marrons gradeadas e seu portão de ferro preto a tornava o lar perfeito para um solteiro. Seria o caseiro da vovó dono daquela casa? O sapo coaxou. E no meio daquele silêncio seu coaxar alto retumbou na clareira e ecoou numa cadeia de montanhas. Sim, ele estava nas montanhas! Olha o pico cinza que se erguia detrás da casa, após a floresta! As nuvens passavam brancas lá em cima, sérias demais.

Frederico Mimieux não se lembra exatamente como voltou à sebe, lembra-se de ter virado para trás e encontrado a passagem diante dele, lembra-se de ter voltado sua cabeça para a frente e não haver mais clareira, nem casa, nem sapo. Foi uma experiência estranha que ele repetiu e repetiu durante dias a fio aos pais, à avó e também à irmã. Os primeiros riam e o beijavam as faces, dizendo que ele havia imaginado tudo aquilo em uma das suas brincadeiras solitárias enquanto a pequena Amélia estava no banheiro. Mas ele tinha certeza do que tinha visto. Certeza absoluta.

- Eu já estive aqui. – disse Frederico ao pai e à irmã, observando aquele mundo estranho da janela da casa.


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