- Iniciar Projeto M3K4-R3
Primeiro vieram as luzes vermelhas girando em trio na escuridão.
E de repente havia muita poeira cobrindo seus olhos. Todo o seu campo de visão estava embaçado. O sistema travou pelo menos sete vezes antes de iniciar por completo, e várias vezes todo o chato processo de leitura de HD e de sistema foi repetido. O excesso de poeira no disco rígido causa esse tipo de coisa. As aranhas já haviam feito várias teias ao seu redor, cobriam-lhe da cabeça aos pés como um véu de noiva. Havia um rato esmagado em sua mão. Um rato morto, ou pelo menos o que restou dele, seus ossos, de talvez 200 anos atrás. Estava tudo tão silencioso que ela podia ouvir plenamente ao ruído mínimo, quase inaudível, de seus pequenos resfriadores internos girando.
Após o software ter completado enfim sua iniciação sem travar outra vez, a checagem interna foi feita. Um mapa preto de linhas azuis se formou diante de seus olhos, no interior da sua retina cibernética, mostrando cada centímetro de seu corpo. Apesar de tanto tempo ter passado, estava tudo em perfeito estado.
Cada vertebra artificial estava no lugar, cada parafuso estava muito bem enroscado, cada engrenagem girava com perfeição agora, desobstruindo sua passagem e soprando a poeira para longe com seu leve movimento. Era difícil se mexer, alguns membros mais distantes demoraram a obedecer ao comando, faltava sincronia neles, e ela não estava com paciência para forçar outra reinicialização. Robôs tem paciência?
De algum modo, Mekare estava a todo o vapor, limpando as faixas grossas de poeira que cobriam seu rosto como uma segunda capinha que jazia por cima da resina perolada que lhe servia de pele. 3 centímetros de espessura mais precisamente. Ela admirou sua mão por um longo tempo, o modo como ela fechava e abria ao seu comando, as articulações elásticas expostas, escuras, entre seus dedos gelados de metal coberto por resina. Ela era realmente feita de resina? Ou era porcelana? Ela era algum tipo de boneca de porcelana?
Mas o que a intrigava acima de tudo era o motivo de seu despertar. Quem a havia ligado? Quem havia apertado o botão vermelho atrás da sua nuca, dando início ao sistema outra vez?
A última lembrança que habitava seu HD quase vazio era um arquivo de vídeo muito antigo, datando de mil anos atrás, demorou um pouco para rodar no player embutido em seu cérebro eletrônico, mas enfim reproduziu. Era ela. Aquela mulher linda de cabelos escuros cacheados, aquela mulher com lábios de mel e hálito de baunilha, os olhos dois diamantes negros de luxúria. Aquela mulher que lhe causava uma estranha pane de processamento de dados no seu sistema interno. O rosto estaria gravado para sempre naquele vídeo em dividido em duas fases: um reproduzia seus tempos áureos de jovialidade e vitalidade, sorrisos, o nome de Mekare sendo pronunciado com tanta doçura e paixão. Beijos humanos quentes em sua pele gelada.
O outro vídeo era triste, escuro, embaçado, mostrava aquela mesma dríade das florestas flutuando num líquido azulado, agora mais parecia uma náiade, dentro de um enorme tanque de vidro. Seu rosto retorcido de dor, cabos conectados a sua coluna vertebral, à sua cabeça, uma máscara de oxigênio lhe cobria a boca e o nariz, proporcionando ar puro naqueles últimos segundos de vida, quando a luz verde no monitor ao lado tornou-se vermelha e o tanque esvaziou. Um som irritante soava baixo, como se alguém houvesse esquecido a porta do carro aberta. Um único tom. O tom da morte. A própria Mekare periciou o corpo com um rápido scanner e um leve toque com a ponta de seus dedos no pulso de carne da humana. Seus sensores nas digitais não captaram batimento cardíaco, e o scanner deu o resultado logo em seguida: falência múltipla dos órgãos.
