- As rosas estão cheirosas hoje – disse para si mesma.
- Da minha parte, acho que precisam de um pouco mais de água, o tempo está gelado e seco hoje – respondeu a si mesma.
Pegou o regador de metal, retorcido, velho e enferrujado. Abaixou-se e rangeu. Não a ferrugem do regador, mas as suas costas, velhas e enferrujadas costas, antigas e amarguradas, massacradas. A velhice era uma coisa indescritível. Sentir-se ter corrido uma verdadeira maratona eterna e incansável que resultou em dores terríveis a cada mínimo movimento. Rangia internamente o tempo todo, a cada passo, a cada fraca respiração do pulmão, a cada curta esticada dos seus braços frágeis. Estava magra, precisava de ajuda para ir ao banheiro, para tomar banho, para se vestir, para passar um perfume.
- Vovó, está na hora do remédio – Aline bateu com delicadeza à porta de vidro da estufa, para não espantar a frustrada velha, que costumava chiar a cada barulhinho por menor que fosse, que lhe pegasse assim, surpreendida.
- Ai, porra Aline, você me assustou! – Stella tentou levantar-se, mas parecia estar emperrada – vem cá, me dê uma ajuda.
A jovem entrou com receio na estufa. Vovó Stella não deixava ninguém entrar ali, não sem um motivo realmente importante, geralmente questão de vida ou morte, quando a velha escorregava e caía, gritando e gemendo feito uma alma penada, ou mesmo em momentos como aquele, em que a coluna travava e após um agachamento repentino, não subia mais.
- Mais rápido, Aline! Você quer ver essa velha criar raiz aqui nesse chão?!
- Não vovó, calma! Eu só não quero esbarrar nos vasos e nas flores! Lembra-se do que me disse?
- Ora, não lembro nem o que tomei no café da manhã hoje! Vamos, venha cá! – o café havia sido há meia hora atrás. Aline colocou o braço flácido da velha sobre o seu pescoço, enquanto seu próprio braço atravessou as costas doloridas da senhora com delicadeza, e aos poucos, as duas estavam da mesma altura. Stella era uma senhorinha alta, bem alta. Não se incomodava mais em tingir os cabelos havia uns cinco anos, apesar de Aline insistir tanto. – onde está a sua mãe? Aquela folgada miserável...
- Saiu cedo hoje, tinha um ensaio fotográfico. Agora que ela tem um emprego, dificilmente a veremos em casa...
- Melhor assim, não agüento olhar pra cara daquela ali desde que o seu pai me apareceu com ela na porta de casa...
Na cozinha, Stella sentou-se com dificuldade na cadeira, gemendo um pouquinho mais. Tomou suas pílulas matinais, levantou-se após o tempo da ingestão e deu a volta ao redor do móvel.
- Ótimo, estou desenferrujada! Quer ir ao parque comigo esta manhã, Aline, meu bem? – era sempre assim, após as pílulas, ela mudava de humor repentinamente, de velha ranzinza e amarga para uma jovem senhora amável que gostava de passear. Aline já estava acostumada para sorrir enquanto lavava a louça.
- Seria maravilhoso e agradável, vovó, mas antes tenho um recado para dar... – ela virou-se para a mulher. Stella arregalou os olhos. – acredite ou não, a Vogue ligou essa manhã, e querem uma entrevista exclusiva com você.
Stella gargalhou, fez um bico e foi até a geladeira.
- Você não se manca, não, Aline?! Fazendo brincadeiras desse tipo comigo?! Eu tenho 78 anos mas a minha esperteza é a mesma dos meus 19! Por isso não me venha com asneiras. – encheu um copo com leite.
- É sério, vovó! Muito sério! – Aline saltitou para trás da porta da geladeira – estão juntando a velha guarda da moda para um ensaio sensual de senhoras que já fizeram muito sucesso no passado!
- Pare com isso, Aline – ralhou Stella – assim eu me sinto uma múmia!
- Ela está falando a verdade, mamãe. – ele entrou pela porta da cozinha trajando seu costumeiro roupão vinho, estava no auge da carreira, com cara de moleque travesso e corpo de deus grego, era sempre um vislumbre onde quer que surja. A velha deu um gritinho e soltou um palavrão pesado.
