Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Sistema Operacional - Por Dentro de Reboot!


Mekare finalmente acordou. Após mil anos de descanso, a última androide construída pela raça humana despertou com seu disco rígido cheio de perguntas. De cara, ela bateu de frente com um autômato barra pesada conhecido como Midgardsormen, um processador de sucata descontrolado em forma de serpente. Gigantesco, voraz e veloz, o monstro é capaz de voar, e perseguiu nossa heroína cidade adentro, até que um bueiro aberto mostrou-se a luz no fim do túnel.

Lá embaixo, Midgardsormen não poderia encontrá-la, mas outra coisa estava na espreita. Aquela era a entrada das caldeiras, e quem a esperava lá embaixo tinha nome: Negasjatingaron, uma androide tão velha que solta até faíscas! Apesar da aparência duvidosa e pouco inspiradora de confiança, a Guardiã das Caldeiras foi bem gentil em lhe explicar como o mundo funcionava agora, depois que toda a raça humana fora extinta da face da terra. Os robôs dominaram, mas eles possuem uma cruel soberana. Sua identidade é um mistério, porém Mekare não perde por esperar...

~

Neste segundo capítulo de Reboot vimos várias outras referências à saga The Big Machine! Além de descrever uma Neon City rebatizada de "Setor 13" e reutilizada como cidade-sucata, o video que Negasjatingaron mostrou à Mekare exibe os DK's como servos da "Mestra".

Pra quem não se lembra - ou quem não se deu ao trabalho de ler The Big Machine 3 - os DK's são, literalmente, Donkey Kongs! Calma que eu explico: esse foi o nome dado pelos Apocalípticos ao exército de gorilas robôs de titânios que acompanhavam o monstruoso Mapinguari, um autômato do tamanho de um prédio que servia à Alberta Veronese após a sabotagem do tal projeto secreto do governo. Isso, sem contar que, mais uma vez, a ESFERA, o super computador que controla o mundo num futuro não tão distante, é citado pelos personagens.

Pra quem não sabe do que se trata a ESFERA: é um grande cerébro metade humano, metade máquina, com uma velocidade de cálculo muita acima da média alavancando uma superinteligência que foi capaz de projetar a cidade perfeita, Neon City, para abrigar o que restara da raça humana depois do Apocalipse de 2012. Cidade qual é governada por este supercomputador, assim como o resto do mundo. A ESFERA aparece pela primeira vez em The Big Machine 2 como o principal alvo de Alberta Veronese, que planeja um golpe de estado para usurpar o poder da máquina e assumir o controle do mundo.

~

Ao longo dos quatro capítulos de Reboot você vai conferir muitas outras referências e crossovers como estes, os quais eu farei questão de catalagar e explicar, para que o leitor novato não fique perdido! Espero que estejam gostando do meu novo trabalho, mal começamos e já estamos caminhando para o final, mas algo bem maior vem por aí: estou planejando um SUPER ESPECIAL The Big Machine para novembro, quando a trilogia do blog completa 3 anos! Antes disso, vocês verão a estreia de Space Oddity - Uma Odisseia no Espaço.

Vai ser o máximo! Então fique aí e não mude de canal!

xxxo

L.M.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Reboot - Capítulo 2: Perseguida



POR FAVOR, INSIRA A UNIDADE DE DISCO MÓVEL EXTERNA


Quando seu pesado corpo robótico encontrou a camada de lixo da superfície terrestre, Mekare tornou-se um torpedo perfurando o mar. O mar de destroços. Sua queda desenfreada só parou quando encontrou a metade frontal de um avião partido ao meio, perdido naquela montanha de lixo aos pés da torre de onde ela saltara descontrolada, movida por um cálculo tardio causado por uma disfunção em seu cérebro eletrônico: ela havia passado um dia inteiro enviando ordens para que seus membros inferiores se mexessem, sem obter resposta. Quando as pernas finalmente responderam, correram a toda velocidade contra a parede e depois contra a vidraça, e lá estava ela agora, caída aos pés da torre do laboratório, perdida em meio a uma montanha de sucata.

