Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

domingo, 25 de março de 2012

PARTE DOZE: CRUZEIRO ESPACIAL DELTA!


- Temos de sair daqui. Agora mesmo. – Hikikomori olhou de soslaio para os portões fechados na escuridão às suas costas. O chão da câmara estava coberto por uma camada de muco verde fluorescente e tripas, as entranhas do Vigia estavam espalhadas por todo canto. Órgãos alienígenas e tripas longas transparentes exibiam seu conteúdo repugnante numa amostra de horrores que se refletia nos cristais espelhados do chão e das paredes. – há uma horda de androides a caminho! E eles estão praticamente aqui dentro!

- Não podemos sair daqui sem tirar aqueles dois dali de cima! – Fábia apontou seu báculo para o alto, muito acima da sua cabeça.

- Abaixe isso, por favor! – a Sybila sobressaltou-se e esticou as mãos em direção à garota fazendo um gesto nervoso para que ela descesse sua arma singela. Fábia deu de ombros, confusa, e guardou seu báculo de coração alado no cinto puído das suas calças desgastadas.

- Porque temos de sair daqui com tanta pressa? Pensando melhor, não gostaria de andar pelado por aí... – Christopher puxava a barra da jaqueta para baixo esticando-a ao máximo para que cobrissem tudo o que pudesse estar de fora.

- Estamos numa caverna, Chris, me poupe! – exclamou Pietro revirando os olhos e jogando os braços pra cima – você está com vergonha de quem? Das lesmas? Acho que todos nós aqui já vimos mais do que queríamos!

O Professor só ficou mais encabulado. Não havia maneira de chegar até a gaiola central a não ser escalando pelas paredes, enfiando os pés e as mãos nas falhas entre os cristais afiados, o que era uma situação no mínimo perigosa que renderia lembranças nada agradáveis marcadas direto na pele! Não havia outra saída a não ser esta, veio a calhar descobrir que as tripas do monstro eram recobertas por uma película ultra resistente que serviu mais do que bem como protetor para mãos, braços e joelhos. Cortá-la em pedaços não foi difícil para a lâmina da foice, a parte mais complicada de todas foi a escalada, que mesmo auxiliada por protetores improvisados rendeu rasgões nas roupas e arranhões superficiais nos rostos, nas barrigas e nas pernas.

A subida mais complicada foi a de Christopher, é claro, que por decisão unânime teve de ser o último na fila da escalada por motivos óbvios... Já no alto, usaram as gaiolas mais próximas às paredes como ponto de partida no caminho rumo à gaiola maior, saltando de uma gaiola menor a outra feito macacos brincando no cipó. Foi assim que eles costuraram pela escuridão até o alto do cativeiro que mantinha Ray Ann e o príncipe Alado reféns. Lá próximos, Christopher passou à frente para usar a lâmina da foice nas barras do gradeado, que para seu espanto cederam passivamente ao atrito do fio de corte, foi como cortar manteiga, não houve sequer barulho de metal contra metal, os golpes sequer soltaram faísca. Em dois minutos, o Apocalipse Club inteiro estava dentro da gaiola de Alado.

- Muito obrigado, príncipe – o Professor Umbrella se curvou várias vezes, encabulado, em direção ao príncipe após vestir as calças que ele havia lhe emprestado. Uma das poucas peças de roupa que tinha disponível fora uma túnica branca cheia de detalhes azulados e a tanga esfarrapada que utilizava no momento.

- Não se curve, Cavaleiro – sorriu Alado, colocando a mão sobre o ombro de Christopher antes que ele pudesse se inclinar pra frente mais uma vez – eu é quem deveria estar agradecendo. Agradecendo pelo seu coração puro, e pela bravura dos seus escudeiros, pelo companheirismo. Vocês realmente voltaram para buscá-la. Confesso que cheguei a duvidar que isto fosse acontecer e imploro por perdão – o príncipe pôs um joelho no chão e apoiou-se sobre um único pé, reverenciando o grupo abaixando a cabeça lentamente.

- Bom, eu prometo não me curvar mais se você também não se curvar! – Chris ajudou-o a levantar-se.

- Agora rápido, vocês tem que sair daqui. – o príncipe pegou as mãos de Ray Ann delicadamente e a puxou para frente, incluindo-a em seu grupo de origem mais uma vez. – os androides estão praticamente nos portões e são indestrutíveis, vocês não terão chances contra o exército inteiro.

- Como... Como assim Alado?! – exclamou Ray desvencilhando-se das mãos dele gentilmente – você não vem conosco?

- Eu não posso sair daqui, eu não posso deixar o meu povo! –lágrimas brotaram dos olhos dele – e eu não posso deixar... ela.

Ray revirou os olhos.

- Você PRECISA deixá-la! – esbravejou a garota, o restante do grupo não estava entendendo muito bem o que acontecia, mas observava em silêncio respeitoso – ela te mantém em cativeiro, não te deixa ficar com a tua família, te trata como um bichinho de estimação te mantendo nessa gaiola o tempo inteiro! Você sequer sai para um passeio, tinha de driblar o Vigia para esticar as pernas lá fora! Você nem conhecia o seu pai até um tempo atrás, teve de fugir para conhecê-lo! Alguém que te ama faria isso com você? Alguém que te ama te manteria preso, sem amigos? Você realmente acha que alguém que te ama faria isso? – lágrimas brotavam dos olhos da garota em cascata, umedecendo as bochechas furiosas coradas. – PENSE NISSO!

Alado mantinha-se cabisbaixo ouvindo o sermão.

- DIGA ALGUMA COISA! – desta vez ela urrou, e o eco da sua voz reverberou violentamente contra as paredes da caverna.

- Eu... Eu não... Você... – ele respirou fundo e ergueu seus expressivos olhos violeta para a garota. Ali ela percebeu verdadeiramente o quanto ele era belo e atraente, seu coração palpitou – você foi a coisa mais próxima que eu tive de uma amiga em todos estes ciclos... – aproximou-se de supetão e abraçou-a com força. Seus ossos de passarinho machucaram-na um pouco, e ela se viu surpresa com aquele gesto inesperado. Antes que ela pudesse dizer algo, ele se afastou e segurou suas mãos entre as dele amorosamente – mas eu não posso partir, não posso deixar pra trás a única vida que conheço. Eu não saberia viver sem ela, eu não sobreviveria lá fora. Ela cuida de mim, acredite, ela só quer me proteger.

- Alado... – Ray fechou os olhos e virou o rosto para engolir a revolta. Antes de ela abri-los novamente, a pancada surda invadiu seus ouvidos e num momento Alado estava caído ao chão. Pietro havia o acertado na cabeça com o bastão de Fábia. Hikikomori deu um berro, e foi extremamente estranho vê-la gritar, ela que vivia sussurrando e mantinha uma postura categórica controlada o tempo inteiro. Pietro então jogou o magricelo sobre seus ombros largos.

- CHEGA DE LENGA-LENGA E VAMO DÁ O FORA DAQUI! – começou então a escalar as barras da gaiola para sair através da abertura feita no alto pela lâmina da foice. Todos observavam àquilo estarrecidos, Fábia deu de ombros, abaixou-se e pegou seu báculo do chão. Foi a segunda a iniciar a escalada.

- Você está louco?! Poderia ter matado todos nós! – exclamava Hikikomori logo abaixo, muitas oitavas acima do que era acostumada a falar.

- Ora, cale a boca e suba logo! – retrucou Pietro, truculento.

- Oh! – Hikikomori estava sentindo ultraje pela primeira vez. Coisas que se aprendia e se sentia ao conviver certo tempo com humanos.

Quando já haviam saído da gaiola e preparavam-se para saltar de uma em uma até as paredes, os portões se abriram. O pânico inundou seus corações gelando a espinha. Em poucos instantes a câmara estava entupida de androides sem face, a superfície líquida espelhada feito nitrato de prata que eram seus corpos refletia os cristais e o ambiente ao redor com perfeita exatidão. Eles entraram e começaram a sondagem, eram muitos, mais de duas centenas, abarrotavam o lugar enquanto a luz vermelha e o ar quente invadiam a caverna pelo portões: o campo de poças de lava havia repentinamente se tornado um rio incandescente de rocha aquosa e fumegante correndo com ferocidade! A ponte de pedra poderia ser embrulhada a qualquer momento pelo manto vermelho diabólico. O Apocalipse Club estava estático, mais pareciam estátuas de cera derretendo do que humanos em pânico procurando uma alternativa para escapar.

- Não tenho outra escolha... – Hikikomori sibilou para si mesma, mas todos olharam para ela perguntando-se ao mesmo tempo com quem ela poderia estar falando. Os olhos se esbugalharam quando o triângulo que pairava flutuando acima da cabeça da Sybila triplicou de tamanho até se tornar uma asa-delta gigantesca! Ela o atravessou exatamente ao meio como se fosse invisível e em segundos estava montada em cima da prancha azulada triangular feito o surfista prateado em sua condução. – o que estão esperando? Pulem pra cá já!

Ao som mais alto da sua voz, os androides sem rosto lá embaixo se agitaram, emitindo o costumeiro som de ondas de rádio com interferência. Imediatamente, os mais próximos das paredes iniciaram a escalada frenética. Havia mais uma legião deles do lado de fora da câmara ocupando apertados no minúsculo espaço entre o paredão de pedra e o rio de lava lá embaixo. Quando os monstros alcançaram as gaiolas menores mais próximas às laterais, o grupo já estava planando em um triângulo voador para longe da gaiola, para longe da câmara, para longe da prisão secular de Alado e toda a sua linhagem. Eles seguiram voando o curso do rio de lava acima enquanto Hikikomori verificava a posição com relação à nave mãe de Aib’Koletis.

- Estamos exatamente embaixo da nave! – ela gritou acima do som do ar sendo cortado pela prancha triangular e o chiar da lava incandescente lá embaixo – ela mede dois quilômetros! A entrada principal é aquela caverna que vimos de frente para os portões da câmara! Vamos voltar!

Feito o caminho inverso, eles notaram que muitos androides tentando persegui-los haviam caído na lava enquanto outros ainda escalavam as paredes no interior do cativeiro procurando por eles. A asa-delta fez uma curva brusca e dobrou para dentro da caverna com a abertura em forma de octógono. Uma chapa grossa de metal desceu às costas deles trancando a passagem após a sua travessia, e conforme avançavam rumo às profundezas daquele túnel, luzes esverdeadas em turquesa iam acendendo nas laterais, iluminando o caminho que já não era mais de pedra, e sim de metal polido, liso e gelado. Já estavam dentro da nave, e o calor do reino de fogo havia ficado para trás.

Já contavam com sorrisos de vitória no rosto e abraços calorosos quando dois androides metamorfos apareceram no meio do caminho. Saltaram tentando alcançar o triângulo voador, sem sucesso, e ao olhar para trás, Augusta e Ray Ann viram-nos mudarem de forma e transformarem-se em dois pássaros de metal iniciando uma perseguição aérea alucinada através do túnel, que seguia em linha reta infinita.

- Droga! – rosnou Hikikomori entre os dentes. Eles já estavam muito próximos. – é agora. FÁBIA!

- OI! – a gordinha deu um pulo, espantada ao ouvir gritarem seu nome.

- APONTE O BÁCULO NA DIREÇÃO DELES E CONCENTRE-SE! – ordenou.

- MAS...

- FAÇA O QUE EU ESTOU DIZENDO! AGORA!

Eles estavam tão próximos que poderiam perfeitamente saltar para a nave improvisada a qualquer momento. Fábia fez o que foi pedido. Demorou um pouco para se concentrar em meio àquela confusão, mas num instante o flash branco veio e fez o mundo ao redor desaparecer em luz rapidamente.

- Protejam seus olhos! – ordenou Hikikomori.

Quando a luz se foi, tudo estava congelado. Camadas de gelo cobriam o corredor até perder de vista, e não havia mais nada os perseguindo em sua fuga.

- O que aconteceu?! – exclamou Fábia apavorada, os olhos maiores que duas luas.

- Depois eu explico, agora temos que nos concentrar em achar a sala de controle desse lugar!

O corredor havia se alargado mais, e portais octogonais haviam surgido nas laterais. Portas para compartimentos e câmaras da nave mãe. As curvas, subidas e descidas bruscas começaram, eles tiveram de se segurar ainda mais. Hikikomori não tirava os olhos de seu computador portátil, as coisas no caminho começaram a passar rápido demais para que eles pudessem acompanhar.

- Quase lá!

Uma câmara colossal em forma de globo se abriu a final da última curva. Adjetivos como “enorme” ou “gigantesco” eram apelidos para a envergadura daquele lugar em forma de colmeia. As paredes estavam cheias de buracos octogonais de uma ponta a outra, como favos de cera esperando para receber as larvas da abelha-rainha. O Apocalipse Club estava maravilhado!

- Para cima! Segurem-se!

A guinada foi brusca, os berros foram ensurdecedores quando se viram subindo na vertical em direção a uma abertura circular no topo do globo da morte que era a bolha da câmara central. Ao atravessarem-na, esta se fechou abaixo deles, e o triângulo voador de Hikikomori desapareceu ao poucos, levando seus pés ao chão novamente e ressurgindo outra vez em sua forma original logo atrás da cabeça da Sybila como uma aureola angelical. Estavam agora numa completa escuridão, o que despertou os reflexos de autodefesa humana: cada um deles puxou suas armas. A espada samurai eletrificada de Ray Ann soltava faísca no breu, banhando o grupo de luz a cada estalo de eletricidade.

- Achavam que iam escapar assim, tão depressa? – a voz de Aib’Koletis invadiu seus ouvidos pela primeira vez. Era algo réptil, tudo em seu tom lembrava uma serpente pondo a língua pra fora e sacudindo seu chocalho. Porém, também soava como água aquático, profundo, velho, remetendo a fissuras abissais, estranhas formas de vida das profundezas e navios naufragados. – o jogo está só começando!

Algo veio das sombras atingindo um a um, feito um chicote os lançando para longe. Ray ouviu cada um de seus amigos – inclusive a própria Sybila – serem atingidos por um inimigo covarde e invisível, que se enroscou-se em seu pescoço e apertou-o com violência. A garota gritou, e como se o berro fosse a senha secreta para a luz, o chão começou a brilhar, revelando um lugar amplo e circular, com o teto transparente exibindo as constelações desconhecidas que giravam na esfera celeste do lado de fora da nave, nos céus daquele planeta mumificado onde a vida transbordava em seu interior. Eles estavam exatamente entre as duas torres de controle, no coração da nave, no covil de Aib’Koletis.

Ela gargalhou. Um de seus tentáculos estava apertando o pescoço fino de Ray Ann como uma jiboia faminta, a garota estava ficando roxa e prestes a desmaiar, perdendo todo o ar, pendurada a metros de distância do chão, debatendo e estrebuchando violentamente.