Outro vídeo em sua database iniciou sozinho ao final daquela lembrança perdida, estava na lista de reprodução do player. Era uma reportagem, gravada do noticiário internacional numa manhã de terça feira, nos últimos anos da raça humana. Havia uma mulher sentada atrás da bancada, aos fundos da imagem, mesclando-se ao azul do plano de fundo, havia imagens do mundo todo sendo repetidas num loop constante. Hospitais lotados, pessoas morrendo, caos nas ruas, destruição nas cidades.
“A situação se agrava nos países de terceiro mundo. O vírus ainda não foi classificado, e nem há esperanças de ser identificado, há uma probabilidade de se tratar de uma nova superbactéria, mas não há nenhum exame que comprove os boatos.”
Outra mulher surgiu no vídeo. Outro jornal, outra emissora, outra gravação.
“A epidemia que devastou metade da população dos países de terceiro mundo atingiu o continente Europeu e Americano muito rapidamente. Há provas de que a primeira morte ocorreu na Índia enquanto outra ocorria simultaneamente no Sri Lanka...”
Os repórteres se alternavam muito rapidamente. Eram excertos de reportagens de ínfimas emissoras diferentes ao redor do mundo. França, Inglaterra, Alemanha, Egito, Grécia, China, Japão, Coréia, Estados Unidos, Brasil, Índia, Oceania. Seguiam um atrás do outro num vídeo de aproximadamente 5 minutos explicando como os cientistas se viram de mãos atadas perante uma epidemia misteriosa que veio do oriente e se alastrou pelo mundo. Isto destruiu grande parte da população mundial em menos de trinta anos, e sequer tinha um nome. Em dez anos menos da metade da população mundial vivia. Grandes valas eram escavadas em campos abertos por máquinas amarelas colossais, os corpos se acumulavam em fileiras de caixões, sacos pretos e panos brancos. Ambulâncias, sirenes altas, viaturas policiais, mães desesperadas segurando seus bebês, crianças sem pais, idosos jogados na calçada.
“O sintoma principal é caracterizado por uma dor incômoda na região abdominal, assemelhando-se às dores de cálculo renal. Nas primeiras semanas os rins atrofiam e há uma retenção elevada de líquido no corpo, e após o acumulo de água no organismo, os órgãos afogam literalmente, e atrofiam um a um até ocorrer falência múltipla...”
“É recomendado que se ferva toda a água para o consumo, humano ou animal, deve-se evitar comer carne de aves ou porcos...”
“O vírus agora também pode ser transmitido pelo contato com indivíduos infectados...”
“Enzima mutante? Superbactéria? Protozoário? A população mundial exige uma resposta!”
“Seria este o fim daquilo que chamamos humanidade?”
E então aquele rosto. O rosto branco, alvo, redondo como a lua. A Criadora em todo o seu esplendor e sensualidade, olhos tristes e amuados, cheios de água pronta para escorrer pela face enluarada.
“Me... Mekare!”
E então o vulto negro, olhos vermelhos no escuro, e tudo apaga.
Estas são as últimas memórias de Mekare.
Após o software ter completado enfim sua iniciação sem travar outra vez, a checagem interna foi feita. Um mapa preto de linhas azuis se formou diante de seus olhos, no interior da sua retina cibernética, mostrando cada centímetro de seu corpo. Apesar de tanto tempo ter passado, estava tudo em perfeito estado.
Cada vertebra artificial estava no lugar, cada parafuso estava muito bem enroscado, cada engrenagem girava com perfeição agora, desobstruindo sua passagem e soprando a poeira para longe com seu leve movimento. Era difícil se mexer, alguns membros mais distantes demoraram a obedecer ao comando, faltava sincronia neles, e ela não estava com paciência para forçar outra reinicialização. Robôs tem paciência?
De algum modo, Mekare estava a todo o vapor, limpando as faixas grossas de poeira que cobriam seu rosto como uma segunda capinha que jazia por cima da resina perolada que lhe servia de pele. 3 centímetros de espessura mais precisamente. Ela admirou sua mão por um longo tempo, o modo como ela fechava e abria ao seu comando, as articulações elásticas expostas, escuras, entre seus dedos gelados de metal coberto por resina. Ela era realmente feita de resina? Ou era porcelana? Ela era algum tipo de boneca de porcelana?