É como usar um computador velho ou atolado de arquivos congestionando a memória: você clica várias vezes em cima de um programa e ele demora anos para abrir. Quando finalmente abre, várias janelas surgem de uma vez só. O mesmo vale para um robô que passou os últimos mil anos desligado. Mil anos. Muita coisa acontece em mil anos. Muita coisa muda em mil anos. Um cérebro humano não seria capaz de lidar com uma realidade totalmente diferente daquela em que ele estava na última vez em que fechou os olhos. O choque seria enorme, inevitável. Mas para um robô tudo era muito simples e categórico, tudo se baseava em análises e scanners rápidos no ambiente ao redor.

Mekare foi abrindo caminho calmamente entre os restos da humanidade, empurrando e chutando o metal enferrujado que se acumulavam a sua volta formando verdadeiras teias de ferro retorcido e sucata dependurada e presa entre elas. Pequenos robôs aracnídeos observavam-na com curiosidade, saindo do caminho desesperados à sua passagem. Era ali que eles viviam a eras, procurando baterias que ainda pudessem alimentar suas existências.

Um passo em falso na ferrugem e Mekare arrebentou a couraça do avião que havia parado a sua queda, o qual ela estava usando como apoio para os pés. Ao dar por si, já se encontrava dentro da cabine de controle, entre os bancos da pilotagem. Os esqueletos do piloto e do co-piloto ainda estavam ali, brancos, velhos e empoeirados, com suas caveiras sorridentes, de boca aberta, restos de tecido ainda se prendiam às costelas. Um deles estava sem o maxilar. Há quanto tempo aquele avião havia caído ali? Será que a pilha de sucata já havia se formado? A queda de uma aeronave daquele tamanho com certeza deveria ter abalado a estrutura do prédio, então porque a torre do laboratório ainda estava de pé?

ATUALIZAÇÕES BAIXADAS, CONCEDA PERMISSÃO PARA INSTALÁ-LAS.

Ao que parecia, apesar de tanto tempo ter se passado, a internet ainda estava funcionado.

PERMISSÃO CONCEDIDA. AS ATUALIZAÇÕES FORAM INSTALADAS COM ÊXITO.

O sistema havia procurado na rede o dia, a data e a hora em que Mekare se encontrava. Ali estava o resultado: 19 de Abril de 3267. Seus cálculos estimativos estavam corretíssimos. Mil anos haviam se passado após o sistema ter sido desligado.

Mekare então chutou a porta da cabine de controle, para deparar-se com poucos metros de corredor e poltrona, haviam muitos ossos ali, todos espalhados desordenadamente sobre os esqueletos dos estofados do Air Bus, amontoados embaixo dos bancos ou mesmo no corredor. Velhas máscaras de gás ainda pendiam acima deles, esperando por um uso que jamais viria. Mais à frente, o avião terminava, como se mastigado por uma enorme boca que o comera até a metade como um grande biscoito. Esta era a saída da pilha colossal de sucata onde Mekare havia por ventura caído: a aeronave estava enfiada nela exatamente na base. Eis então que um novo mundo se apresentava à andróide. Um mundo totalmente diferente daquele ao qual ela estivera habituada.

Estivera tão acostumada às cores, às luzes, ao movimento dos pedestres indo e vindo, dos carros zunindo no asfalto, dos aeromóveis zumbindo no escudo antigravitacional acima da sua cabeça que foi difícil processar aquela nova informação. Primeiro ela acreditou que estivesse em outro lugar, em outro país, sequestrada por governos inimigos ou facções criminosas quem sabe, arrastada para o outro lado do globo. Não estava mais reconhecendo a sua cidade até encontrar os resquícios da civilização perdidos entre a sucata acumulada como num ferro velho cobrindo o horizonte em todas as direções. O Hospital Sarah Kubitscheck estava logo ali adiante, do outro lado do asfalto irreconhecível, atravessando o que um dia fora uma movimentada rodovia, perdido no meio das pilhas de lixo semelhantes àquela de onde Mekare havia saído.