- SOLTE-A! AGORA MESMO! – era a voz de Alado, ele havia despertado e era o único de pé entre aqueles que a Aib havia chicoteado com seus tentáculos extensíveis. Pela primeira vez, seu rosto não estava oculto por sombras ou alegorias extravagantes envoltas em véus e tecidos pesados. Sua figura pavorosa possuía um único olho feito um ciclope, e sua boca exibia um sorriso tão largo e satisfeito repleto de minúsculos dentinhos prateados pontiagudos que causavam desespero só de olhar. Era um verdadeiro demônio. E para completar o conjunto de horrores, ela não possuía nariz, respirava por asquerosas guelras que abriam e fechavam entre suas costelas. Era um ser humanoide de pele dura e um tanto escamosa, e pelo modo como estava trajada (quase nua), parecia mais uma mutação de Hikikomori por ser tão alta.

- Alado! – seu tentáculo afrouxou-se ao redor do pescoço da garota vagarosamente, até que o corpo da jovem caísse no chão com um baque estalado. O príncipe correu até ela para socorrê-la. O monstro que era Aib’Koletis exibia uma expressão incrédula nos limites de suas feições alienígenas diante daquela cena. Ela não estava acreditando! Era Alado, o seu Alado, seu querido Alado! Seu cativo, seu bichinho de estimação! Aquilo que ela mais prezava no universo inteiro! O amor da sua vida!

- Olhe o que você fez a ela! – esbravejou o príncipe, mostrando os dentes para o monstro diante de si – como eu pude?! Como eu pude amá-la?! Como eu nunca vi a criatura que você era por baixo de todo aquele véu?! – ele sentiu repulsa pela primeira vez – EU TENHO NOJO DE VOCÊ! NOJO!

As asas amarradas às suas costas soltaram-se das tiras de couro e abriram-se cheias de esplendor, batendo violenta, porém majestosamente quatro vezes, lançando nuvens e mais nuvens de plumas brancas no ar. Como poderia um par de asas tão pequeno e tão atrofiado como aquele ter se tornado tão grande, belo e viril como aquele de uma hora pra outra? O que havia dado forças a Alado para que suas asas houvessem sido preenchidas por tanta vitalidade? Elas não paravam de bater um segundo! Ele estava quase alçando voo quando elas se esticaram por fim, atingindo uma envergadura assustadora que formou sombra sobre seu magricelo e franzino corpo, cobrindo também a desacordada Ray. Lágrimas douradas escorriam dos olhos violeta da criatura. Um mar de plumas bailava no ar.

- A... Amor! – rosnou Aib’Koletis enojada – você se apaixonou por ela! – os tentáculos na cabeça do monstro dobraram de tamanho e ricochetearam mais furiosos – não permitirei! JAMAIS!

Antes que ela pudesse tomar uma atitude mortal, uma bola de energia maciça a atingiu no peito, esmagando-o imediatamente. Seu corpo atravessou o salão e caiu duro do outro lado, sem vida. Aib’Koletis estava acabada.

- Preciso! Preciso escapar! Preciso escapar! – Fafis chispava feito um abutre em seu capuz preto por entre as pedras soltas da superfície ressecada do planeta morto, corria em direção a uma gruta oculta num cânion distante no lado escuro da esfera, banhado pela luz de estrelas ancestrais e desconhecidas – preciso buscar ajuda! A soberana Koletis caiu! – aproximou-se ruidosamente de um aglomerado de pedras pontiagudas escondido no escuro e tateou pela entrada da caverna.

Uma pequena nave em formato de ovo equipada com duas potentes turbinas – estas que mais lembravam orelhinhas de camundongo – revelou-se após a mãozinha delicada da roedora puxar o lençol branco que a cobria no interior da gruta escura. Atrapalhada como era, demorou um tempo para ligar a navezinha, que com as poderosas turbinas que tinha se arrastou quilômetros de barriga no solo gelado do planeta antes de levantar voo e finalmente, escapar da atmosfera cheia de gases nocivos, em direção ao espaço sideral.


♦ ♦ ♦



- Não posso partir com vocês, eu sinto muito – Alado ainda limpava as lágrimas douradas que escorriam de seus enormes olhos reluzentes. Eles haviam abandonado a cor de violeta fosca para assumir um tom purpúreo fulguroso, incandescente, forte. Talvez fosse o ar das cavernas, sempre escuro e abafado, que deixasse seus olhos agora tão vívidos quase apagados. Agora que suas asas haviam crescido ele parecia outra pessoa... Outro ser, na verdade. Já que ele de longe não era uma pessoa. – tenho de liderar a partida do meu povo, vamos voltar para a nossa galáxia natal imediatamente.

- Nós podemos levá-los! Eu sei que podemos! – ela o abraçou mais forte. Estava contendo o choro havia algumas horas desde que se acordara e se deparara com Aib’Koletis morta e aquele novo Alado. Agora mais príncipe do que nunca. Ele exalava a realeza de seu povo antigo em cada poro do seu corpo, cheirava a algo agridoce que enchia a boca de água.

- Isso é algo que temos de fazer sozinhos, minha querida, é a nossa lei, é como deve ser feito – ele a tomou nos braços mais uma vez e a pressionou forte contra aquelas costelas magras.

- Porque isso aconteceu com você? O que são essas asas enormes? Elas eram tão pequenas antes... – ela se afastou delicadamente para admirar a envergadura colossal daquele par de asas de cisne. Estavam os dois sozinhos na enorme câmara azul-turquesa enquanto o restante do grupo tentava eliminar os androides que ainda zanzavam pela nave mãe com a ajuda do báculo superpoderoso de Fábia Paola, congelando tudo.

- Eu atingi a maturidade da minha espécie. Fechei um ciclo de vida. – fez ele, sorrindo, olhando sonhador para cima, para as estrelas do teto abobadado transparente cheio de arcos de ferro. – pensei que isto nunca fosse acontecer. Não acontece há eras, desde que nosso povo foi trazido à força para as cavernas e as nossas asas presas em amarras, nunca mais atingimos a maturidade. Nossas asas sem uso, ao invés de crescerem, atrofiam até quase sumir. Mas algo... Algo fez com que... tornou isso possível. Temo que este algo tenha sido você.

- Eu?! – Ray espantou-se – mas eu não fiz nada!

- Você me deu forças. Você me tirou na gaiola e da escuridão das cavernas e me fez enxergar quem minha amada era de verdade. Você. – Alado sorriu, amável, retirou uma gota de lágrima dourada do canto do olho e esfregou nos lábios da jovem com delicadeza. – prove.

No começo ela estranhou, mas ao passar a língua nos lábios logo sentiu o gosto doce de mel. Era divino!

- No nosso sistema planetário natal, algumas criaturas costumavam fazer-nos chorar para coletar as nossas lágrimas. Elas eram muito maiores que nós e possuíam vários braços.

- Não consigo... imaginar... – disse a garota, um tanto apática, ainda entorpecida pelo gosto da lágrima de Alado.

- Agora temos de nos despedir. Um dia nos encontraremos de novo. Eu creio nisso. Você crê?
Ela fechou os olhos e engoliu em seco.

- Sim, eu creio – disse, séria.

Alado deu o sorriso mais largo e sincero que dera desde a primeira vez em que os dois se encontraram nas cavernas profundas, exibindo dentes perolados e lábios macios, finos, belos. Ray jamais se esqueceria daquele sorriso.

O pássaro abriu as asas pela última vez, cobrindo-a com uma sombra cálida e aconchegante. Juntas elas eram majestosas e incrivelmente brancas, poderosas. Ele as bateu várias vezes, levantando outra nuvem de plumas enquanto erguia-se do chão, ganhando o ar. Não demorou muito para atravessar o teto, que se desmaterializou com a sua proximidade e tornou-se sólido logo em seguida, após a sua travessia. Ray Ann imaginou-o ganhando os céus, ganhando as estrelas, chegando à sua constelação de origem, Cygnus. Imaginou céus rosados, nuvens azuladas e esverdeadas, árvores que crescem sem parar rumo aos céus, gigantes de vários braços e confortáveis ninhos repletos de plumas brancas. Ela gostaria de visitar o mundo de Alado um dia. Os mundos de Alado.

Quando a nave mãe de Aib’Koletis levantou voo, rasgando a rocha e atravessando a atmosfera venenosa daquele planeta primitivo, o Apocalipse Club não imaginava que passaria tanto tempo velejando no espaço, costurando entre as estrelas dentro de um navio voador. A nave da Arquiduquesa tinha o exato formato de um barco terrestre, as duas torres lembravam mastros e seu corpo em forma de banana lembrava o casco. Na lateral, duas barbatanas de metal seguravam o equilíbrio e içavam o enorme cruzeiro espacial para frente com a ajuda de duas turbinas, uma em cada asa.

Eles conferiram a passagem do tempo baseada no calendário do tablet de Augusta (que por incrível que pareça estivera esse tempo inteiro intacto no bolso interno da jaqueta da garota, descarregado). Longos meses se passaram, meses compridos o suficiente para que eles pudessem conhecer cada pedaço daquele enorme navio de metal, que em lugar de cruzar os mares cruzava o espaço.

Tiveram tempo inclusive para subir às torres de controle e observar os distantes sistemas planetários que antes estiveram sob o poder de Aib’Koletis, agora completamente livres da tirania de mais um dos cruéis soberanos eleitos pela Imperatriz Azura para administrar regiões remotas do universo. Hikikomori assumiu a pilotagem, que funcionava no salão turquesa através da mesma tecnologia de refração de cristais utilizada na subterrânea sala do trono nas cavernas. Ali usada para simular o espaço lá fora em três dimensões, mostrando os caminhos a serem trilhados, identificando planetas, estrelas e regiões inteiras nomeadas e mapeadas. A mesma câmara onde Ray havia se despedido de Alado por tempo indeterminado. A lembrança vívida dele em sua mente ainda pulsava sem parar.

Nos planetas e luas que estavam sob o domínio da terrível Aib’Koletis a ausência da soberana foi sentida aos poucos, quando os soldados sem rosto na falta de novas ordens e sinais enviados da base começaram a agir de forma estranha ou simplesmente parar, largando seus postos, suas incumbências para ficarem parados. Assumindo a postura de verdadeiras estátuas de chumbo banhadas em nitrato de prata, refletindo o mundo ao redor em sua superfície espelhada, agora nada maleável e dura como pedra. Logo o povo começou a reagir carregando-os para o alto de montanhas, jogando-os de penhascos ou atirando-os em fundos de lagos e mares, livrando-se daquelas incômodas figuras que representavam terror e opressão eternos. Agora parados para sempre sem ordens para receber.

E enquanto isso, o navio espacial roubado tinha cada centímetro explorado pelos novos residentes. Salas de jogos, salas de reunião, laboratórios, observatórios e biomas alienígenas simulados (lugares dos quais foram estritamente aconselhados a ficarem longe), quase uma Cosmogony melhorada e muito mais complexa. Seu sistema de corredores tão intrincado, se interligando de tal forma que tornava fácil a tarefa de se perder entre suas curvas, subidas, descidas e espirais. Não havia nada ali que lembrasse o comportamento humano ou a existência orgânica em geral.

Não foram encontrados banheiros, os dormitórios eram nada se não salas com enormes pufes ou câmaras para sono criogênico com cápsulas dispostas em círculo na posição vertical. Para completar o pacote de luxo, as coisas ali estava sempre à meia luz o tempo inteiro, os andares que compunham o navio ficavam imersos numa semi-escuridão suspeita que os fazia pensar puder haver algo escondido nas sombras espreitando. Coisas que passaram despercebidas às primeiras patrulhas de limpeza do lugar para livrá-lo de androides metamorfos ou quaisquer coisas desagradáveis.

Os androides eram congelados pela bomba criogênica de Fábia (sim, no final das contas descobriu-se que seu meigo báculo na verdade era uma arma com potencial relativamente perigoso para quem não estivesse dentro do círculo de proteção que o objeto projetava ao redor do portador.) e em seguida trancafiados em verdadeiros frigoríficos espalhados por mais de vinte colossais andares interligados pelo enorme fosso globular que os viajantes encontraram logo após invadir a nave exatamente no centro. Uma enorme bolha anti-gravitacional que lembrava o interior de uma colmeia perfeitamente redonda, um globo da morte com as paredes cheias de alvéolos. Estes eram os portais para corredores, câmaras e salões que compunham o interior da nave.

Nove meses se passaram ali dentro, sem pistas relevantes de onde o próximo arquiduque poderia estar. Nove longos e tediosos meses explorando caminhos, passagens e salas do tesouro repletas de relíquias interplanetárias, verdadeiros museus inteiros escondidos ali, a história de milhares de povos distantes, oculta atrás de paredes e caixas de vidro em mostruários extensos. Viveiros cheios de animais selvagens, coisas enormes ou pequeninas cheias de olhos, pernas, antenas, patas e chifres. Seres que pensavam estarem em seu habitat natural graças às simulações dos ambientes de onde foram tirados, mas que viviam uma eterna mentira e sequer faziam ideia de que eram observados pelos olhos curiosos de humanos vindos de um minúsculo planeta esquecido pelo resto do universo.

- Estamos no Cruzeiro Espacial Delta – disse a Sybila, durante a refeição dos humanos. Ela não costumava se juntar a eles nessas horas, mas sentava-se à mesa e os fazia companhia, raríssimas vezes comia alguma coisa. O metabolismo da sua espécie era muito lento, de modo que ela poderia passar meses, anos terrestres sem comer, assim mesmo continuaria satisfeita como se houvesse comido há pouquíssimo tempo.

- Cruzeiro Espacial Delta? – Augusta brincava com o estranho macarrão verde em seu prato. A comida que eles encontraram ali estocada em depósitos do tamanho de galpões portuários era no mínimo esquisita, mas saborosa, e capaz de satisfazê-los por um longo tempo. Comida alienígena era algo como comida asiática: exótica aos extremos.

- Por um acaso não é a nave da história? – Fábia afastou seu prato com uma expressão de repulsa nos olhos. Ela era a única que não havia se acostumado àquelas refeições e por isso havia emagrecido bastante, em nada lembrava a moça rechonchuda que um dia fora – digo, a história da Princesa Azura.

- Sim, Cruzeiro Espacial Frontier Delta. – afirmou Hikikomori, os dedos enlaçados apoiando seu queixo pontudo enquanto os cotovelos sustentavam o peso da sua cabeça na placa de metal flutuante que lhes servia de mesa. Todos largaram seus talheres alienígenas para observá-la, surpresos.

- Tem certeza? – Pietro cutucou a massa redonda e rosada em seu prato triangular com o híbrido de faca e colher que tinha em mãos – digo, se este for realmente o CEFΔ, o lendário Cruzeiro Espacial onde a família real vivia, o que ele esteve fazendo durante todo esse tempo enterrado naquele planetinha, nas mãos de Aib’Koletis?