Mas o que a intrigava acima de tudo era o motivo de seu despertar. Quem a havia ligado? Quem havia apertado o botão vermelho atrás da sua nuca, dando início ao sistema outra vez?
A última lembrança que habitava seu HD quase vazio era um arquivo de vídeo muito antigo, datando de mil anos atrás, demorou um pouco para rodar no player embutido em seu cérebro eletrônico, mas enfim reproduziu. Era ela. Aquela mulher linda de cabelos escuros cacheados, aquela mulher com lábios de mel e hálito de baunilha, os olhos dois diamantes negros de luxúria. Aquela mulher que lhe causava uma estranha pane de processamento de dados no seu sistema interno. O rosto estaria gravado para sempre naquele vídeo em dividido em duas fases: um reproduzia seus tempos áureos de jovialidade e vitalidade, sorrisos, o nome de Mekare sendo pronunciado com tanta doçura e paixão. Beijos humanos quentes em sua pele gelada.
O outro vídeo era triste, escuro, embaçado, mostrava aquela mesma dríade das florestas flutuando num líquido azulado, agora mais parecia uma náiade, dentro de um enorme tanque de vidro. Seu rosto retorcido de dor, cabos conectados a sua coluna vertebral, à sua cabeça, uma máscara de oxigênio lhe cobria a boca e o nariz, proporcionando ar puro naqueles últimos segundos de vida, quando a luz verde no monitor ao lado tornou-se vermelha e o tanque esvaziou. Um som irritante soava baixo, como se alguém houvesse esquecido a porta do carro aberta. Um único tom. O tom da morte. A própria Mekare periciou o corpo com um rápido scanner e um leve toque com a ponta de seus dedos no pulso de carne da humana. Seus sensores nas digitais não captaram batimento cardíaco, e o scanner deu o resultado logo em seguida: falência múltipla dos órgãos.
Outro vídeo em sua database iniciou sozinho ao final daquela lembrança perdida, estava na lista de reprodução do player. Era uma reportagem, gravada do noticiário internacional numa manhã de terça feira, nos últimos anos da raça humana. Havia uma mulher sentada atrás da bancada, aos fundos da imagem, mesclando-se ao azul do plano de fundo, havia imagens do mundo todo sendo repetidas num loop constante. Hospitais lotados, pessoas morrendo, caos nas ruas, destruição nas cidades.
“A situação se agrava nos países de terceiro mundo. O vírus ainda não foi classificado, e nem há esperanças de ser identificado, há uma probabilidade de se tratar de uma nova superbactéria, mas não há nenhum exame que comprove os boatos.”
Outra mulher surgiu no vídeo. Outro jornal, outra emissora, outra gravação.
“A epidemia que devastou metade da população dos países de terceiro mundo atingiu o continente Europeu e Americano muito rapidamente. Há provas de que a primeira morte ocorreu na Índia enquanto outra ocorria simultaneamente no Sri Lanka...”
Os repórteres se alternavam muito rapidamente. Eram excertos de reportagens de ínfimas emissoras diferentes ao redor do mundo. França, Inglaterra, Alemanha, Egito, Grécia, China, Japão, Coréia, Estados Unidos, Brasil, Índia, Oceania. Seguiam um atrás do outro num vídeo de aproximadamente 5 minutos explicando como os cientistas se viram de mãos atadas perante uma epidemia misteriosa que veio do oriente e se alastrou pelo mundo. Isto destruiu grande parte da população mundial em menos de trinta anos, e sequer tinha um nome. Em dez anos menos da metade da população mundial vivia. Grandes valas eram escavadas em campos abertos por máquinas amarelas colossais, os corpos se acumulavam em fileiras de caixões, sacos pretos e panos brancos. Ambulâncias, sirenes altas, viaturas policiais, mães desesperadas segurando seus bebês, crianças sem pais, idosos jogados na calçada.