- Stefan, seu filho da mãe, não me assuste assim! Eu já disse pra se anunciarem antes de surgirem assim do nada! Seus miseráveis de uma figa! – ela deu três tossidas poderosas, Aline correu para acudi-la, dando tapinhas leves nas costas dela. Stefan apenas riu. – se um dia eu morrer, juro que vou ficar assombrando a porcaria dessa mansão pra sempre, me recuso a ir pro inferno, eu não! Tá pensando o quê?! Vou puxar o pé de todos vocês, de todos vocês!
- Calma mamãe, a senhora anda muito assustada. – Stefan aproximou-se e deu três tapinhas de leve nas costas dela. Pegou o suco de laranja da geladeira e encheu uma taça de cristal que descansava por ali por cima – Aline está falando a verdade. A Vogue ligou hoje de manhã mesmo, eu que atendi – tomou um gole – muitos conhecidos seus estarão participando do ensaio... Inclusive o tio...
Aline arregalou os olhos e começou a fazer sinais para que o pai não dissesse o nome. Cortando o pescoço com a mão.
- O tio Lucas... – o pai de Aline deu de ombros.
Silêncio mortal. Silêncio por toda a mansão. Até os pássaros lá fora pararam de cantar. As plantas da estufa aos fundos pararam de respirar. Stella pegou um copo e atirou na parede logo atrás de si. Espalhando vidro por toda a parte. Lascas atingiram a nuca e as costas de Aline, um pequeno corte fez escorrer um feixe vermelho em seu rosto.
- Torne a falar o nome desse homem dentro desta casa outra vez, e você estará no lugar daquela parede ali, Stefan. – esticou seu comprido dedo magro e enrugado feito o de uma bruxa para trás e saiu pisando firme. Aline começou a limpar o chão.
O que a família de Stella custava a entender era que o mundo confortável que ela conhecia começou a ruir no exato momento da morte de Ítalo. Após o ocorrido, foi um passo para que todas as pessoas que ela mais amava no mundo partissem também, para outros planos, para outros lugares, outras realidades além da compreensão. Ela não era agora uma loira glamourosa ou uma morena espetacular das capas das revistas e das laterais dos ônibus de Nova York, não chegava nem a ser a vadia suja que era.
Agora ela era uma velha encarquilhada e enferrujada, esquecida por tudo e por todos. Deixada para trás. Morta para o mundo. E não sairia daquela mansão tão cedo assim. Stella era uma velha suja.
- Da minha parte, acho que precisam de um pouco mais de água, o tempo está gelado e seco hoje – respondeu a si mesma.
Pegou o regador de metal, retorcido, velho e enferrujado. Abaixou-se e rangeu. Não a ferrugem do regador, mas as suas costas, velhas e enferrujadas costas, antigas e amarguradas, massacradas. A velhice era uma coisa indescritível. Sentir-se ter corrido uma verdadeira maratona eterna e incansável que resultou em dores terríveis a cada mínimo movimento. Rangia internamente o tempo todo, a cada passo, a cada fraca respiração do pulmão, a cada curta esticada dos seus braços frágeis. Estava magra, precisava de ajuda para ir ao banheiro, para tomar banho, para se vestir, para passar um perfume.
- Vovó, está na hora do remédio – Aline bateu com delicadeza à porta de vidro da estufa, para não espantar a frustrada velha, que costumava chiar a cada barulhinho por menor que fosse, que lhe pegasse assim, surpreendida.
- Ai, porra Aline, você me assustou! – Stella tentou levantar-se, mas parecia estar emperrada – vem cá, me dê uma ajuda.
A jovem entrou com receio na estufa. Vovó Stella não deixava ninguém entrar ali, não sem um motivo realmente importante, geralmente questão de vida ou morte, quando a velha escorregava e caía, gritando e gemendo feito uma alma penada, ou mesmo em momentos como aquele, em que a coluna travava e após um agachamento repentino, não subia mais.
- Mais rápido, Aline! Você quer ver essa velha criar raiz aqui nesse chão?!
- Não vovó, calma! Eu só não quero esbarrar nos vasos e nas flores! Lembra-se do que me disse?
- Ora, não lembro nem o que tomei no café da manhã hoje! Vamos, venha cá! – o café havia sido há meia hora atrás. Aline colocou o braço flácido da velha sobre o seu pescoço, enquanto seu próprio braço atravessou as costas doloridas da senhora com delicadeza, e aos poucos, as duas estavam da mesma altura. Stella era uma senhorinha alta, bem alta. Não se incomodava mais em tingir os cabelos havia uns cinco anos, apesar de Aline insistir tanto. – onde está a sua mãe? Aquela folgada miserável...