- Não consigo chegar a uma conclusão a respeito disso – ela uniu as sobrancelhas franzindo a testa, confusa. – aqui residiram gerações milenares de seres poderosíssimos, os amos de minha mãe e os que vieram antes deles habitaram estes corredores. Esta nave-mãe é considerada sagrada por muitos povos espalhados pelos sistemas planetários, para muitos deles é até um pecado que estejamos aqui dentro... O que poderia ter acontecido para...

- E porque você só reparou agora? – fez Ray Ann, largando seu talher também, estava cansada daquela linguiça roxa cujo recheio interno lembrava mais o miolo de uma laranja tingida de vermelho. – você viveu aqui durante um tempo, não viveu? Você nos contou que era o braço direito de Azura nos tempos áureos, praticamente a “melhor amiga” dela.
Hikikomori olhou para cima e em seguida ao redor, analisando o refeitório com minúcia.

- Está diferente, tudo está diferente, provavelmente Aib’Koletis modificou o interior da nave quando assumiu o controle... Eu só consegui perceber onde estávamos quando reiniciei o sistema de navegação, o brasão da família Shantrya surgiu luminoso e logo em seguida o nome da nave nos ideogramas usados na escrita do povo da princesa e seus ancestrais.
Hikikomori puxou o prato de Christopher para perto e desenhou uma série de traços e curvas nas manchas da gelatina com a ponta do dedo:


克魯斯太空邊疆


- Mas isso é chinês! – exclamou Donnick, confuso. – a raça de Azura fala chinês?!

- Acha que as diferentes línguas dos povos do seu planeta vieram de onde? – Hikikomori sorriu, confiante – o seu planeta no passado foi uma espécie de porto super movimentado, que recebia por ciclo de rotação milhares de naves cargueiras, fazendo o transporte de mercadorias advindas de todos os cantos desta galáxia. Foi assim que os símios aprenderam a falar, tendo contato com nossos povos. Ou acham mesmo que aqueles animais primitivos, seus ancestrais, desenvolveram a própria linguagem sozinhos?

O grupo estava em estado de choque, boquiabertos com aquela revelação, no mínimo, perturbadora. Eles estavam na companhia de uma criatura que poderia mudar tudo o que estava escrito atualmente nos livros de história terrestre, revolucionando o modo como a raça humana sempre encarou o seu desenvolvimento quanto seres racionais.

- Os seus continentes ainda nem estavam perfeitamente formados quando receberam os comerciantes e mercadores dos quatro cantos do universo, as transportadoras instalaram bases neles... Aquelas marcas profundas no solo terrestre que vocês insistem em chamar de “crateras de meteoro”... – ela deu uma gargalhada divertida, nunca haviam visto a Sybila gargalhar até então, por isso espantaram-se e recuaram alguns centímetros, assustados – ali ficavam as bases de cada “empresa”, por assim dizer, as naves-mães dos povos que decidiram expandir os negócios até aqui e instalar-se na área. Tudo o que fosse extraído nos outros planetas da região era enviado para lá, e de lá partiam para o destino final. Quando Azura tornou-se a Imperatriz cruel, e todos os sistemas planetários da galáxia foram sugados até o último recurso natural, os comerciantes levantaram suas “tendas” e partiram. Mas já era tarde demais, haviam interferido no desenvolvimento natural do planeta de vocês... E aí estão o que são hoje. Símios falantes. Quem diria.

O silêncio que se seguiu foi mortal. Eles estavam chocados demais para falar qualquer coisa.

- De qualquer modo – ela tornou a tagarelar, voltando sua atenção para o prato rabiscado – assim que descobri que estávamos no Cruzeiro Espacial Delta, saí em busca de Azura pelas câmaras criogênicas. E acreditem, são muitas.

Eles gelaram dos pés à cabeça. Havia uma possibilidade da terrível Azura estar ali, escondida em alguma câmara secreta durante todo esse tempo e Hikikomori não os havia comunicado a respeito disso?! Eles estiveram correndo um possível perigo durante todo esse tempo e não foram avisados?! As bocas já estavam se abrindo e os dedos se pondo em riste para a discussão começar, mas a Sybila os interrompeu.

- Não se preocupem, ela não está aqui. Nunca esteve. A nave está completamente deserta de uma ponta a outra.

- Mas ela poderia estar! – exclamou Donnick – e você não nos avisou! Sabe o quão grave isso é?!

- Vocês estavam seguros esse tempo todo, sempre estiveram. – Hikikomori permanecia calma – mesmo se Azura estivesse escondida em alguma das câmaras familiares dos setores mais profundos, ou nas tumbas criogênicas onde os anciãos dormiam seu sono, ela jamais poderia nos fazer mal. Estaria sob animação suspensa e sem ameaça alguma de despertar. As cápsulas são controladas por painéis em salas separadas e só podem ser abertas por algum elemento externo.

Mesmo após a explicação, a suspeita continuou pairando no ar. Estavam nervosos.

- Não se preocupem – a Sybila sorriu – está tudo sob...

As luzes piscaram uma, duas, três vezes. Um tranco lançou-os ao chão num impacto dolorido, que eles receberam com gritinhos abafados de espanto. A nave havia batido em algo.

- Você ia dizer controle?! – Christopher gritou, acima das sirenes que tocavam alto. O refeitório se banhava em azul-turquesa e logo em seguida voltava à sua meia luz natural com reflexos levemente prateados: eram as luzes das laterais, localizadas abaixo do piso, que brilhavam através das placas de cristal onde se encontravam. Havia outras no teto também, e juntas elas aumentavam e diminuíam de intensidade num ritmo sonolento acompanhado do som ensurdecedor semelhante ao badalar de um enorme sino.

Em alguns instantes eles já estavam na sala de controle, atravessando hologramas de três dimensões simulando o universo ao redor completamente mapeado, cheio de rotas sinalizadas e estrelas nomeadas.

- Como é possível?! – exclamou Hikikomori, manipulando os hologramas com as mãos, mudando as estrelas de posição com puxões que mudavam o ângulo das imagens rapidamente. Foi um espanto para todos, mas a verdade surgiu na forma de uma enorme esfera azulada gigantesca que se aproximava em alta velocidade cada vez mais. Eles estavam caindo.

- Batemos na atmosfera de um planeta! – exclamou o Professor Umbrella puxando sua foice para perto.

- Não existem planetas nessa área! É impossível! Isto está mapeado pelo sistema e não há registro da existência deste... – outro solavanco lançou todos ao chão. A nave batia contra grandes blocos de pedra flutuante que orbitavam tranquilamente entre as nuvens daquele novo planeta. E eles sentiam aquilo na pele, vivenciavam cada tronco e rodopio, pois o holograma mostrava perfeitamente o percurso em queda da nave como se estivessem ao ar livre, caindo feito o navio voador onde eles se encontravam.

Passar através do campo magnético que mantinha aqueles enormes blocos de pedra flutuando acima do mundo azul desconhecido estabilizou e desacelerou a queda levemente, mas após esta curta passagem a velocidade só aumentou. A gravidade deste planeta parecia ser realmente muito forte, e o impacto contra o oceano infinito que se estendia em todas as direções lá embaixo fez as luzes do Cruzeiro Espacial Delta se apagarem violentamente, de uma vez por todas. Christopher caiu de queixo no chão, e então apagou.

Havia se tornado um ritual este apagar da consciência na chegada a um novo planeta.


FIM DO PRIMEIRO ARCO!




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sábado, 24 de março de 2012

Cale a Boca e Escute Bônus: SPACE ODDITY OST - NERO!

Vocês já estão habituados a esse meu costume de montar trilhas sonoras para os contos desse blog. Tudo começou com The Big Machine, cuja trilha sonora inspiradora foi o álbum homônimo da cantora francesa Emilie Simon, já no segundo episódio da saga a playlist contou com a presença de vários artistas (de música eletrônica, como sempre) que dominavam o mp3 player do meu celular na época... E assim as coisas foram evoluíndo. Com Space Oddity não poderia ser diferente! Antes mesmo de começar a escrever a história propriamente dita eu já tinha algumas musiquinhas cotadas para fazerem parte da playlist de S.O., mas aí então eu conheci essa banda INCRÍVEL chamada NERO! E minha paixão por dubstep começou...

Nero é um grupo de música eletrônica, mais conhecida por produzir house, dubstep e drum and bass. Sua primeira faixa do estilo dubstep foi “This Way” em 2008. Em 2009, eles ganharam o prêmio Beatport 2010 como “Melhor Artista Dubstep” e “Melhor Faixa Dubstep” para “Act Like You Know”. Nero assinou contrato com a MTA Records, propriedade de Chase & Status, e sob o selo lançou seu álbum de estreia, "Welcome Reality", todo inspirado em filmes de ficção científica do jeitinho que a gente gosta. Sasha Frere-Jones, jornalista do New Yorker Magazine, citou o remix de Nero para The Streets - Blinded by the Lights como uma de suas músicas favoritas de 2009.


A música que vocês vão conferir agora foi extraída do "Welcome Reality" e se chama My Eyes, a minha favorita entre as preferidas do monstruso album que conta com 14 faixas (a sensação que ele passa é de que, se a gravadora tivesse deixado, eles teriam produzido umas 20 faixas se pá!), e de quebra, à primeira ouvida, acabou virando a música tema de Space Oddity. Não consigo ver outra coisa quando a escuto se não o espaço, as estrelas e os planetas emoldurando o rosto de Azura! Quando penso em um possível seriado ou animação baseado na minha série imagino uma abertura incrível com o rosto dos personagens principais se moldando em nebulosas, galáxias e constelações, tudo isso dentro dos olhos de Azura que aparece no começo da animação dentro de um triângulo sentada em seu trono abrindo os olhos vagarosamente enquanto a câmara foca em suas pupilas até mergulhar no universo... Viajei não? É melhor vocês ficarem com a música!


My Eyes

My eyes follow you around the room
And I only have a look at you
So when you move, get a feeling I can't hide
It's up to you if we're gonna do this tonight

My eyes follow you around the room
And I only have a look at you
So when you move, get a feeling I can't hide
It's up to you if we're gonna do this tonight


Meus Olhos

Meus olhos te seguem ao longo da sala
E eu apenas te lanço um olhar
Então quando você se move, sinto que não posso esconder
Cabe à voce se vamos fazer isso esta noite

Meus olhos te seguem ao longo da sala
E eu apenas te lanço um olhar
Então quando você se move, sinto que não posso esconder
Cabe à voce se vamos fazer isso esta noite





O joguinho do video é fofo =^.^=


E fiquem de olho que mais tarde tem capítulo novo!

quinta-feira, 22 de março de 2012

Baleia, Lobo ou Girino? - O Vigia



Hey, pessoal! Tudo bom com meus leitores favoritos? Espero que estejam acompanhando S.O. toda semana, porque essa série promete! Agora que nossos heróis estão soltos na Via-Láctea, vai ser ação do começo ao fim! Fora as postagens com os capítulos da história, venho me sentindo cada vez mais afastado e desleixado com o blog, talvez por falta de incentivo ou mesmo por falta de leitores (e também por falta de criatividade, já não sei mais o que postar quando não estou postando capítulos novos ._.). Então, dando uma olhada nos nossos arquivos percebi que toda crônica sequencial que publico por aqui vem acompanhada de pequenos textos explicando um pouco mais sobre personagens, lugares, enredo e afins em postagens separadas, notei também que Space Oddity não possui isso, esses "comentários do autor"!

Eu escrevo capítulos enormes e simplesmente os jogo na página sem dar uma única explicação sobre o que está se passando para quem pegou o bonde andando ou mesmo pra quem não está entendendo direito (eu meio que fiz isso nos post com o esboço de Hikikomori, pensando melhor agora). Por isso resolvi começar agora, um pouco tardiamente, a explicar um pouco mais sobre Space Oddity, aprofundar vocês neste universo novo!

Vamos retomar os bons e velhos costumes a partir de hoje e começar falando sobre uma criatura misteriosa que povoou o imaginário dos leitores durante dois capítulos inteiros atiçando a curiosidade dos mais aficcionados e surpreendendo a todos em sua primeira (e última ;-;) aparição: O Vigia!

Antes de ser decidido que tipo de criatura ele seria eu já havia imaginado as origens das luzes que antecediam a sua chegada: seu organismo seria totalmente transparente. Couro, carne e ossos através dos quais a luz atravessasse como no vidro, e as reações químicas em seu interior produziriam luzes coloridas como nos peixes e águas-vivas que habitam o fundo do oceano, na escuridão total, exatamente como ele e sua raça viveram durante milhares de gerações até serem extintos por falta de alimento naquele planetinha morto: a escuridão das profundezas das cavernas.

O Vigia faz parte de uma raça ancestral chamada Leviathan, que parou no caminho evolutivo de lobo para cetáceo (sim, as baleias do nosso planeta descendem de lobos!). Eles prosperaram durante muitos ciclos naquele pequeno planeta solitário que orbita Antares há milênios sem ser notado pelos telescópios terrestres, sendo o Vigia o último da espécie. Com os oceanos do planetinha secando e o alimento do seu povo desaparecendo junto às águas - eles eram anfíbios que viviam em cavernas submarinas - eles se extinguiram aos poucos após tentativas falhas de se adaptar ao novo ambiente em que se encontravam. Por algum motivo, algumas gerações anteriores ao Vigia aprenderam a sobreviver longos períodos sem água e variaram o cardápio optando por coisas que já viviam nas profundezas dos túneis submersos junto a eles. Isso não foi o bastante, tanto que o único exemplar da espécie que foi encontrado vivo nas cavernas quando Aib'Koletis chegou trazendo sua horda de escravos de asas amarradas foi ele, o próprio. Sendo assim, ela o treinou para proteger a gaiolas onde a família real do povo Alado era mantida em cativeiro, e após o nascimento de o último Príncipe Alado, pelo qual ela se apaixonou, treinou-o para proteger a ele e somente a ele.

O fascinante monstro Vigia também possui uma defesa contra possíveis predadores (sim, existiam coisas maiores que ele nos oceanos do planetinha sem nome), trata-se do jato de ácido fluorescente, mas nem isso foi páreo para a determinação do Apocalipse Club em salvar a querida Ray Ann!

Fique atento para mais explicações sobre os próximos capítulos e até mais!

XOXO

Louie Mimieux

segunda-feira, 12 de março de 2012

PARTE ONZE: LEVIATHAN!


- Nosso povo costumava viver em uma galáxia afastada, muito distante, em harmonia e paz constantes – enquanto falava, o Príncipe Alado revirava suas almofadas e brinquedos em busca de esferas de metal perfeitamente redondas e reluzentes, as quais o príncipe sacudia com força, atritando-as umas nas outras por vezes, isso as acendia como vagalumes azuis. Ele as jogava para cima e elas flutuavam como pequenos sóis azulados. A essa altura Ray Ann já havia se acostumado à escuridão, de modo que podia ver quase tudo à sua volta, inclusive as distantes múmias dos ancestrais de Alado nas gaiolas ao redor, o que lhe causava arrepios constantes – do caminho entre a nossa galáxia até esta, dez gerações da minha família se sucederam no cruzeiro espacial, vivendo em gaiolas como estas. Da chegada até o último ciclo de trevas, cinco gerações se passaram. Eu sou o último Alado.