“O sintoma principal é caracterizado por uma dor incômoda na região abdominal, assemelhando-se às dores de cálculo renal. Nas primeiras semanas os rins atrofiam e há uma retenção elevada de líquido no corpo, e após o acumulo de água no organismo, os órgãos afogam literalmente, e atrofiam um a um até ocorrer falência múltipla...”
“É recomendado que se ferva toda a água para o consumo, humano ou animal, deve-se evitar comer carne de aves ou porcos...”
“O vírus agora também pode ser transmitido pelo contato com indivíduos infectados...”
“Enzima mutante? Superbactéria? Protozoário? A população mundial exige uma resposta!”
“Seria este o fim daquilo que chamamos humanidade?”
E então aquele rosto. O rosto branco, alvo, redondo como a lua. A Criadora em todo o seu esplendor e sensualidade, olhos tristes e amuados, cheios de água pronta para escorrer pela face enluarada.
“Me... Mekare!”
E então o vulto negro, olhos vermelhos no escuro, e tudo apaga.
Estas são as últimas memórias de Mekare.
Acordar mil anos no futuro com certeza deixará seu processador assim, lento, vagaroso, quase parando. Deixará seus sentidos um pouco mais lerdos, seu cerébro eletrônico completamente retardado, de modo que Mekare passou um dia inteiro deitada de lado, entre algo semelhante a uma geladeira e uma bancada de laboratório. O nível de sujeira e poeira acumulada naquele canto escuro do salão circular era absurdo, seus sensores de bactérias estavam em alerta máximo, e seus resfriadores inteiros - os coolers dos computadores da nossa época - estavam girando a toda potência, tentando resfriar uma máquina que funcionava a todo vapor esquentando a temperaturas altíssimas. Isso era causado pela obstrução interna.
Mas por outro lado seus sensores externos estavam funcionando muito bem, os microscópicos fios de fibra óptica reforçada embutida embaixo da sua pele sintética enviavam um scan preciso da temperatura do ambiente, da quantidade de gases naquela atmosfera, os tipos de gases e dos microorganismos catalogados que ali se desenvolviam. Seu "sistema nervoso" estava funcionando muito bem, e seus olhos também. Eles escanearam o ambiente e catalogaram tudo o que o compunha: a circunferência do salão fechado, a distância entre o chão e o teto, os móveis e a quantidade de saídas, possibilidades sendo calculadas numa velocidade incrível pelo seu supercomputador interno.
Aquele era o mesmo salão onde o sistema fora encerrado. Onde Mekare fora desligada - e onde sua criadora morrera - de modo que o tanque cilíndrico de vidro ainda estava ali. Quebrado, mas ainda estava ali, porém o corpo nu da criadora em seus últimos suspiro já não o habitava há muito tempo. Ela morrera, se fora e isso era fato, para onde seu corpo havia sido levado era a questão. O salão circular era composto por uma enorme bancada apoiada à parede, em parte coberta por botões e teclados que eram ligados aos telões nas paredes e em outra repleta de livros, peças eletrônicas e restos robóticos, além de um resquício de química laboratorial em frascos e pequenos fornos e geladeiras criogênicas. Voltada para o Oeste havia uma grande janela esférica que se pronunciava para fora do prédio num esqueleto de ferro de modo que quem a observasse de fora viria aquilo como uma grande bolha de vidro.
Este era o laboratório da criadora.
E Mekare choraria se tivesse lágrimas. Choraria se não fosse totalmente sintética. Até seus sentimentos eram sintéticos. Suas saudades, seu amor, sua nostalgia por algo que não estava mais ali... Algo que não estava mais ali...
ALERTA: UNIDADE DE DISCO MÓVEL EXTERNA NÃO ENCONTRADA - INSIRA O CARTÃO IMEDIATAMENTE.