- Saiu cedo hoje, tinha um ensaio fotográfico. Agora que ela tem um emprego, dificilmente a veremos em casa...
- Melhor assim, não agüento olhar pra cara daquela ali desde que o seu pai me apareceu com ela na porta de casa...
Na cozinha, Stella sentou-se com dificuldade na cadeira, gemendo um pouquinho mais. Tomou suas pílulas matinais, levantou-se após o tempo da ingestão e deu a volta ao redor do móvel.
- Ótimo, estou desenferrujada! Quer ir ao parque comigo esta manhã, Aline, meu bem? – era sempre assim, após as pílulas, ela mudava de humor repentinamente, de velha ranzinza e amarga para uma jovem senhora amável que gostava de passear. Aline já estava acostumada para sorrir enquanto lavava a louça.
- Seria maravilhoso e agradável, vovó, mas antes tenho um recado para dar... – ela virou-se para a mulher. Stella arregalou os olhos. – acredite ou não, a Vogue ligou essa manhã, e querem uma entrevista exclusiva com você.
Stella gargalhou, fez um bico e foi até a geladeira.
- Você não se manca, não, Aline?! Fazendo brincadeiras desse tipo comigo?! Eu tenho 78 anos mas a minha esperteza é a mesma dos meus 19! Por isso não me venha com asneiras. – encheu um copo com leite.
- É sério, vovó! Muito sério! – Aline saltitou para trás da porta da geladeira – estão juntando a velha guarda da moda para um ensaio sensual de senhoras que já fizeram muito sucesso no passado!
- Pare com isso, Aline – ralhou Stella – assim eu me sinto uma múmia!
- Ela está falando a verdade, mamãe. – ele entrou pela porta da cozinha trajando seu costumeiro roupão vinho, estava no auge da carreira, com cara de moleque travesso e corpo de deus grego, era sempre um vislumbre onde quer que surja. A velha deu um gritinho e soltou um palavrão pesado.
- Stefan, seu filho da mãe, não me assuste assim! Eu já disse pra se anunciarem antes de surgirem assim do nada! Seus miseráveis de uma figa! – ela deu três tossidas poderosas, Aline correu para acudi-la, dando tapinhas leves nas costas dela. Stefan apenas riu. – se um dia eu morrer, juro que vou ficar assombrando a porcaria dessa mansão pra sempre, me recuso a ir pro inferno, eu não! Tá pensando o quê?! Vou puxar o pé de todos vocês, de todos vocês!
- Calma mamãe, a senhora anda muito assustada. – Stefan aproximou-se e deu três tapinhas de leve nas costas dela. Pegou o suco de laranja da geladeira e encheu uma taça de cristal que descansava por ali por cima – Aline está falando a verdade. A Vogue ligou hoje de manhã mesmo, eu que atendi – tomou um gole – muitos conhecidos seus estarão participando do ensaio... Inclusive o tio...
Aline arregalou os olhos e começou a fazer sinais para que o pai não dissesse o nome. Cortando o pescoço com a mão.
- O tio Lucas... – o pai de Aline deu de ombros.
Silêncio mortal. Silêncio por toda a mansão. Até os pássaros lá fora pararam de cantar. As plantas da estufa aos fundos pararam de respirar. Stella pegou um copo e atirou na parede logo atrás de si. Espalhando vidro por toda a parte. Lascas atingiram a nuca e as costas de Aline, um pequeno corte fez escorrer um feixe vermelho em seu rosto.
- Torne a falar o nome desse homem dentro desta casa outra vez, e você estará no lugar daquela parede ali, Stefan. – esticou seu comprido dedo magro e enrugado feito o de uma bruxa para trás e saiu pisando firme. Aline começou a limpar o chão.
O que a família de Stella custava a entender era que o mundo confortável que ela conhecia começou a ruir no exato momento da morte de Ítalo. Após o ocorrido, foi um passo para que todas as pessoas que ela mais amava no mundo partissem também, para outros planos, para outros lugares, outras realidades além da compreensão. Ela não era agora uma loira glamourosa ou uma morena espetacular das capas das revistas e das laterais dos ônibus de Nova York, não chegava nem a ser a vadia suja que era.
Agora ela era uma velha encarquilhada e enferrujada, esquecida por tudo e por todos. Deixada para trás. Morta para o mundo. E não sairia daquela mansão tão cedo assim. Stella era uma velha suja.
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