Ray permanecia sentada, olhando atentamente para cima, as belas esferas flutuavam para cima e para baixo com graça e maestria, num quase balé. Logo tudo estava iluminado pela luz azul, e o ambiente da gaiola onde Aib’Koletis mantinha o príncipe cativo já não parecia mais tão assustador ou repressivo como antes. O vulto de burca havia saído de lá já há algum tempo, e os enormes portões que levavam ao reino de lava permaneciam bem fechados, de modo que o calor escaldante não mais entrava. Tudo o que havia era uma leve e fresca umidade, provavelmente vindoura de pequenas passagens de ar no alto da cúpula da câmara cavernosa.

- Então você já nasceu cativo? – ela perguntou.

- Sim, de certo modo. Sinto-me preso a ela, preso e completamente louco por ela. Ela tem algo que me prende, não sei explicar – Alado sentou-se de frente para Ray Ann e olhou dentro dos olhos dela. Era incrível o modo como ele parecia humano. Não fosse aquele par de asas atrofiadas presas em fortes amarras e aqueles penetrantes olhos violeta, ela podia jurar que ele era um rapaz como qualquer outro, um rapaz judeu, é claro. O nariz dele era avantajado, porém belo e muito bem desenhado. Seus membros eram finos e delicados, sua estrutura era leve como a de um pássaro, ele passava a impressão de estar pronto para flutuar a qualquer momento de tão leve e delicado que era. Dono de um rosto fino e esculpido cuidadosamente, a criatura humanoide mais perfeita do universo até agora. Ela jamais imaginaria encontrar algo tão humano ali, entre estrelas distantes e planetas selvagens. Só de imaginar as criaturas brutais contra as quais lutara na arena, comparadas ao delicado Alado, ela sentia tonturas.

- No meu planeta há um nome para isso! – Ray se levantou para esticar as costas doloridas e se espreguiçar – quando um indivíduo é sequestrado, e passa-se muito tempo após o sequestro, a pessoa se acostuma à imagem do sequestrador e desenvolve afetividade por ela, aos poucos isto pode se tornar paixão e até um amor. Não lembro o nome no momento, mas parece que é isto que está acontecendo aqui. Isso deve ter se intensificado pelas gerações que se passaram em cativeiro, você já nasceu sequestrado, preso, ela é tudo o que você conhece fora seu povo e as cavernas. Vocês passaram eras aqui embaixo escavando e minerando, operando máquinas, escravos dos desejos do império. Vocês não conhecem outra vida se não esta. Você, em especial, não conhece outra vida se não esta.
Ele abaixou a cabeça, pensativo.

- Não cheguei a conhecer minha mãe, conheci meu pai por acaso em uma das minhas inúmeras fugas. O nome dele é...


- Yeovah – disse Donnick, repousando sua mão delicadamente sobre o ombro franzino da figura ao seu lado. O ancião encurvado ainda segurava o fio prateado que pendurava o casulo seco de onde a arraia neon havia saído, usado por ele como lanterna há poucos minutos atrás. O misterioso ser ainda planava serelepe ao redor, descobrindo um novo mundo após deixar sua fase crisálida pra trás, após deixar sua prisão depois de completa a metamorfose. – o nome dele é Yeovah!

- E desde quando você fala alienígena? – exclamou Augusta, confusa – pensei que a única ET aqui fosse a Fábia!

- Ei, pera aí um instante! – a gorduchinha levantou o báculo, com uma expressão tremendamente ofendida estampada no rosto. Hikikomori voou em cima dela, abaixando o braço da garota delicadamente.

- Mantenha isso abaixado, por favor – a Sybila tentou parecer controlada, mas ficou visivelmente nervosa após o movimento feito pela garota com a sua pseudo-arma aparentemente inofensiva.

O capitão riu, divertido.

- Eles falam um tipo estranho de hebraico, eu entendo a maior parte do que eles falam... – ele olhou para trás, os vultos escondidos nas sombras recuaram um pouco mais longe – ele fala, na verdade. Os outros parecem não gostar muito da minha presença... Da nossa presença, em geral.

Fez-se silêncio enquanto eles se entreolhavam tentando medir a situação e pensar no próximo passo. Segundo o tradutor temporário Donnick, Yeovah estava ali para alertá-los de que ao final daquele túnel, um enorme vale rochoso se abria, cercado de cânions subterrâneos, quase uma versão inferior do mundo morto que havia lá em cima. Segundo ele, uma criatura chamada Vigia estaria esperando do outro lado do vale para liquidá-los assim que o atravessassem, e isto os deixou em estado de alerta, quase em desespero. Ser morto na escuridão de cavernas alienígenas por um monstro que ninguém jamais havia visto ou sabia dizer exatamente o que era não parecia nada agradável. Yeovah também disse que Ray Ann havia sido levada pelo Vigia e estava sendo mantida em cativeiro junto ao príncipe de seu povo, Alado, mas a pior parte estava ainda por vir.

- COMO É QUE É? – disseram eles em coro. Até Donnick mostrou surpresa ao traduzir aquilo, nem ele esperava por isto. O ancião resmungou baixinho outra vez.

- É, parece que a nossa nave zarpou sozinha! – ele deu de ombros, tentando parecer pouco preocupado, mas a ideia de estar preso para sempre naquele planeta anão desagradável não soava nem um pouco convidativa, tanto para ele quanto para os outros. A estrela que eles orbitavam era uma gigante vermelha, o que significa que ela é uma bomba relógio: a qualquer momento pode explodir e aniquilar toda a vida num raio de milhares de anos-luz!

- Eu sabia que isso iria acontecer – Hikikomori chiou alto o suficiente para ser ouvida, ainda segurava sua placa de vidro entre os longos dedos delgados – nos esquecemos totalmente dos servos de Aib’Somar, eles estavam lá dentro conosco o tempo inteiro!

- As toupeirinhas! – exclamou Pietro – malditas sejam!

- Elas mesmas – Hikikomori começou a dedilhar no computador portátil, emitindo zumbidos e bipes delicados ao pressionar a ponta do indicador contra o cristal. – ao verem que a nave estava sob o ataque dos escorpiões, elas levantaram voo e programaram uma rota de volta à Taurus, estão voltando para o planeta artificial que orbita Aldebarã.

Imediatamente o corredor foi preenchido por ecos de muxoxos, resmungos e exclamações de decepção, desesperança e indignação. Estariam eles presos ali?

O pequeno ancião tornou a falar.

- Ele disse que há uma chance – traduziu Donnick – ele falou que existem duas torres de controle na superfície, no lado escuro do planeta... – o pequeno homem continuou a falar, o capitão iniciou uma tradução quase simultânea – ele diz que elas são apenas a parte visível de uma nave espacial maior. A única maneira de chegar até lá, logicamente, é pelo subterrâneo, mas as entradas estão todas protegidas por... Fantasmas? Sem forma? Sem rosto? – a criatura calou-se e fixou o olhar no grupo de humanos à sua frente. Donnick permaneceu tentando traduzir sua última frase – não sei o que ele quer dizer com isso...

- Androides – fez a Sybila, de olhos fechados, esticando seu espírito através das cavernas em busca das entradas para a grande nave oculta. – um grupo pequeno de androides protege a nave e opera dentro dela. É a central de controle do império de Scorpio, eles monitoram tudo o que está acontecendo nesta região da galáxia de dentro daquelas duas torres.

A situação só se complica.

- Como vamos chegar até lá? – perguntou Fábia. – esses túneis são infinitos!

- Temos que salvar Ray Ann! – exclamou Pietro, puxando sua bazuca de energia das costas para os braços.

- Não podemos passar por esses androides, em Cosmogony vimos do que eles são capazes! São indestrutíveis! – disse uma nervosa Augusta.

Christopher Umbrella, que permanecera este tempo inteiro calado, absorto em pensamentos enquanto manipulava sua foice ergueu os olhos para o grupo. Outra vez estava tomado por aquele espírito que não era seu, aquela força que não era sua, algo muito mais antigo que ele e muito mais poderoso, algo que o impulsionava a encontrá-la, a tomá-la em seus braços, a ter Azura próxima e presa a ele para sempre. Seu coração estava fervendo e sua pele formigando.

- Vamos salvar a Ray e tomar aquela nave. – o som da sua voz após tanto tempo de silêncio surpreendeu a todos. Até mesmo aos acompanhantes alienígenas do pequeno ancião, que ainda permaneciam ocultos e amedrontados nas sombras, a uma distância segura do grupo de gigantes invasores do espaço.

Yeovah resmungou outra vez em sua língua, desta vez alto o suficiente para que todos ouvissem. Donnick o traduziu imediatamente.

- Ele disse que não importa o caminho que trilhemos o Vigia irá nos caçar até o fim. Mais cedo ou mais tarde teremos de enfrentá-lo. – ele assumiu uma postura rígida e determinada, a mesma aura que envolvera o Professor Umbrella pairava sobre o capitão agora, seus olhares se cruzaram e havia o fogo da batalha neles.

- Que ele venha – Christopher levantou sua foice negra, que reluziu à luz da arraia neon ainda pairando ao redor – estamos mais do que preparados para ele.

A energia dominou-os um por um, os olhares de medo e receio transformaram-se em expressões de determinação e crença absoluta na meta então traçada. As mãos pairavam sobre as armas, prontas para o combate. Era hora de agir, e não de fugir. Sybila Hikikomori tentou esconder um sorriso de satisfação ao sentir que os escolhidos reencarnados estavam despertando aos poucos, se tornando o que foram em suas vidas anteriores, mas não conseguiu. Pela primeira vez, seus dentes perfeitamente brancos e serrilhados estavam à mostra. Que bela ela era sorrindo, feliz por estar vendo avanço, e assustada por estar se tornando cada vez mais humana.


♦ ♦ ♦



- Então Yeovah os está guiando... – Aib’Koletis levantou-se do seu trono e caminhou em direção ao holograma quase transparente produzido pela tecnologia de refração de cristais diante dela. Nele, uma arraia neon ia à frente iluminando o caminho enquanto o grupo de humanos era escoltado por pequenos e franzinos seres das cavernas, de cabelos prateados, olhos claros e asas atrofiadas, presas em tiras violentas de couro bruto.

- Precisamos tomar uma atitude, minha senhora! – exclamou Fafis em sua voz fanha, saltitando em seu manto preto tentando manter o capuz sobre o focinho com as mãozinhas rosadas de rata – pelo rumo que tomam logo estarão nas câmaras profundas da mineração, e de lá é apenas um salto para...

- CALE A BOCA, FAFIS! – o guincho estridente da Aib ecoou pela sala cristalina do trono – eu sei muito bem o que vem depois das câmaras de mineração, acha que não conheço as minhas cavernas?! Este é um dos últimos planetas onde restaram metais preciosos e combustível fóssil para manter o império inteiro funcionando, acha que sou IDIOTA?

- Não, minha senhora, muito pelo contrário, eu apenas...

- ORA, FAÇA-ME O FAVOR! – os gritos de Aib’Koletis espantavam as pequeninas rãs peludas para trás dos seus cogumelos coloridos entre os pilares greco-romanos. – eu não estou nem um pouco preocupada. O Vigia fará deles picadinho, não irá sobrar um átomo para contar história. O ácido expelido por ele vai derretê-los até não restar NADA.
- Tem... Tem razão, mestra! – Fafis pareceu animada outra vez, e não ressentida por ter irritado sua soberana.

- Agora volte para seu maldito posto nas torres de controle e pare de descer até aqui pra fazer fofoca, sua inútil! – a gigante escamosa chutou a pequena figura de Fafis em direção ao túnel de saída da sala do trono. Esta deu um gritinho de dor ao ser atingida nas costelas e encolheu-se numa bolinha de pelos, se deixando rolar em direção à saída gemendo, num misto de dor e prazer por estar rolando, divertida, para longe da sua agressora. Aib’Koletis permaneceu de pé, os braços cruzados às costas, o peito estufado, observando da escuridão com serenidade os movimentos do grupo de humanos em sua incursão pelas cavernas.

O rosto da Arquiduquesa permanecia oculto pelas sombras, enquanto os longos e gordos tentáculos cheios de ventosas que lhe serviam de cabelo dançavam no ar úmido e pesado da câmara mais profunda. Eles não cresciam como fios de cabelo, mas sim eram partes extensíveis da cabeça, exatamente como os braços de um polvo, uma mutação horrenda originada de algum erro evolutivo num planeta distante. Seu corpo sempre envolto por muito tecido pela primeira vez estava nu, e por não estarem envoltos em um pesado turbante como de costume, os tentáculos comemoravam a liberdade ondulando violentamente no ar tentando agarrar alvos invisíveis. Pareciam ter vida própria, mas era só sua dona expressando o nervosismo.

O nervosismo pela proximidade do grupo às maquinas que operam a mineração, e consequentemente, aos seus operadores.

Pensava-se que ali embaixo, nos túneis mais profundos, a vida fosse muito mais escassa e o ar muito mais abafado, para surpresa do grupo, constatou-se exatamente o contrário. A cada curva, a cada descida e a cada subida, a cada estreitamento e alargamento da passagem, o ar se tornava mais respirável e arejado: fortes correntes de ar percorriam aquelas áreas mais baixas, havia trechos em que eles tinham de proteger a vista com os mesmos óculos usados na superfície de tão fortes que as ventanias eram. Suas jaquetas esfarrapadas ondulavam, e suas calças e botas já muito degradadas piores ficavam, aproximando-se cada vez mais do fim da vida útil. Afinal de contas, apesar da limpeza a vácuo e laser feita numa câmara higiênica especial dentro da nave mãe de Aib’Somar, aquelas ainda eram as roupas dadas a eles no dia em que o Apocalipse Club se despediu para sempre da vida na Terra e abraçou o universo como sua nova morada.

A paisagem ali embaixo também não deixava a desejar, a vida transbordava de diversas formas a cada metro percorrido, quilômetros inteiros estavam cobertos por um tapete vegetal espesso de gramíneas fluorescentes que brilhavam no escuro e refletiam nos cristais iluminando o caminho inteiro por completo. Espécimes curiosos rastejavam entre os cogumelos gigantes e coloridos que cresciam das fissuras nas rochas: lesmas gordas coloridas e listradas, anfíbios peludos saltitantes, roedores com super orelhas e cascos fendidos e cardumes exibicionistas de arraias neon azuis, verdes e violetas, entre os quais a guia azulada do grupo sumia sempre, para depois retornar ao seu posto à frente da caravana.