Ela o reconheceu imediatamente graças ao scanner embutido, que vasculhou e digitalizou toda a área num raio de 500 metros. Ela lembrava muito bem dele, de sua arquitetura esguia e arredondada cercada por uma pequena área verde, lembrando conjuntos de iglus, bunkers tão brancos que reluziam à luz do sol, eternamente perdido entre os colossais prédios de 30, 50, 70 andares, como um ponto do paraíso numa selva de neon. Era um hospital tão antigo quanto o campus da universidade onde a torre do laboratório havia sido erguida há séculos atrás, numa era pré-apocalipse, um de frente para o outro. Neon City crescera de uma forma tão monstruosa que havia até mesmo engolido as ruínas da Velha Macapá, uma cidade arcaica, tão antiga quanto o tempo, suas memórias perdidas para sempre. Onde estava tudo isso agora? Nada mais era o mesmo.

Mekare saltou para fora da aeronave e começou a caminhar naquele mundo novo, seus sensores externos analizando a atmosfera, o solo, até mesmo as nuvens acima dela. Tudo envenenado, tudo arruinado, tudo morto. O ar estava carregado de gases tóxicos, altamente nocivos para a vida na terra, o carbono havia chegado a níveis extremos. O solo, no mínimo estava infectado por arsênio. Nada cresceria ali em milhares de anos. Os esqueletos dos prédios brotavam das pilhas de sucata como espinhos negros perfurando as nuvens baixas, o lixo acumulado no escudo antigravitacional se chocava contra eles periodicamente, graças a falhas nas correntes pelas quais seguiam formando verdadeiros rios de sucata nos céus, pouco abaixo da pesadas nuvens negras. A chuva com toda a certeza seria ácida.

Os edifícios, as contruções, as casas, tudo ruínas, restos, nada se assemelhavam à imponência dos tempos áureos da gigantesca Neon City, nada se pareciam com o que um dia foram. A chuva, o vento, as tempestades, as intempéries com o passar dos anos haviam devorado e corroído ao máximo suas estruturas, estavam enegrecidos, rachados, alguns até mesmo tombados uns sobre os outros, poucos conservavam as vidraças, eram verdadeiros fósseis. Aquela não era uma área residencial do setor, mas Mekare já imaginava como as casas deveriam estar, com base no seu banco de dados que puxavam imagens das velhas construções gregas, egípcias, maias e astecas. Destelhadas, sem portas nem janelas, completamente vazias, o que restara dos móveis talvez esqueletos. Os hospitais deveriam ser verdadeiros cemitérios.

Calmamente, a pequena androide subiu passo a passo a rampa de acesso à passarela que cruzava a rodovia pelo alto e interligava os dois pontos de ônibus. Aquilo ali rangia e balançava a cada lufada do vento quente. A temperatura diária do planeta terra variava entre 55 graus celsius nas áreas mais quentes e -66 nas mais frias, o planeta estava vivendo no limite do extremo, e o veneno que a humanidade havia deixado para trás tingia as nuvens de vermelho e rosa com a proximidade do pôr-do-sol. Neon City era uma cidade sustentável e politicamente ecológica, mas o abandono dela após o definhar da raça humana havia deixado muitos detritos para trás. E eles haviam contaminado tudo, quase todo o sul e o sudeste do que um dia fora o estado do Amapá. Uma divisão territorial pré-apocalipse, antes mesmo de Neon City começar a erguer-se para abrigar o que restara da humanidade.

Dali de cima, Mekare tinha uma ampla visão do futuro caótico no qual ela havia despertado, e para melhor observá-la, escalou as vigas de sustentação da cobertura da passarela, lá em cima pôs-se de pé. Um raio atingiu o alto da torre do laboratório e um trovão ribombou nos céus. Ali estava a traseira do avião, logo atrás das pilhas de sucata que cobriam as ruínas do hospital. Uma das asas se espalhava na pista mais à frente, a outra atravessava as vigas de sustentação da passarela. Pilhas e mais pilhas de lixo se estendiam até onde a vista alcançava, como as dunas da areia de um deserto, elas ladeavam a rodovia como se seguissem um padrão disposto, e não uma desordem caótica.