Aquele aviso insistente piscava no canto da sua visão como seus irritantes ancestrais do falho e arcaico Windows 7, subindo em forma de balõezinhos retangulares no canto da tela. Mekare sabia o que aconteceria se a Unidade de Disco Móvel Externa não fosse encontrada e inserida.
POR FAVOR, INSIRA A UNIDADE DE DISCO MÓVEL EXTERNA IMEDIATAMENTE.
O aviso alternava o tempo inteiro. Se o cartão de memória não fosse inserido o quanto antes, seu sistema seria reiniciado, mas desta vez, definitivamente. Seu programa recomeçaria do zero, seu HD seria formatado. Medidas de segurança tomadas pela Criadora quando a andróide fora construída e programada, para casos emergenciais. Como por exemplo, um sequestro ou um ataque terrorista dos grupos de esquerda, que eram contra o sistema imposto pela ESFERA: o cartão de memória seria removido com uma simples pressão na nuca de Mekare em meio à confusão e várias informações sigilosas como as atividades laboratoriais secretas seriam salvas. Já em posse dos rebeldes o sistema seria reiniciado, e tudo o que restara na memória interna seria apagado. Para sempre.
O cartão de memória continha, em base, toda a "vida" de Mekare. Suas lembranças e seu aprendizado eram gravadas ali, em arquivos de video e em extensões .dll, os plugins que garantiam a sua capacidade de aprender por conta própria mesmo tratando-se de uma máquina. A parte de seu ser que a tornava diferente dos outros robôs havia sido removida da entrada CDM atrás da sua nuca no momento em que ela fora desligada. Quem a havia removido?
Quem a havia arrastado até aquele canto sujo do laboratório? Ela havia sido desligada em frente ao tanque de vidro enquanto observava os sofridos lábios de dor da Criadora pronunciarem seu nome, após o blackout e os dois olhos vermelhos no escuro. Após isso, tudo é grande vazio, nada mais se lembra. Infelizmente, robôs não podem sonhar.
VOCÊ POSSUI 24 HORAS ANTES DA FORMATAÇÃO DE SEGURANÇA.
Levantar-se foi uma tarefa bem difícil. Seus membros estavam completamente descordenados. Suas pernas puseram-se eretas, mas seu tronco permaneceu jogado ao chão, como uma boneca velha, ela ficara com a cabeça entre as pernas encarando a parede. Com a ajuda de seus braços, ela colocou sua coluna em linha reta com o calcanhar, e tudo estava bem até que ela desse um primeiro passo e atravessasse o salão circular correndo para se chocar com a outra parede, o outro lado do balcão, destruindo o painel de controle. Um choque elétrico fortíssimo percorreu todo o seu corpo. A energia ainda passava por ali! Como isso seria possível depois de mil anos? O seu relógio do sistema havia parado de conferir há 800 anos atrás! O gerador ainda estaria funcionando depois de todo esse tempo?
Todas essas preocupações triviais incapazes de serem calculadas por um robô comum foram para o espaço quando ela ergueu seu rosto de porcelana e olhou-se refletida no monitor gigantesco que estava ali diante, embutido na parede. O cristal liquido havia escorrido há muito tempo, mas algo ainda fazia com que o que restara de uma tela LCD refletisse o seu corpo à forte luz do meio dia que vinha do lado de fora. Era a perfeição. Uma Vênus esculpida em titânio, coberta por uma pele falsa dura como pedra, mas lisa e reluzente como pérola. Estava empoeirada e suja, mas continuava bela mesmo assim. Usava um collant preto azulado, e tinha os cabelos sintéticos num loiro-cinzento, cortados na altura do queixo com uma perfeição tremenda. A eternidade cibernética presa no corpo falso de uma adolescente.
Mas então houve aquele momento estranho em que um impulso falso de seu cerébro eletrônico fez suas pernas andarem sozinhas, e ao dar por si, estava correndo a toda velocidade em direção à janela, ao vidro, ao céu pesado e cinzento antinatural causado pelos agentes poluentes de eras inteiras da ação desenfreada do homem - as nuvens pareciam estar perigosamente próximas ao chão - e logo todo o vidro estava estilhaçado e a ferragem da bolha, retorcida.