- Ela é uma espécie de mascote da “tribo” – sussurrou Donnick ao pé do ouvido de Augusta, de todas a mais embasbacada pela riqueza em fauna e flora que jorrava nas profundezas, parecia deixar-se seduzir e enfeitiçar por cada microorganismo brilhante que cruzava o seu caminho, estampava no rosto redondo um sorriso tão largo que a fazia parecer o gato risonho no mundo de Alice – eles capturam as “lagartas” na natureza, em fossos muito profundos e câmaras quase inacessíveis, levam para as tocas escavadas na rocha e alimentam até que vire casulo e então, monarca. Eu atravessei uma espécie de vila esculpida nos cristais e fiquei... Exatamente como você está agora quando vi o modo como eles vivem.

Augusta estava e não estava prestando atenção no que Donnick dizia a ela. Estava muito mais curiosa pelos minúsculos enxames de seres vivos mínimos que lutavam pela vida no escuro assim, brilhando. De certo modo os subterrâneos do planeta de Aib’Koletis eram uma versão selvagem de Neon City, uma selva de neon sem concreto e sem pessoas, concebida exclusivamente pela natureza.

As paisagens foram mudando aos poucos, os caminhos tomados pelo ancião Yeovah que ia à frente guiando o grupo foram ficando cada vez mais sinuosos e desafiadores. Houve vezes em que eles tiveram de se espremer dificultosamente através de fissuras tão estreitas que nem Christopher e muito menos Pietro conseguiram passar de primeira, sem um jeitinho certo de encaixar o corpo ali dentro. Rastejar também foi preciso mais à frente, e acredite se quiser, também foi necessário nadar. Um rio subterrâneo surgiu do além, após uma série de arcos de pedra esculpidos e sulcados pelo povo de Yeovah nas eras passadas com a linguagem e os desenhos de sua tribo cicatrizados na rocha. A água estava tão fria que foi impossível resistir a vontade de bater os dentes, o rio se originava do além e também terminava no além, a correnteza fria bateu direto numa parede de rocha e os puxou para baixo, para um túnel submerso.

- Prendam a respiração! – gritou Donnick para o resto do grupo, traduzindo o brado em hebraico de Yeovah. O desespero se generalizou, Augusta, Fábia e Christopher se entreolharam apavorados perante aquela situação! E se morressem afogados? E se não conseguissem segurar a respiração por muito tempo? Eles não tinham outra alternativa, mergulharam na corrente fluvial após encherem seus pulmões até o limite, e se deixaram levar pelos murros da pressão da água. A travessia do túnel aquático não durou nem um metade de um minuto: uma queda d’água os lançou longe, às margens de um lago à beira de uma floresta de samambaias, através da qual eles seguiram caminho costurando pela margem de um regato raso. Ali naquela câmara colossal, assustadoras iguanas do tamanho de búfalos donas de uma peculiar crista vermelha e verde pastavam tranquilamente sem sequer notar a presença dos peregrinos.

Por final, o caminho se abriu à beira de um penhasco, uma queda livre sem fundo. Olhar para baixo era encarar a face da morte na escuridão, cristais brilhavam como pequenas estrelas distantes nas paredes do outro lado do desfiladeiro pelo qual eles seguiam na margem oposta e perigosamente estreita. Enfim, uma passagem em arco esculpida na rocha exatamente como a que precedia o rio gelado surgiu no corpo do paredão de pedra, o grupo seguiu por ali se sentindo muito mais seguro e aliviado. Foi então que a barulhada começou. O som ensurdecedor de furadeiras gigantes e um martelar incessante de milhares de picaretas minúsculas usadas para escavar e desprender dos cristais comuns as pedras realmente valiosas. Eles haviam chegado ao campo de mineração.

Uma área enorme de túneis e câmaras onde homens e mulheres minúsculos pegavam no pesado, operando máquinas enormes, no controle de robôs humanóides com braços e pernas poderosos, conduzindo pequenos trenós amarelos de esteira para o transporte das pedras extraídas das paredes cintilantes. Ali, o pequeno grupo de Yeovah se dispersou entre seus conhecidos, estes trabalhadores sequer deram bola para a passagem dos invasores do planeta: sabiam o que acontecia com quem era pego fazendo corpo mole, não podiam parar um minuto, o tempo inteiro sobre a mira dos androides metamorfos que incrivelmente fizeram pouco caso para a passagem do Apocalipse Club entre as máquinas e os escravos mineradores.

- Estão programados para focar no controle dos trabalhadores, não se preocupem – fez Donnick, traduzindo os resmungos de Yeovah que seguia à frente e com pressa, tentando não ficar sob a vista dos androides. Afinal ele também era um Alado e logo também era um escravo, de modo que deveria estar trabalhando.

Foi a partir da última fenda ínfima transposta que a atmosfera começou a pesar, e as correntes de ar estancaram num calor seco e abafado, tudo ao redor parecia estar fervendo. A escuridão ali era total.

- Estamos perto – traduziu.

E então aconteceu: um campo de poças de lava se abriu diante deles após descerem num fosso profundo e dobrarem uma curva sinuosa no túnel que o sucedia. Vaporoso, quente e incandescente, eram as três únicas palavras que poderiam descrever com perfeição o que estava diante dos olhos de todos. Ali era impossível não colocar as máscaras de oxigênio: o ar estava cheio de gases venenosos nocivos aos pulmões humanos, gases para os quais os pulmões de Yeovah já nasceram preparados.

- Vamos ter de atravessar isso aí?! – exclamou Pietro, perplexo com a ideia de ter de desviar daquelas bolhas de lava fumegante assassina intercalada por estalagmites pontiagudas e gêiseres nervosos e borbulhantes que estavam lançando jatos de água fervente a quilômetros de altura. O teto estava tão distante que era impossível enxergá-lo, e o calor ali embaixo era tanto que em poucos segundos eles estavam completamente empapados de suor, os átomos agitados faziam a paisagem ondular como asfalto quente sob os raios do sol do verão. E do outro lado, portas colossais, exatamente como aquelas que levavam à sala do trono de Aib’Somar na nave-mãe.

Os corações estavam à mil, as armas estavam a postos. Yeovah chiou.

- Ele disse que só pode vir até aqui. O que queremos está do outro lado daqueles portões, e o que nos quer também está lá – ele engoliu o ar em brasa em seco, ferindo a garganta já ressecada pelo calor.

Yeovah despediu-se cordialmente de cada um deles e partiu. A despedida foi mais demorada quando se tratou da calada e centrada Hikikomori. Eles ficaram se entreolhando durante o que pareceu um longo momento até se curvarem para frente respeitosamente.

A travessia do campo minado foi pavorosa e pareceu infinita durante alguns passos entre poças vermelhas e alaranjadas fumegantes cuspidoras de fogo, até acharem uma ponte de pedra alta cortando o terreno bem ao meio partindo de uma gruta no alto da parede oposta, exatamente na direção de onde eles haviam vindo. Não a tinham visto antes por não possuir nada que a ligasse ao solo, até as proximidades dos portões vermelhos repletos de tachões de ferro, onde colunas naturais grossas estavam fazendo base próxima à margem oposta sustentando uma passagem mais larga. Escalá-las não foi dificuldade. Dificuldade foi abrir os portões pesados, Hikikomori teve de usar o seu poder telecinético para movê-las, revelando uma câmara redonda e escura de paredes cristalinas puras e maciças. Estas refletiram a luz do campo de lava e iluminaram tudo de uma ponta a outra, revelando um mar de gaiolas penduradas no teto alto abobadado.

E exatamente no centro do lugar, uma gaiola gigantesca e dourada guardava dois pequenos e franzinos indivíduos: uma assustada e esbugalhada Ray na companhia de um pálido rapaz magricelo numa espécie de tanga grega, ambos sentados entre almofadas e brinquedos rodeados por esferas azuis flutuantes.

- PESSOAL! EU NÃO ACREDITO! – Ray se levantou histérica e correu para as grades, as lágrimas brotaram dos seus olhos desenfreadas, ela sequer as sentiu escorrerem pelo seu rosto e molharem seu pescoço magro.

- Não íamos te deixar pra trás! – gritou Fábia dando pulinhos e sacudindo seu báculo lá embaixo. A gaiola havia sido içada para cima após a partida de Aib’Koletis da câmara.

- Nunca faríamos uma coisa dessas! – Pietro ergueu sua bazuca sorridente, saudando a garota.

- Como vamos tirá-la de lá? – Christopher virou-se para Hikikomori em dúvida.

- A lâmina da sua foice corta tudo, mas acalme-se que ainda não acabou... – Hikikomori permanecia seria, desconfiada, o cenho duro franzido olhando de um lado para o outro – isto está fácil demais... fácil demais...

Os portões se fecharam lentamente atrás deles. Donnick até tentou correr para tentar mantê-los abertos, mas percebeu que seus esforços seriam ridículos e inúteis perto daqueles dois blocos vermelhos de metal pesando toneladas. Logo, tudo mergulhou numa escuridão total, o grupo viu-se refém de um silêncio ameaçador que foi cortando violentamente por um gorgolejo gutural arrepiante, eriçando cada centímetro de pele humana ali presente e ecoando pelas paredes da câmara, reverberando através das grades das jaulas e dependuradas no teto e invadindo seus ouvidos incitando o pavor que precede o desespero.

Exatamente embaixo da gaiola mais alta que ainda brilhava azul pelas esferas luminosas, um raio de luz dourada fez uma curva sinuosa e lenta contornando uma silhueta pavorosa e assustadoramente avantajada há poucos metros do grupo. Eles recuaram rumo aos portões trancados, sem reação alguma se não fugir do que estava por vir. O gorgolejo repetiu-se seguido pelo rápido som do canto entrecortado de uma baleia jubarte, aquilo enregelou a alma e acelerou as respirações de forma frenética: o desespero estava tomando forma bem diante dos seus olhos.

Ele tinha a forma de magníficas explosões de luz, róseas, vermelhas, amarelas, verdes, azuis, púrpuras e brancas, elas estavam preenchendo o contorno de músculos poderosos, ossos brutos, membranas grossas, juntas e mandíbulas assassinas de algo nunca antes visto pelo olho humano. Mais gorgolejos e rugidos animalescos originaram-se daquela criatura que se manifestava em forma de luz perante as figuras apavoradas e espremidas contra a saída de cinco humanos e uma sybila, empunhando armas em mãos suadas e nervosas.

Em segundos havia algo maior de que um ônibus parado exatamente à frente deles, observando-os de fendas profundas e amareladas que eram suas pupilas horizontais retangulares. Ele tinha cabeça e torso de baleia, quatro grossas pernas de réptil e uma cartilaginosa cauda de girino curtíssima em forma de remo na vertical, cujas membranas de finas barbatanas reluzentes ondulavam delicadamente (ou seria asquerosamente?), suas patas de elefante terminavam em três poderosas garras compridas que assim como o resto de seu corpo, eram totalmente transparentes.

Aquele era o Vigia, e sim, seu corpo era totalmente transparente, a aparência gelatinosa que sua massa corpórea ameaçadora passava enganava aos que não o conheciam: sua couraça era dura como aço, e seus músculos poderosos como cordas de bronze, e eles estavam acesos como uma árvore de natal. A luz que as reações químicas que em seu interior provocava refletiam-se nos cristais das paredes que em refração cortavam a escuridão e banhavam o mundo de luz. Ele abriu a boca para rugir, o canto de baleia transformou-se na melodia infernal de uma horda de gatos sendo torturados a sangue frio.

O Apocalipse Club teve de tapar os ouvidos para proteger os tímpanos agredidos. Christopher caiu de joelhos, Fábia fechou os olhos enquanto perdia-se em orações, Augusta estava congelada e Pietro só segurava sua bazuca diante do corpo porque não conseguia nem se mexer a ponto de puxar o gatilho e explodir uma bomba de energia no focinho da criatura. Apenas Donnick e Hikikomori permaneciam controlados diante daquela situação, apreensivos com certeza, mas com os ânimos controlados.

- CORRAM! – berrou Hikikomori. E eles não pensaram duas vezes. A criatura avançou contra eles num salto que fez tremer o chão, esmagando o lugar onde antes eles estiveram agrupados tentando fugir da figura oriunda de um pesadelo doentio. Suas poderosas garras compridas perfuraram o chão abrindo seis sulcos profundos. Ray Ann havia desmaiado na gaiola metros acima, Alado a havia amparado e tentava acordá-la sem sucesso. Lá embaixo o grupo corria sem rumo, numa câmara redonda onde não havia para onde ir, onde se esconder.

A criatura estava louca, rugindo sem parar e sem rumo na sua perseguição, pois o grupo estava totalmente disperso, correndo como formigas espantadas enquanto o chão tremia a cada salto que o monstro dava rumo ao diminuto corpo de uma de suas presas, que geralmente escapava por pouquíssimo. Os lasers, é óbvio, sequer faziam efeito.

- ELE TEM UMA ABERTURA NAS COSTAS! UMA ABERTURA NAS COSTAS! – a voz de Alado não conseguia se sobressair acima dos gritos de socorro e dos urros furiosos do monstro. – droga, eu não posso sair daqui para ajudá-los!

Repentinamente a criatura parou no centro da câmara colossal, seu papo anfíbio transparente inchou de tal modo repulsivo que Augusta não segurou o vômito enquanto observava àquela cena: seu papo dilatado estava ficando verde incandescente, uma bola de luz verde! A bocarra de baleia com cerdas no lugar de dentes abriu-se para lançar um jato poderoso de ácido fluorescente que ferveu o chão e derreteu os pilares de cristal que estavam em seu caminho. Os respingos daquela gosma sulfurosa que acertaram as roupas dos mais próximos perfuraram tão profundamente que causaram ferimentos superficiais na pele. O próprio vapor que aquele mar fétido exalava era corrosivo, torrando os pelinhos dos braços de Donnick enquanto ele tentava contornar a criatura e seguir as orientações que Alado havia gritado.

Mais jatos como aqueles vieram um após o outro sem intervalo entre eles, o monstro enchia seu papo e lançava a gosma o mais longe que podia. Em pouco tempo o ácido estava corroendo a sola das botas dos aventureiros, porque estava em toda a parte! O Vigia sequer precisava sair do lugar: estava numa posição estratégica exatamente no centro da câmara onde só precisava se virar sob os calcanhares para mudar de posição. Sua cauda de remo balançava preguiçosamente de um lado para o outro abanando o ar. Era ali que Donnick saltaria.

Sem pensar duas vezes, ele pulou e agarrou o mastro balançante. A criatura sequer sentiu que ele a havia tocado, e lutando para manter-se preso a sua pele escorregadia, o capitão iniciou a escalada do torso do animal enquanto este cuspia ácido desenfreado. As costas do bichão eram tão largas que ele podia ficar de pé ali em cima normalmente com a dose certa de equilíbrio, e foi o que ele fez. Mas então, como já era previsto, o ácido produzido pela criatura acabou, e o monstro pôs-se a corre outra vez atrás de suas presas, abrindo e fechando as mandíbulas poderosas de baleia enquanto avançava cada vez mais violento. Donnick agora estava agarrado às cerdas que cresciam nas costas da criatura, lutando para não escorregar.