Então aconteceu.

A passarela começou a sacudir e o chão a vibrar como se um terremoto estivesse sacudindo a terra, Mekare saltou como uma trapezista direto para a asa perdida do avião e mergulhou em uma das pilhas do ferro velho: algo muito grande estava se aproximando, o barulho dos motores daquela coisa lembravam o som de uma retroescavadeira monstruosa, rugindo como um tiranossauro, sua passagem fez um dos edifícios ceder no meio e lançar destroços em todas as direções. Em poucos segundos, o prédio veio abaixo um quarteirão à frente, elevando uma espessa nuvem de poeira que cegou completamente a visão de Mekare. O som de retroescavadeira parou, e uma legião de caminhões listrados em amarelo e preto surgiram com suas luzes vermelhas girando e girando no topo das cabines. Eram caminhões de lixo, e algo enorme seguia logo atrás deles.

Ao ver aquilo, seu sistema quase parou: Mekare testemunhou o surgimento de um autômato gigantesco, longo como uma serpente, seu corpo era segmentado como o de uma minhoca, composto por vários tubos cilíndricos enormes que lembravam uma tropa de ônibus espaciais emendados um no outro, cujo o movimento serpenteante era proporcionado por anéis pneumáticos entre eles. Sua cabeça era um enorme retângulo ladeado por duas membranas de metal que faziam-no parecer uma serpente marinha. No mais, era isto o que ele era, soltando fogo pelas ventas, parecia mais uma serpente voadora. Planava acima do mundo no escudo antigravitacional abrindo e fechando sua bocarra, mastigando tudo o que encontrava pela frente. Comia os rios de sucata numa voracidade tremenda. Era aquilo que produzia o barulho. Os motores daquilo o faziam rugir como um dinossauro!

Mekare avançou mais fundo na pilha de destroços, as aranhas robóticas recuaram chiando para à sua passagem. Foi quando um braço de metal puxou a androide pelos ombros, ela lutou para se libertar, mas havia muita sucata ao seu redor e aquele peso todo impedia o seu movimento livre. Por um momento ela pensou estar sendo atacada, mas ao atingir as extremas profundezas da duna de lixo, encontrou algo surpreendente: um grupo de velhos robôs, modelos ultrapassados e antiquados completamente enferrujados estavam agachados um do lado do outro, encolhidos e apavorados. Não possuíam olhos, mas sim pequenas telas pretas que tomavam o rosto como função. Os pixels azuis, vermelhos e verdes formavam desenhos nervosos, até que letras formaram palavras.

PERIGO
MORTE
COMEDOR DE SUCATA
FOGO
DESGRAÇA
FIM
CUIDADO
SILÊNCIO
ESCONDA-SE
MIDGARDSORMEN.

A última palavra, um nome, apareceu no visor frontal dos robôs quase ao mesmo tempo, reluzindo num vermelho vivo como as luzes que giravam lá fora, anunciando a chegada da carreata de caminhões de lixo trazendo mais sucata nas suas caçambas. Midgardsormen na mitologia nórdica era a serpente marinha que rodeava o mundo, irmã de Loki, o deus da travessura, estava condenada a morrer nas mãos de Thor segundo o Ragnarök. Mas ali, naquele mundo, Midgardsormen parecia ser o nome daquela enorme serpente metálica de olhos vermelhos que soltava fogo pelas ventas.

ELA SEGUE A CARREATA DA MORTE.
ELA SE ALIMENTA DE ROBÔS VELHOS.
ELA É A MORTE.

As frases piscavam aleatoriamente nas faces dos robôs.