Seu corpo havia se chocado erroneamente e estava voando entre destroços e lixo preso a um escudo antigravitacional. O escudo antigravitacional onde os carros voadores antes planavam acima dos prédios para descongestionar o trânsito terrestre. Seu corpo flutuou entre a sucata por alguns segundos, chocando-se contra velhos caixotes de ferro, carcaças de robôs e carros, televisores, tablets aos pedaços, aparelhos telefônicos desmontados, peças enormes e minúsculos parafusos soltos no espaço. Fora de controle, ela atingiu o limite inferior da atmosfera antigravitacional de seis metros e ao dar por si, estava caindo, caindo e caindo em direção ao solo, tudo passava muito rápido, tudo aconteceu muito rápido, e como um meteoro, ela atingiu a crosta espessa do que a humanidade havia deixado para trás.
Mas por outro lado seus sensores externos estavam funcionando muito bem, os microscópicos fios de fibra óptica reforçada embutida embaixo da sua pele sintética enviavam um scan preciso da temperatura do ambiente, da quantidade de gases naquela atmosfera, os tipos de gases e dos microorganismos catalogados que ali se desenvolviam. Seu "sistema nervoso" estava funcionando muito bem, e seus olhos também. Eles escanearam o ambiente e catalogaram tudo o que o compunha: a circunferência do salão fechado, a distância entre o chão e o teto, os móveis e a quantidade de saídas, possibilidades sendo calculadas numa velocidade incrível pelo seu supercomputador interno.
Aquele era o mesmo salão onde o sistema fora encerrado. Onde Mekare fora desligada - e onde sua criadora morrera - de modo que o tanque cilíndrico de vidro ainda estava ali. Quebrado, mas ainda estava ali, porém o corpo nu da criadora em seus últimos suspiro já não o habitava há muito tempo. Ela morrera, se fora e isso era fato, para onde seu corpo havia sido levado era a questão. O salão circular era composto por uma enorme bancada apoiada à parede, em parte coberta por botões e teclados que eram ligados aos telões nas paredes e em outra repleta de livros, peças eletrônicas e restos robóticos, além de um resquício de química laboratorial em frascos e pequenos fornos e geladeiras criogênicas. Voltada para o Oeste havia uma grande janela esférica que se pronunciava para fora do prédio num esqueleto de ferro de modo que quem a observasse de fora viria aquilo como uma grande bolha de vidro.
Este era o laboratório da criadora.
E Mekare choraria se tivesse lágrimas. Choraria se não fosse totalmente sintética. Até seus sentimentos eram sintéticos. Suas saudades, seu amor, sua nostalgia por algo que não estava mais ali... Algo que não estava mais ali...
ALERTA: UNIDADE DE DISCO MÓVEL EXTERNA NÃO ENCONTRADA - INSIRA O CARTÃO IMEDIATAMENTE.
Aquele aviso insistente piscava no canto da sua visão como seus irritantes ancestrais do falho e arcaico Windows 7, subindo em forma de balõezinhos retangulares no canto da tela. Mekare sabia o que aconteceria se a Unidade de Disco Móvel Externa não fosse encontrada e inserida.
POR FAVOR, INSIRA A UNIDADE DE DISCO MÓVEL EXTERNA IMEDIATAMENTE.
O aviso alternava o tempo inteiro. Se o cartão de memória não fosse inserido o quanto antes, seu sistema seria reiniciado, mas desta vez, definitivamente. Seu programa recomeçaria do zero, seu HD seria formatado. Medidas de segurança tomadas pela Criadora quando a andróide fora construída e programada, para casos emergenciais. Como por exemplo, um sequestro ou um ataque terrorista dos grupos de esquerda, que eram contra o sistema imposto pela ESFERA: o cartão de memória seria removido com uma simples pressão na nuca de Mekare em meio à confusão e várias informações sigilosas como as atividades laboratoriais secretas seriam salvas. Já em posse dos rebeldes o sistema seria reiniciado, e tudo o que restara na memória interna seria apagado. Para sempre.