“Você não pode continuar fugindo” era a voz de Hikikomori na cabeça de Christopher, reverberando como os urros da criatura em seus ouvidos “use a foice, esta é a chance de mostrar do que ela é capaz, confie nela, acredite em você”.

Ele queria, ele realmente desejava sentir o espírito de batalha que havia sentido mais cedo, mas a verdade era que estava se borrando de medo dos pés à cabeça! Aquela perseguição já o estava cansando, e mesmo com cãibras esporádicas ele continuava fugindo, tentando se esconder nas sombras, espantar o monstro com gritos ou golpes cegos da lâmina da sua foice, e isso não surtia efeito algum na criatura, só parecia deixá-la mais furiosa! Enquanto ele fugia, Donnick encarava o monstro de frente! Ele quem deveria ser o Cavaleiro de Ouro, não Chris! Christopher Umbrella era apenas um professor míope de universidade, desastrado, antissocial e com um leve vício em cafeína, seu trabalho sempre fora olhar as estrelas e estudá-las na comodidade do seu laboratório. Aventuras, heroísmo, batalhas... Aquilo não era para ele! Se alguém no campus da universidade ouvisse aquela história de Cavaleiro Intergaláctico, seria riso na certa! Não, ele não era isso. Seus joelhos estavam bambos quando o lapso veio.

Tudo sumiu de repente, e o rosto dela aparece. Ávido, dourado, sorridente. Olhos profundos e caramelados, brilhantes como Andrômeda vista num telescópio potente nas noites mais límpidas do planeta Terra. Cabelos amendoados sempre presos em penteados exuberantes, membros longos e delgados, um tanto brutos, mas ao mesmo tempo delicados em seus movimentos. Azura. Ela estava ali, dentro dele, em algum lugar, fazendo seu coração ferver outra vez. O fogo estava ali. E então ele parou bem diante da criatura, virou-se para ela, ajeitou seus óculos de aro grosso no rosto, curvou-se para frente, apoiou-se nas pernas e apontou a foice em direção ao animal, como um caçador nas savanas africanas pronto para abater a sua presa.

E então o monstro o engoliu.

- NÃO! – urrou Donnick a plenos pulmões.

- KYAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHR! – Ray Ann guinchou de sua jaula logo acima. Era o fim.

O Vigia ergueu sua cabeça de baleia e gorgolejou de satisfação, jorrando ácido através da fissura no topo do seu crânio. Por pouco o jato não atingiu Donnick, que rebolou de lado e caiu de costas nos cristais pontiagudos logo abaixo, sua exclamação de dor foi abafada como um soco no estômago. O restante do grupo estava em estado de choque.

Mas o panorama mudou de repente! O monstro arregalou os olhos, apoiou-se nas patas traseiras, encolheu-se sobre ele mesmo quase como um tatu, pondo-se a estrebuchar logo depois, de costas para o chão exatamente ao lado do capitão caído. Hikikomori correu em socorro do homem. As luzes coloridas que sua estrutura transparente produzia foram se tornando espasmos vermelhos e róseos e seus gorgolejos guturais se tornaram cantos dolorosos de baleia. Um pedido de socorro. Por último, sua barriga inchou feito uma bolha, uma silhueta humana se revolvia dentro da placenta, e aquilo estourou como um balão, jorrando vísceras fluorescentes em todas as direções.

A lança com a foice em forma de bico de papagaio na sua mais distante extremidade agora não era mais negra, era dourada, dourada como um raiar do sol. A pedra que ela ostentava nunca estivera tão radiante. E empunhando-a estava um arfante Professor Umbrella, completamente nu e coberto de ácido verde. A sala mergulhou num silêncio estarrecido, ele inchou o peito a toda potência e urrou. Vitória!

- MAL-DI-TOS! – Aib’Koletis explodiu os cristais refratores que criavam o holograma em sua sala do trono – ELES MATARAM O MEU VIGIA! ELES MATARAM O LEVIATHAN! MATARAM-NO! EU OS AMALDIÇOO! OS AMALDIÇOO!

Fafis estava encolhida num canto distante em seu manto preto, procurando passar despercebida perante a fúria de sua soberana.

- FAFIS, SUA INÚTIL! – urrou a Arquiduquesa – ESVAZIE A NAVE, ENVIE TODA A TROPA DISPONÍVEL DE SOLDADOS SEM ROSTO PARA AQUELA CAVERNA! ISSO NÃO VAI FICAR ASSIM NÃO VAI! – os tentáculos da criatura haviam dobrado de tamanho, suas costas encurvaram-se para frente dando origem a pontiagudos espinhos oriundos dos ossos que compunham a coluna vertebral.

- Sim senhora! – pela primeira vez, a ratinha estava sentindo a adrenalina correndo nas veias – farei isso já! – disse ela, baixinho.

- CORRAAAAAAA!

E assim a subalterna fez.

- Não precisa, é sério – Christopher se limpava da gosma fluorescente ácida com a pequena jaqueta oferecida por Fábia enquanto Augusta tirava o excesso de muco estomacal dos seus cabelos ondulados. O capitão Donnick já retirava sua esfarrapada jaqueta encardida do corpo para oferecê-la ao Professor. Pietro mantinha o rosto virado para o lado contrário, constrangido e enojado ao mesmo tempo. – veja só, a Hikikomori anda nua!
Todos olharam para a figura feminina gigante ao lado que usava um tapa-sexo branco triangular e dois cones de borracha em cima dos mamilos. Ela olhou para eles, séria, e deu de ombros.

- Mas isso é parte da cultura dela – disse Augusta, limpando as lentes dos óculos do professor – e enquanto você não for uma Sybila, não tem permissão para andar com as partes pudendas de fora! – ela estava completamente corada. Quase todos estavam, Ray Ann e Alado observavam a cena, divertidos, lá de cima. Logo, ele estava enfiado na enorme jaqueta do capitão, empunhando a sua foice, agora dourada.

- Porque ela ficou assim? – perguntou Fábia a Hikikomori, apontando para a arma do companheiro. A Sybila sorriu.

- A foice estava adormecida e envolta em trevas desde que o Cavaleiro e seus escudeiros desapareceram. Agora que foi usada novamente pelo próprio, ela acordou e se livrou do manto que a cobria...

Pietro, que ainda tinha o olhar desviado, pegou-se olhando para cima, para dois rostos confusos pendurados no alto.

- E o que vamos fazer com aqueles dois? – ele apontou para Ray Ann e Alado, com as cabeças enfiadas entre as barras de ouro do cativeiro.

Continua...

Bruxa Espacial?



Fazia um tempo que eu não desenhava (desde aqueles esboços de arte conceitual para TBM), então resolvi esboçar a sensual Hikikomori, que para quem está acompanhando a série Space Oddity já é uma cara conhecida e com certeza, adorada =^.^= a primeira personagem que criei para a história e de todas a minha favorita, com certeza.


Hikikomori é uma espécie de "bruxa" alienígena pertencente a uma raça chamada Sybila, elas crescem feito monges em luas distantes e planetas desertos, onde são treinadas dia após dia por sacerdotisas. Elas são criadas como monges, longe da civilização e repletas de privações, tudo isso para que aprendam a conhecer o universo e fazer parte dele física e espiritualmente, logo, elas aprendem alguns truques como manipular a matéria, projeção astral e rastreamento (elas conhecem cada pedaço do universo como a palma da própria mão sem jamais terem os visitado), é como se o universo se tornasse uma extensão do corpo delas após o ritual de maturidade Sybila. Entre outros motivos, este foi o principal incentivo para o Império caçar esta raça até o último indivíduo, visando tê-las a serviço da conquista dos sistemas estelares mais distantes...


É claro que isso não aconteceu, e todas as que foram aprisionadas preferiram a morte do que ceder à opressão. Exceto Hikikomori, que assumiu o legado de sua mãe e se tornou uma Arquiduquesa após a morte desta.



Enfim, puro amor apenas

domingo, 11 de março de 2012

Hey, Pessoal!

Faz tempo que não deixo uma mensagem aqui para os leitores, não é não? Nem a minha secretária Veronica tem feito as participações especiais dela, também anda sumida!

Bom, eu andava meio desmotivado porque logo no comecinho de Space Oddity o blog tava morgado e ninguém lia, até pensei em cancelar a série no final do primeiro arco (que será postado essa semana ainda), e deixar o blog às traças de uma vez por todas. Mas então uma grande amiga chamada Ana Paula começou a ler e pedir por capítulos novos, e por um tempo eu fiquei escrevendo praticamente só pra ela, mas depois outras pessoas começaram a se interessar pela história também e cobrar por ela, vejam só!

Ontem fiz um pequeno script com roteiros do segundo arco que vão até o capítulo 18, só digo uma coisa: BABADO, CONFUSÃO E GRITARIA! Não vou revelar mais detalhes do que vai acontecer daqui pra frente por que se não vou estragar a brincadeira, por isso prefiro deixar vocês curiosos mesmo. Acho que de longe Space Oddity é a história mais original e íntima que já escrevi até agora, pela primeira vez eu não estou me baseando em algo que já foi feito para criar uma crônica de ficção científica. Vocês podem pensar que sim, mas eu não sou fã de Star Wars, sequer cheguei a assistir a um único filme, Star Trek então eu passo longe, por pura falta de interesse mesmo. Mas sempre fui fascinado pelo universo e pela possibilidade da existência de vida fora do nosso planeta, de certa forma Space Oddity remonta à minha infância. Eu costumava brincar de viajante do espaço quando tinha uns 6 anos, e desde aquela época eu sempre procurei saber mais sobre o universo, sobre o espaço. Eu tinha um Atlas Celeste antiquíssimo que costumava passar horas olhando e folheando, decorando nomes de constelações e estrelas, achava o máximo!

E agora me dei esta oportunidade de escrever sobre algo que eu nunca havia escrito antes, mas que sempre tive vontade, por isso o longo período de espera entre um capítulo e outro: eu não estou habituado a escrever sobre viagens ao espaço, minha área sempre foi mitologia, magia, mistério e suspense. Então, de certo modo, eu nunca sei o que vai acontecer no próximo capítulo, eu não tenho um roteiro imaginário traçado na minha cabeça com a história do começo ao fim, e as ideias demoram a vir justamente por isso: eu não estou habituado a escrever este tipo de ficção científica. A própria The Big Machine e seus spin-offs foram uma verdadeira aventura para mim, uma pretensão absurda da minha parte, eu quase não conseguia descrever os robôs!

Escrever Space Oddity está sendo um verdadeiro desafio, e está exigindo dedicação e muita concentração, agradeço aos deuses pelos surtinhos de inspiração que tenho de madrugada! Espero que S.O. consiga cativar leitores novos para o blog, e que aqueles que estão lendo e acompanhando tudo, POR FAVOR, não tenham preguiça e comentem MESMO, é motivante para mim :')

Amo todos vocês,

beijinhos,

Antonio Fernandes.

sexta-feira, 2 de março de 2012

PARTE DEZ: HABITANTES DA ESCURIDÃO!


O mundo parecia ainda estar girando numa vertigem sem fim, mesmo com toda aquela escuridão a sua volta. Ela não conseguia distinguir a diferença entre estar de olhos fechados ou ter as pálpebras recolhidas, era tudo a mesma coisa. Ausência total de luz, escuro infinito, e aquela estranha sensação de estar rodando sem sair do lugar. Qual a última lembrança? Estar caindo, escorregando para o desconhecido de cabeça pra baixo, então o baque surdo e duro contra a rocha e o torpor de uma dor que nunca viria, porque ela deveria estar morta. Mas ela não encontrou o inferno que esperava do outro lado, sequer passou perto do céu. Houve um sussurro baixo e inaudível como um ciciar, o sopro de um espírito das trevas talvez, ecoando das profundezas do abismo.

- Apenas fique parada e não se mexa.Você vai estar bem logo, logo – dizia a voz. Ela repetiu a primeira sentença várias vezes. Não se mexa. Não se mova. Se não se mexesse como saberia que ainda estava viva? Ela precisava se sentir, mas não havia corpo.
Houve um gorgolejar distante e agourento, que chicoteou contra paredes invisíveis e ecoou através de estalactites e estalagmites ocultas pelas sombras. Aquele som encheu o ar escuro de apreensão e medo. Algo se retesou de pavor ao seu lado, ela pode sentir o medo exalando do que quer que estivesse velando sua semi-morte.

- Não, ela ainda não está boa! – ciciou a voz outra vez – vá para lá! Por favor! Não venha pra cá! – o lamento foi seguido por uma súplica em uma estranha variante do árabe. Ela jamais saberia dizer o que aqueles sussurros significavam. O gorgolejo gutural repetiu-se, ainda mais próximo que antes. Luzes vermelhas, verdes, azuis e amarelas começaram a refletir fracas num teto alto e irregular, cravejado de cristais cintilantes. Que espetáculo maravilhoso, ela pensou. Mas sentiu que seu acompanhante no escuro tinha uma opinião contrária quanto àquele show de explosões luminosas. Ela tentou abrir a boca para falar, para protestar e perguntar, mas longos e finos dedos sobrepuseram-se em seus lábios impedindo qualquer tipo de movimento.

Um praguejo e então a suspensão. Ela foi erguida no ar e carregada em costas ossudas e largas pertencentes a um corpo que corria na escuridão, corria contra o tempo, corria para as profundezas, para longe das luzes. Mas ela não queria ficar longe das luzes, elas eram belas! Elas eram lindas! Ela queria aproximar-se, não queria o escuro, ela estava odiando o escuro naquele momento, e a distância das explosões coloridas só o tornava mais maciço e abafado. Paredes estavam se fechando ao seu redor. Algo a estava machucando, entrando em atrito com as suas costelas, algo nas costas de seu raptor espetava e raspava em sua barriga durante a fuga para longe das luzes. Uma mochila? O que seria? Era aveludado como um monte de plumas em alguns pontos, mas duro e áspero como couro em linhas retas como tiras, metido exatamente entre as omoplatas. Penas, ela tinha certeza que havia penas ali embaixo.

As luzes estavam ficando cada vez mais próximas, isso era bom ou ruim? A criatura que a carregava para longe arfava nervosa e cansada, sua estrutura magra estremecia em baixo do peso do corpo de Ray Ann. Ela podia sentir seu desespero, e repentinamente começou a compartilhá-lo sem motivo algum ao ver as luzes róseas e alaranjadas como um pôr-do-sol subterrâneo refletirem nas facetas cristalinas das pedras preciosas nas paredes e nos pilares rochosos de um largo túnel em arco. Tudo ali parecia ser feito de vidro. Que mundo místico era aquele onde belas luzes significavam perigo?

O gorgolejo agourento tornou-se impossivelmente alto, parecia estar clamando ao pé dos seus ouvidos, ele foi seguido por um guincho infernal de mil felinos domésticos sendo torturados, ressonando nas paredes de cristal com violência, agredindo profundamente seus tímpanos já frágeis pela queda. O processo de cura total ainda demoraria um tempo considerável para que ela reconquistasse o poder sobre seus membros, seus músculos flácidos, para que ela alcançasse a mínima noção do que estava havendo à sua volta. As luzes se tornaram tão próximas que a cegavam, a escuridão estava sendo bombardeada por projéteis coloridos, uma chuva arco-íris causada pela refração dos cristais que compunham os corredores do labirinto infinito.