- Vocês não possuem mecanismo de fala? - perguntou Mekare, usando pela primeira vez desde que despertara, seu programa vocalizador, o VOCALOID, criado pelos japoneses poucos anos antes do apocalipse primeiramente como um protótipo para simular a voz de uma cantora, o que acabou dando origem à estrela digital Hatsune Miko. Por ter passado mil anos sem uso, os alto-falantes de Mekare chiavam como uma transmissão de rádio com interferência.

NOSSO MECANISMO DE FALA FOI DANIFICADO HÁ MUITO TEMPO.

Foi o que surgiu na tela frontal do robô que havia salvado sua vida. Eles tinham os braços e as pernas finas, seus tóraxes eram ligados às bacias por estruturas de liga de metal já descobertas da proteção de borracha pelo passar do tempo, danificados, soltavam faíscas ao se mexer. Um deles desligou duas vezes desde que Mekare surgira, fazendo brilhar espectralmente o logotipo da Microsoft em seu visor facial.

- Obrigada por me ajudarem. - fez a androide.

A paz foi imediatamente interrompida quando algo mergulhou do céu e espalhou a duna com uma facilidade tremenda, revelando o paradeiro dos fugitivos. As pequenas aranhas de metal correram em todas as direções aos chiados, mas os novos amigos de Mekare não tiveram essa sorte. Por possuírem processadores danificados e antiquados, demoraram para compreender a situação, e em segundos todos eles já estavam dentro da boca de Midgardsormen, sendo mascados e engolidos pelas chamas vermelhas imediatamente. Mekare escapou por pouco, por estar sentada dentro de um velho congelador que virou para cima dela quando a cabeça retangular do monstro desceu contra a duna de sucata. A criatura abocanhou o seu esconderijo e o ergueu no ar. Sem pensar duas vezes, Mekare saltou para longe e acionou seus pequenos propulsores à jato na planta dos pés, iniciando uma fuga voadora para longe da famigerada serpente.

Isso não foi o suficiente para despistá-la. Midgardsormen lançou o refrigerador longe e avançou contra a androide cuspindo fogo. Mekare tirava vantagem do seu tamanho, enveredando por túneis, viadutos, janelas de edificios e passagens estreitas entre as dunas. Não era o bastante, nada poderia parar a serpente de Midgard, ela vinha como um verme, espiralando no ar e perfurando o concreto enegrecido como uma broca, pondo abaixo as construções milenares das ruinas, demolindo os túneis e viadutos, mastigando as colunas que os sustentavam e limpando a paisagem das pilhas infinitas de lixo.

Mekare a conhecia e não era de hoje. Aquele autômato estava em fase final de testes quando ela foi ligada pela primeira vez. Havia um video curto em uma pasta oculta no seu disco rígido que lhe mostrou isso. Um triturador e incinerador criado para atuar nos lixões, seria construído em série, um para cada grande megalópole como Neon City ao redor do mundo. Aquele que a perseguia abrindo e fechando sua bocarra metálica talvez fosse o único que chegara a ser finalizado, graças aos recursos gastados pelo governo no combate ao vírus que estava dizimando a população.

A serpente perseguiu Mekare por quilômetros cidade adentro. Logo eles estavam tão afastados das dunas de sucata que a paisagem havia mudado completamente. Ela não sabia exatamente onde estava, mas ali naquela área o chão era limpo, mas completamente rachado, escuro e morto. Os prédios eram cada vez mais altos e mais unidos uns aos outros, o espaço entre eles era mínimo, e a arquitetura cada vez mais versátil e mais psicodélica, aerodinâmica. Cúpulas, domos, anfiteatros e conchas acústicas gigantescas. Algo semelhante ao Opera Hall de Sidney surgiu no meio do caminho, mas Midgardsormen o pôs abaixo. Porque diabos aquela serpente maldita estava correndo atrás dela? Ela não estava enferrujada e muito menos inválida!