O cartão de memória continha, em base, toda a "vida" de Mekare. Suas lembranças e seu aprendizado eram gravadas ali, em arquivos de video e em extensões .dll, os plugins que garantiam a sua capacidade de aprender por conta própria mesmo tratando-se de uma máquina. A parte de seu ser que a tornava diferente dos outros robôs havia sido removida da entrada CDM atrás da sua nuca no momento em que ela fora desligada. Quem a havia removido?
Quem a havia arrastado até aquele canto sujo do laboratório? Ela havia sido desligada em frente ao tanque de vidro enquanto observava os sofridos lábios de dor da Criadora pronunciarem seu nome, após o blackout e os dois olhos vermelhos no escuro. Após isso, tudo é grande vazio, nada mais se lembra. Infelizmente, robôs não podem sonhar.
VOCÊ POSSUI 24 HORAS ANTES DA FORMATAÇÃO DE SEGURANÇA.
Levantar-se foi uma tarefa bem difícil. Seus membros estavam completamente descordenados. Suas pernas puseram-se eretas, mas seu tronco permaneceu jogado ao chão, como uma boneca velha, ela ficara com a cabeça entre as pernas encarando a parede. Com a ajuda de seus braços, ela colocou sua coluna em linha reta com o calcanhar, e tudo estava bem até que ela desse um primeiro passo e atravessasse o salão circular correndo para se chocar com a outra parede, o outro lado do balcão, destruindo o painel de controle. Um choque elétrico fortíssimo percorreu todo o seu corpo. A energia ainda passava por ali! Como isso seria possível depois de mil anos? O seu relógio do sistema havia parado de conferir há 800 anos atrás! O gerador ainda estaria funcionando depois de todo esse tempo?
Todas essas preocupações triviais incapazes de serem calculadas por um robô comum foram para o espaço quando ela ergueu seu rosto de porcelana e olhou-se refletida no monitor gigantesco que estava ali diante, embutido na parede. O cristal liquido havia escorrido há muito tempo, mas algo ainda fazia com que o que restara de uma tela LCD refletisse o seu corpo à forte luz do meio dia que vinha do lado de fora. Era a perfeição. Uma Vênus esculpida em titânio, coberta por uma pele falsa dura como pedra, mas lisa e reluzente como pérola. Estava empoeirada e suja, mas continuava bela mesmo assim. Usava um collant preto azulado, e tinha os cabelos sintéticos num loiro-cinzento, cortados na altura do queixo com uma perfeição tremenda. A eternidade cibernética presa no corpo falso de uma adolescente.
Mas então houve aquele momento estranho em que um impulso falso de seu cerébro eletrônico fez suas pernas andarem sozinhas, e ao dar por si, estava correndo a toda velocidade em direção à janela, ao vidro, ao céu pesado e cinzento antinatural causado pelos agentes poluentes de eras inteiras da ação desenfreada do homem - as nuvens pareciam estar perigosamente próximas ao chão - e logo todo o vidro estava estilhaçado e a ferragem da bolha, retorcida.
Seu corpo havia se chocado erroneamente e estava voando entre destroços e lixo preso a um escudo antigravitacional. O escudo antigravitacional onde os carros voadores antes planavam acima dos prédios para descongestionar o trânsito terrestre. Seu corpo flutuou entre a sucata por alguns segundos, chocando-se contra velhos caixotes de ferro, carcaças de robôs e carros, televisores, tablets aos pedaços, aparelhos telefônicos desmontados, peças enormes e minúsculos parafusos soltos no espaço. Fora de controle, ela atingiu o limite inferior da atmosfera antigravitacional de seis metros e ao dar por si, estava caindo, caindo e caindo em direção ao solo, tudo passava muito rápido, tudo aconteceu muito rápido, e como um meteoro, ela atingiu a crosta espessa do que a humanidade havia deixado para trás.
Continua...
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