O guincho repetiu-se. Ela gritou de volta, um reflexo de seu corpo que estava começando a responder. E então seu raptor capotou. Tudo se tornou escuro outra vez.


♦ ♦ ♦



- Os boatos que se espalharam pelas galáxias algum tempo após o desaparecimento de Azura e seus Arquiduques eram de que eles estariam dormindo em sono criogênico enquanto o exército de androides fazia o trabalho sujo, controlava uma parte considerável do universo conhecido. Mas é claro que isso era puro mito.

- Há áreas inexploradas do Universo ainda? – perguntou Pietro, sentando-se à beira da piscina natural caleidoscópica que a queda d’água cristalina formava aos pés de um enorme paredão de pedra na outra extremidade da colossal câmara que abrigava a floresta de cogumelos gigantes. Ela escorria delicada por entre as saliências e reentrâncias cristalinas, batendo contra os degraus de rocha, vindo das profundezas do submundo através de uma caverna de boca larga localizada no alto do paredão, onde este se curvava para formar o teto abobadado cravejado de diamantes raros multicolores.

- É óbvio que sim. O universo é grande demais, até mesmo para a frota de naves e a tecnologia que os ancestrais de Azuratrouxeram do universo de onde eles vieram – disse a Sybila, abraçando seus joelhos contra o corpo seminu à beira da água, logo abaixo da elevação onde Pietro assentava-se, sereno, procurando sinal dos desaparecidos da expedição nos arredores. Nem sinal de Donnick ou Ray Ann em meio ao mar de chapéus de cogumelo onde uma ou outra palmeira primitiva despontava cinicamente.

- Você está dizendo que vivemos mesmo num multiverso, como as teorias supõem? – Pietro espantou-se repentinamente após alguns segundos de silêncio, onde tudo o que se podia ouvir eram o canto fúnebre dos estranhos pássaros cegos habitantes das cavernas e o som da gélida cascata de água borrifando nuvens de minúsculas gotículas no mundo ao redor. A gruta de onde o rio subterrâneo brotava despejando suas águas de brilho cálido assemelhava-se a enorme bocarra escancarada de um dragão faminto. Por entre seus dentes, pequenas criaturinhas vermelhas (um bizarro misto entre sagüis e morcegos totalmente desprovidos de pelos) brincavam chiando como pardais irrequietos.

Hikikomori permaneceu calada.

- Isso é uma coisa que não convém a humanos no momento, é muito além do que vocês podem compreender. Não há palavras na língua de vocês que possa explicar isto, não ainda... – ela permaneceu calada enquanto molhava os dedos dos pés numa poça gelada. Christopher Umbrella e Fábia nadavam no pequeno e profundo lago de um lado para o outro, gargalhando e espirrando água para todos os lados, atiçando os pequenos mistos de macaco e morcego logo acima. Eles voejavam nervosos através da umidade, dando rasantes sobre a cabeça dos invasores, inofensivos, só estavam assustados. Não havia terra ou areia no fundo daquela piscina natural, era rocha pura e solidificada, compactada e reluzente. Algo semelhante a um piso cravejado de cristais de titânio sendo moldados pelo impacto das águas através das eras em que a boca do réptil despejou seu vômito prateado contra o piso da caverna.

- Então, você falava sobre...

- Os Aib, os escolhidos – prosseguiu Hikikomori, interrompendo-o repentinamente. Soou tão humana que parecia até estar aliviada por ter mudado de assunto –alguns mitos sobre um possível sono criogênico se espalharam universo afora. Algo inventado para deixar a população mais à vontade, mais tranquila enquanto os androides metamorfos assumiam o controle pacificamente incumbidos por seus superiores, sem a violência de antes. Enquanto isso os Arquiduques se refugiavam no que vocês chamam de Via-Láctea, por ser um ponto distante e tranquilo onde eles poderiam tirar... “férias”, por assim dizer – ela deu de ombros pondo-se de pé – essa região do universo é muito tranquila, não há vida inteligente reconhecida por bilhares de bilhões de anos-luz... Pelo menos não mais. É por isso que eles se instalaram nas áreas correspondentes às suas constelações, onde puderam estabelecer pequenos “reinos” onde controlam tudo a mão de ferro enquanto se divertem. Vocês tiveram um exemplo disso conhecendo o espetáculo de horrores da Aib’Somar de perto, por sorte isso não vai mais acontecer, não em Taurus.

Pietro ouvia aquilo tudo com uma atenção quase estudantil, uma curiosidade atiçada por querer entender, e por isso não se detinha ao sentir as perguntas jorrando como a cascata cristalina poucos metros à sua frente rodeada por um santuário de enormes pilares rochosos salientes através dos quais riachos cortavam cavernas afora.

- E onde estamos exatamente, agora? – perguntou.

- Acabamos de entrar numa região controlada por Aib’Koletis, ela tem uma área enorme sob o poder dela, a terça parte do exército pertencente a ela é uma das mais numerosas entre os Aib. – Fábia e seu Professor Umbrella saíam da água naquele momento, se enxugando enquanto degustavam as últimas fatias de uma suculenta fruta com gosto de sorvete e aparência de pitaya, se inserindo na conversa e atentando às explicações de Hikikomori. – nos tempos antigos ela era responsável pela mineração dos recursos naturais dos planetas conquistados, enquanto seu marido, Aib’Paguru, era responsável pelo fornecimento de escravos a ela. Eram parceiros em ambos os sentidos, por amor ou por negócios, nunca entendi por que se separaram...

- E porque essa Aib’Koletis se refugiou aqui nessas cavernas escuras? – perguntou Christopher enquanto sacudia os cabelos encharcados. A água dali parecia ser menos densa que a da terra, evaporava com uma facilidade tremenda – porque ela não ergueu cidades e apodreceu no luxo? Essas cavernas são mais do que uma mina de ouro! Olha só pra isso! – o professor abaixou-se e carregou entre as mãos em concha uma rocha negra que refletia em púrpura e verde, erguendo-a a altura dos olhos de seus companheiros para que vissem a beleza da peça esculpida pela natureza. Os reflexos daquele metal precioso o fizeram lembrar de algo, e como se a pedra estivesse eletrocutando seus dedos, soltou-a com violência, olhando ao redor desesperado – MINHA FOICE!

Hikikomori pegou estendeu as mãos e pegou o punho cerrado de Christopher entre seus dedos. Era a primeira vez que a alienígena tocava em um deles, o que era muito estranho e levantou o leve lençol da surpresa no ar.

- Acalme-se, Cavaleiro – ela disse, sorridente. Seu sorriso era largo, brilhante e sincero. ET’s poderiam ser tão belas assim? – ela virá a você quando precisar de ajuda. Ela nunca lhe abandonará.

Como se para certificarem-se de que suas armas estavam ali, Pietro e Fábia vasculharam o espaço ao redor, onde os pertences da expedição se acumulavam em um montinho de roupas e artefatos, os quais Hikikomori estava protegendo enquanto se lavavam e alimentavam-se após um longo período sem banho ou comida dignas. Frutas das cavernas não eram tão dignas assim e não rendiam no estômago, caíam leves demais, porém eram essenciais se eles quisessem permanecer de pé e acordados, era o que tinha.

A tentativa da Sybila de acalmar o Professor Umbrella – agora tão jovial e expansivo que em nada lembrava o recatado e atrapalhado professor universitário que fora um dia – não funcionou muito bem, ele continuou tenso, os músculos retesados enquanto ele vasculhava sua mente em busca de lembranças relapsas do momento da queda. Onde estaria a foice a esta altura? Perdida naquele mar de esplêndidos cogumelos gigantes.

- AMANITA MUSCARIA! – o brado veio de um amontoado não tão distante de caules brancos lustrosos coroados por volumosos chapéus vermelhos de abas largas. Ainda pequenos em comparação aos outros fungos que ali cresciam – ERA PARA ESTARMOS DOIDÕES AGORA! – Augusta, da qual eles quase haviam esquecido a existência pelo silêncio, surgiu correndo carregando um pequeno cogumelo nas mãos. – mas por algum motivo ele não nos fez mal! Estamos numa floresta de cogumelos venenosos gigantes e não estamos loucos! Os esporos deles não fizeram mal ao nosso sistema nervoso, isso é incrível!

- Talvez sejam grande demais para que nós respiremos eles – Fábia deu de ombros, lembrando das bolotas brancas felpudas em revoada.

- Tem razão, talvez você tenha razão! – Augusta estava eufórica, os olhos brilhavam mais que as pedras preciosas que compunham o chão rochoso – Nossa! Isso é incrível! Encontramos um bioma alienígena completo! COMPLETINHO!

- Acho que não hein... – Pietro cortou a animação da garota que girava de braços abertos e cabeça jogava pra trás, numa tentativa de abraçar o novo mundo que se abria diante dos seus olhos – temos produtores e consumidores primários ao nosso redor, cadê os predadores?

Um manto fúnebre de silêncio caiu sobre o grupo. E se eles estivessem sendo observados por monstros terríveis enquanto descansavam da longa viagem? E se Donnick e Ray a essa altura tivessem virado janta de crocodilo alienígena? Gotículas de suor se formaram nas testas franzidas enquanto os olhos vasculhavam a escuridão das florestas ao redor, onde a refração dos cristais não era o bastante para revelar tudo o que estivesse oculto. A luz que escapava das frestas no teto da caverna só eram suficiente para refletir entre as pedras de cristal e diluir-se em raios multicoloridos, mas ainda assim sombrios.

- Acalmem-se, viajantes – apazigouHikikomori, caminhando para o centro do grupo com seus quase dois metros de altura – os grandes predadores destas cavernas abrigam os túneis e abismos mais profundos do labirinto, e aqui estamos praticamente na superfície – ela olhou para cima, para as falhas entre as falsas estrelas. Provavelmente o espaço entre enormes pedregulhos numa pedreira em meio ao deserto escaldante lá em cima. Ali embaixo eles sequer precisavam das máscaras de gás.

Pietro desceu de seu trono reluzente de pedra, com os ombros arriados e o olhar suplicante.

- Me diga por favor que não temos de descer até esses túneis! Eu te imploro!
Hikikomori abaixou o olhar, um pouco divertida.

- Não acredito! – ele levou a mão à testa em descrença.

Os que estavam quase despidos vestiram suas roupas úmidas, os que estavam desarmados empunharam suas armas. Fábia ainda estava tentando entender o que seu meigo báculo poderia fazer de tão grave a ponto de a Sybila manter vista grossa sobre ela constantemente, e Pietro ainda estava treinando para apoiar-se nas pernas ao usar sua bazuca de energia. Augusta mantinha-se maravilhada com o bioma alienígena recém-descoberto, andando de um lado para o outro, agachada observando pequenos seres peludos semelhante a rãs esconderem-se entre os cogumelos menores. Era hora de iniciar as buscas pelos companheiros perdidos.


♦ ♦ ♦



- הואמתעורר–alguém sussurrou em hebraico ao pé do seu ouvido. Lábios muito finos roçaram no lóbulo da orelha enregelada, arrepiando os pelos dos seus braços e da nuca. Mas a voz não parecia estar falando com ele, aquele tom estava uma nota acima do que seria usado em particular, numa conversa realmente sussurrada. A voz só estava baixa, e um pouco distante, por isso se parecia um sussurro leve, angelical. Porque em hebraico? Ele sabia que era hebraico porque havia sido forçado a aulas de línguas mortas na academia militar, mas porque estava ouvindo os espíritos sussurrarem em hebraico no limbo?

Não, ele não estava no limbo. As sensações eram muito reais. Ele ainda respirava profundamente, a umidade de um lugar abafado impregnava sua pele orvalhando os vincos do despertar perturbado que se formavam na testa. Sons de passos, conversas paralelas, pessoas nervosas, pedrinhas estalando no chão sob a pressão do peso de pés nervosos, tão próximos e ao mesmo tempo tão longe. Muitas pessoas velavam o seu despertar para um novo mundo.

Aos poucos ele pôde compreender em parte o que estava sendo sussurrado pelas almas invisíveis no escuro.

- Você viu quando ele caiu?

- De onde ele veio?

- Ele veio lá de cima.

- Não há nada lá em cima!

- Um enorme gigante de ferro

- Uma nave, seu bobo.

- Sim, desceu do céu.

- Haviam outros!

- Cavaleiro de Ouro?

- A foice!

- Foice?

- Quem é este?

Uma forte luz azul invadiu o que revelou ser uma câmara abarrotada de vultos pálidos e franzinos, figuras humanoides escondidas no escuro tiveram suas silhuetas expostas pelo clarão repentino. Ele não se deteve, teve de abrir os olhos e tentar se situar mesmo em meio à tanta ânsia e tontura. Aquelas criaturas eram pouco mais baixas que humanos, magros, os músculos bem esculpidos, pele clara onde mapas de veias se desenhavam, profundos olhos cinzentos, azuis e violeta vasculhando a escuridão, refletindo a luz repentina. Os cabelos ondulados e muito maltratados lhes caíam quase sempre pelas costas, prateados, brilhando como os cristais encrustados nas paredes da câmara preciosa. Rostos muito finos, assustados, acuados, nervosos, cochichando pelos cantos costurando olhadelas rápidas em sua direção através das conversas.

- Quem são vocês? – perguntou o capitão Donnick, apoiando-se nos cotovelos com dificuldade. Houve um alarde, seguido pelo som de pedras rolando, chão sendo revolvido, vozes tensas, quase apavoradas.

- Acalme-se viajante do espaço – a voz vinha da luz, quase um zumbido ancestral. O espectro luminoso foi tomando forma (ou talvez seus olhos apenas estivessem se adaptando à luz), criando cabeça, braços, pernas e curtos cabelos prateados encaracolados. Era uma criatura pálida tão magra quanto as outras, mas muito mais velha, um ancião segurando uma espécie de lanterna em forma de meia lua diante do próprio rosto, um rosto fino, magro, de nariz comprido e lábios finos – você está seguro conosco, aqui o Vigia não pode lhe fazer mal.

- Do que... Do que vocês... estão falando? – sua voz falhava entrecortada pelas agulhadas violentas do cérebro batendo contra a testa, insistindo em interromper a linha de raciocínio da fala.

- O Vigia pegou o Príncipe outra vez, e levou uma das suas também. – o brilho da lanterna azul em forma de lua pendurada numa espécie de fio de fibra prateada oscilava como um pulsar, enviando ondas de luz, ora fracas, ora fortes, banhando os rostos alienígenas apreensivos que ainda velavam um corpo agora vivo, em um quase pleno despertar – seus irmãos estão caminhando pelas Florestas Vermelhas rumo ao Vale das Sombras da Morte, onde encontrarão a ruína completa. A foice do Cavaleiro está conosco, e cabe a você devolve-la a ele.

O ancião magricelo estendeu-lhe a mão. Ele admirou os dedos finos e ossudos durante um momento, a pele semitransparente banhada de azul, unhas compridas e mal tratadas. Os olhos enluarados do velho brilharam, e um par de pequenas asas atrofiadas esticou-se fracamente, tímido atrás da silhueta sombria da criatura, como um velho amigo estropiado dando olá ao inusitado visitante. Donnick arregalou os olhos num misto de assombro e admiração. Sem hesitar mais um segundo, agarrou a palma da mão do ancião repentinamente cheio de confiança. Uma linguagem da alma estava se desenrolando ali, iluminando do olhar do alienígena para os olhos do humano. Ele soube naquele momento que tinha encontrado um aliado, mesmo que os outros seres ali presentes estivessem estremecendo de medo à sua imagem.


♦ ♦ ♦



Quando Ray Ann se acordou (desta vez completamente, sem um único resquício de sonolência ou torpor momentâneo, sua cabeça estava no lugar), já não estava mais tão escuro quanto da última vez, e as explosões luminosas que vira em seu sonho angustiante haviam desaparecido. Ela não tinha certeza de nada, não tinha certeza de onde estava, não tinha certeza de que estava viva, e não tinha certeza de que as suas últimas e embaçadas lembranças foram sonho ou haviam realmente acontecido. As luzes, as paredes de cristais espelhados, refletindo vultos numa cadeia infinita de reflexos, onde brilhos coloridos iam e voltavam numa tempestade de cores fulgurantes. Desta vez tudo estava escuro, de verdade.

- Que bom que você acordou!

O som da voz baixa sussurrada espantou-a a ponto de fazê-la saltar no lugar e ir parar longe da sua origem, se arrastando feito uma aranha nervosa sob suas patas, usando os pés para tomar impulso e as mãos para tatear o caminho às cegas às suas costas.

- Oh, me desculpe por ter lhe assustado! Eu não preten...

- QUEM É VOCÊ? QUEM ESTÁ AÍ?! – suas costas chocaram-se com força contra grossas barras de ferro. Uma cela? Ela estava presa? O susto foi tão grande quanto ter escutado aquela voz vinda do além logo após despertar, tanto que as lágrimas brotaram quase automaticamente, escorrendo pelo seu rosto aos jorros enquanto os soluços se empurravam garganta acima, seus pelos estavam todos arrepiados, cada centímetro do seu corpo tremia de pavor. Se ela possuísse um rabo, com certeza estaria esticado para cima e espichado feito um escovão. Como um gato acanhado, ela tentou se firmar nos pés e se colocar de pé, sem sucesso. A coisa no escuro estava mais perto.

- Não fique nervosa! Eu juro que não queria te fazer mal, eu não pensava que o Vigia iria me encontrar tão próximo da superfície, ele nunca vai lá, é claro demais! Eu só queria te devolver para os seus irmãos... – a voz começou animada e foi perdendo a força até se tornar baixa e lamentosa, quase uma lamúria.

- Mas eu não tenho irmãos! – foi a única coisa que ela conseguiu pensar em responder.

- Eu vi quando vocês vieram de cima, meus irmãos também viram, eu estava com eles, mas eles foram atrás do outro, do Semelhante. Eu preferi ir atrás de você, porque você era pequena e mais frágil...

- Do que você está falando?! Eu não estou entendendo nada! QUEM É VOCÊ?!

- Eu sou Alado, Príncipe dos Pássaros, me perdoe, por favor, eu lhe imploro! – mãos frias procuraram as suas no escuro, e quando as encontraram, geraram calor, uma estranha sensação de paz e tranquilidade foi iluminando sua alma e acalmando seus ânimos. De repente viu-se segura, protegida, não mais a gata selvagem ameaçada de segundos atrás, temendo pela vida. Quase sentiu a necessidade de agarrar-se ao dono daquelas mãos frias (e ao mesmo tempo estranhamente quentes) e aninhar-se em seus braços, o calor que ele emanava, mesmo no escuro, a incitava aproximar-se, mas seu lado racional ainda não havia deixado o corpo completamente, ela ainda estava desconfiada, apreensiva. Assustada.

- Onde eu estou agora, Alado? – sentiu-se estranha, mas teve de pronunciar aquele nome fora do pensamento, para provar a si mesma que ele era real, que havia uma pessoa ali, e não um monstro alienígena como os transportados em Taurus nos contêineres. Oh, Deus! E se ela tivesse sido capturada outra vez?! E se estivesse rumo a um novo coliseu para morrer nas garras de alguma criatura do espaço?! A lembrança do período interminável sendo transportada feito um animal, indo de porto em porto em sistemas solares distantes acertou suas veias feito um raio preenchendo o lugar do sangue dentro do corpo. Outro arrepio a percorreu.

- O Vigia nos trouxe para a minha gaiola. Não sei porque ele poupou a sua vida, eu lutei para salvá-la Ray Ann, eu tentei, achava que ele fosse matá-la! Mas não fui rápido o bastante – a voz tornou-se pensativa – e ele não a matou... Por quê?

- O q...

- Oh, não! – a voz atingiu uma oitava mais alta do que costumava ser, o costume de ouvi-la sussurrada assustou Ray Ann – ela só pode saber que você está aqui! Ela mandou o Vigia trazer você para cá! Ela viu vocês chegarem de nave, e ela mandou os Caçadores destruírem ela na superfície, mas ela levantou voo sozinha e isso a deixou raivosa... Por isso ela estava agitada mais cedo! Agora tudo faz sentido!

- Eu não estou entendendo nada do que você está falando! Quem é o Vigia, quem são esses Caçadores e quem é ELA?!

Uma lufada de ar quente atingiu-lhe no rosto, perfurando seus pulmões com violência ao puxar a respiração com o espanto, numa sufocação quase imediata, a sensação de se afogar sem ao menos estar submersa a lançou contra as grades às suas costas mais uma vez, o cessar do contato com as mãos geladas que a acalmavam foi desesperador. Junto do calor excessivo veio a luz, o portão do inferno havia se aberto diante dos seus olhos, os quais ela tentava proteger a todo custo.

Não havia mais trevas ao redor então, e a luz intensa que atravessava o portal inundou o mundo ao redor como um jorro de lava, revelando uma cadeia infinita de gaiolas enferrujadas dependuradas sob o teto alto da câmara de modo decrépito em grossas correntes negras. A luz que vinha de fora não era tão forte a ponto de cegá-la, mas as paredes de diamante puro refletiam aquele brilho intenso violentamente e triplicavam a iluminação em refração, transformando o lugar num mar de arco-íris. As cores se diluindo eram tão nocivas quanto um choque direto na retina, e quando os olhos se adaptaram àquela iluminação agressiva ela finalmente pôde ver onde estava:

Presa, trancada junto a um belo rapaz franzino dentro da maior de todas as gaiolas, completamente redonda e de piso plano, dourado e reluzente recoberto por luxuosas almofadas e tapetes felpudos. Havia muitos livros espalhados por ali, e brinquedos também, assim como aparelhos eletrônicos de todos os tipos – alguns totalmente desconhecidos e outros tantos muito semelhantes aos encontrados na Terra – e isto foi uma surpresa e tanto para ela. Em sua cabeça, Ray Ann se imaginava no pior e mais profundo calabouço daquele planeta morto, ou em uma jaula suja, imunda, a caminho da próxima arena de batalha.

Mas esta surpresa não foi o bastante para entorpecer o pavor que encheu seu peito ao olhar ao redor e mais além, para fora das grades cristalinas da gaiola: as outras jaulas de todas as formas e tamanhos abrangentes a geometria conhecidaestavam habitadas por esqueletos e múmias onde tufos de cabelo e restos de pele ainda resistiam ressecados contra os ossos empoeirados – outrora torrados – das carcaças – humanóides ou não – das criaturas que um dia ali viveram em cárcere privado a ração e água. Se é que existiu tal luxo em vida para as pobres criaturas dos quais nem os restos mortais foram poupados da prisão.

A criatura que atravessava os portões que haviam se aberto para o mar de lava adiante era quase tão alta quanto Hikikomori, possuidora de membros longos como ela, e trejeitos finos e elegantes igualmente incomuns para uma alienígena. Usava um longo e negro véu da cabeça aos pés, nem seus olhos foram poupados da censura, apenas suas ossudas mãos escamosas de garras finas como espinha de peixe permitiam-se sentir o ar quente da passagem vulcânica. Atrás dela, uma ponte de pedra negra cintilante se estendia sobre o rio de lava até os olhos alcançavam, ela estava muito próxima quando o rapaz seminu jogou Ray Ann contra as almofadas e cobriu-a com lençóis e pelúcias numa velocidade absurda. Ela sequer pode ver seu rosto e seus traços.

- Meu amado Alado! – disse a voz da criatura, de modo amoroso e delicado, atravessando com sutileza a montanha alegórica de panos que a cobriam – você deixou o Vigia frustrado com o seu sumiço! Ele teve de ir muito próximo a superfície para buscá-lo! Sabe o que aconteceria se a luz dos sóis o tocasse, não sabe?

- Sim, minha amada, eu sei – sussurrou o príncipe Alado em seu tom de voz baixo e condescendente, quase subalterno – peço que me perdoe, sabe como sou curioso. Percebi uma agitação na Floresta Vermelha mais alta e resolvi ver de perto o que estava acontecendo...

O monstro de burca retesou-se e pareceu sibilar baixinho sob seu véu – ou teria sido o ciciar do fogo ardendo no rio de rocha derretida há poucos metros de distância? – Ray Ann acompanhava o desenrolar da cena através de uma falha entre duas almofadas indianas franjadas. O calor ali debaixo da montanha de pelúcia era insuportável! A voz da criatura assumiu um tom apreensivo, elevando-se a um grau de violência contida, um medo controlado que ficou evidente.

- NÃO! – ela gritou – não se preocupe! – ela retornou ao tom original – não se preocupe com o que acontece nas cavernas, meu bem – a mão asquerosa repleta de escamas acariciou o rosto fino e delicado do Príncipe – você sabe que o que acontece nas cavernas não lhe diz respeito, são coisas mundanas, bobas, só dizem respeito a mim, você não precisa se envolver com isso. Eu estou aqui para isso, lembra-se? Para te amar e te proteger de qualquer coisa.

- Sim, eu sei, mas...

- Os invasores estão resistindo, como você sabe, mas Fafis já enviou o Vigia no encalço deles e logo em breve esse contra tempo será resolvido. Ninguém jamais vai perturbar a paz das minhas cavernas, estamos entedidos?

- Sim, meu amor – respondeu o Príncipe, agora mais submisso que nunca. Só então Ray Ann percebeu o carcomido e maltratado par de asas plumosas brancas, presas uma à outra de forma tão forte entre as omoplatas de Alado por tiras de um couro bruto que já estavam causando ferimentos profundos na pele delicada de pássaro que existia abaixo das penas macias. Uma focinheira para asas.


♦ ♦ ♦



O sistema de cavernas mais superficial, através dos quais os raios de sol adentravam por falhas nas rochas e refletiam de cristal em cristal até iluminar tudo era composto por quatro gigantescas câmaras redondas de teto alto e um largo corredor aparentemente infinito repleto de samambaias roxas e cogumelos mais baixos, azuis-turquesa salpicados de rosa. Pelo tanto que eles caminharam, a cadeia de túneis e grutas principal parecia não ter fim, e descia cada vez mais em direção ao centro do planeta anão na orbita de Antares.

As paredes das cavernas estavam cheias de buracos, por onde olhinhos amarelos curiosos espiavam o tempo inteiro. Vez ou outra, os estranhos macacos-morcego davam rasantes próximos ao rosto dos viajantes, arrancando gritinhos de espanto principalmente de Fábia. Augusta ia à frente ao lado de Hikikomori acompanhando o sistema de túneis pelo mapa do computador portátil carregado pela Sybila. Os caminhos se cruzavam e serpenteavam numa confusa teia de passagens e curvas o tempo inteiro na placa de vidro redonda onde as imagens se projetavam numa tela touch.

A vida ali embaixo era muito simples e pouco ameaçadora, grande parte dela vegetal. O maior animal que eles encontraram no caminho foi um tipo estranhíssimo de cobra cega – um misto de verme e réptil repugnante que se movia rápido demais para que os olhos acompanhassem seu percurso – e também um grupo daquelas bizarras girafas cegas que aparentemente se alimentam somente dos esporos brancos de Amanita Muscaria. O restante dos fungos multicolores eram completamente ignorados por esta peculiar forma de vida sob quatro pares de pernas, totalmente desprovida de olhos e donas de longos focinhos de tamanduá por onde uma língua fina e asquerosa ia e voltava o tempo inteiro.

A paisagem pouco mudou após se embrenharem na mata de fungos e samambaias alienígenas, o teto só se tornou mais baixo e as paredes mais e mais próximasaté que o pouco espaço que havia virou motivo de disputa pelos peregrinos do espaço. O medo estava sempre presente, qualquer som que diferia do gotejar de fontes subterrâneas e da corrente gelada de ar uivante das cavernas fazia os corações saltarem imediatamente. A atenção no breu era redobrada a cada passo. E a luz azul que surgiu na outra extremidade de um longo e apertado túnel foi motivo de assombro e desconfiança.

- Não temam, viajantes do espaço – disse uma voz sibilada, falha e ancestral.

A luz deu forma a uma silhueta alta e musculosa, um humano estava se aproximando! Passos pequenos e arrastados seguiam atrás daquela figura cada vez mais próxima, ruidosos, quase nervosos, acompanhados de vozes baixas e ciciantes como um ninho de cobras assustadas ecoava na caverna, como uma multidão de fantasmas a caminho do reino dos mortos, lamentado as perdas de uma vida passada, abraçando a eternidade. E a luz azul, a forte luz azul de uma meia lua pendurada num fio prateado, pendente de uma mão magra e enrugada. O homem que se aproximava vindo da luz trazia na mão direita um longo cajado e na esquerda, dedos de uma figura anã e franzina entrelaçados aos seus dedos militares.

A lanterna em forma de meia lua balançou de um lado para o outro antes de rachar ao meio e desfazer-se num pulsar ruidoso de luz, assustando o grupo guiado por Hikikomori. Fábia deu seu gritinho de espanto mais alto antes de cair sentada, ecoando pelo sistema intrincado de cavernas. Ao olhar novamente para cima, notou as expressões maravilhadas dos seus companheiros estáticos a observar a figura ondulante de uma espécie de arraia fluorescente que ostentava uma longa cauda fina e brilhante como um barbante de neon. Seu espectro luminoso revelava o rosto sorridente de um Donnick quase divino, cortejado pela criatura angelical que se originara do casulo em forma de meia lua.

- Aqui está, Chris – disse ele, estendendo o cajado em direção ao Cavaleiro de Ouro. Era a foice, a Foice Intergaláctica.




Continua...