- Porcaria - o propulsor à jato estava falhando. Seu motor havia queimado muita gasolina, ela estava perdendo altitude, espiralando como uma pipa. Passou por baixo de um cemitério de carcaças enferrujadas: desviou de um ônibus, atravessou a janela de uma van, fez zigue-zague entre os esqueletos dos carros nas ruas, enveredou por becos e passagens absurdas, quicou sobre estátuas e monumentos até que finalmente o combustível acabou. Como um foguete, ela foi em direção ao chão abrindo uma vala no asfalto esburacado e rachado, capotando várias vezes com um barulho ensurdecedor, até que foi pega de surpresa por uma queda sem fim. Seu corpo havia atravessado um bueiro aberto no meio da megalópole infinita, e no subterrâneo de Neon City, Midgardsormen jamais poderia encontrá-la.


VOCÊ POSSUI 23 HORAS E DOIS MINUTOS PARA A FORMATAÇÃO DE EMERGÊNCIA, POR FAVOR, INSIRA A UNIDADE DE DISCO MÓVEL EXTERNA


Até máquinas perdem a paciência às vezes, principalmente quando balõezinhos insistentes resolvem subir no meio do seu visor. Mekare estava completamente contorcida. A queda teve um impacto tão repentino e forte que foi impossível ativar a tração antes de colidir com o solo, de modo que sua cabeça estava virada ao contrário e seus pés também. Seu corpo agora estava perdido num ardiloso emaranhado de fios de alta tensão, com faíscas fulgurantes piscando consequentemente aqui e ali. Ela já tinha levado um choque antes naquele mesmo dia, agora estava preparada: seu sistema havia isolado e igualado a carga da sua pele à da fiação qual ela estava trançada, de modo a evitar acidentes.

Ao fundo, uma música melancólica e afogada tocava, invadindo seus sensores delicadamente. Ela conhecia aquela melodia...

Sorry I ran away
Me lost too
Sorry I'm in a maze
No words do
Soar in my dreams
In my dreams
This stormy sunrise
Will die
And I'll be with you
My love, my love


Soava como um dos velhos clássicos, porém mais profundo, bem mais profundo, a voz era quase inaudível, mas seu programa de identificação de idiomas estava funcionando muito bem para que ela compreendesse e decifrasse aquele inglês arcaico. Alguém estava perdido, alguém estava num labirinto, em sonhos eternos... Alguém estava sofrendo por suas escolhas. Mekare se debateu na rede de fiação elétrica, mas não obteve resultados, estava pendurada sobre um fosso, disso ela tinha certeza. As paredes estavam muito distantes, e goteiras escorriam e pingavam ecoando no vazio. Um vapor leve subia, deveria ser bem mais forte lá embaixo.

- Temos visita, Aracne. - uma voz ecoou junto ao som do vazamento de água. - traga-a para mim, por favor.

Imediatamente, a fiação começou a revolver-se, algo grande vinha de cima. Milhares de pequenas aranhas robóticas como aquelas que habitavam o lixão surgiram das sombras, serrando os cabos que faziam de Mekare prisioneira com suas pequenas presas afiadas como navalha. Antes de cair fundo no fosso, a androide viu nas sombras o vulto de alguma coisa gigantesca, redonda, repleta de patas que rangiam se arrastando na parede molhada. Era a rainha das aranhas robôs.

Em meio à queda, uma liga metálica a envolveu e freou sua descida, tornando leve o tocar de seus pés no chão quente e úmido da câmara. Ali, tubos e encanamentos se entrelaçavam numa teia tão complicada quanto a da fiação onde ela estivera presa. Formavam um labirinto infinito sobre alta pressão. De onde viria aquela água num ambiente tão hostil qual era o planeta terra naquela era distante? Tudo estava envenenado, morto. A água deveria ser um mito!

- Pequena Mekare, é uma honra recebê-la! - a voz ecoou outra vez. Era muito semelhante à sua, provavelmente gerada pelo VOCALOID.

- Como você sabe o meu nome? - Mekare deu um passo para trás, esbarrando na carcaça de um velho robô dependurado em teias e mais teias de liga metálica e cabos de eletricidade. Ele faiscou e se desmontou em pedaços, sua cabeça quadrada quicou até os pés da androide.

- Eu sei muitas coisas, meu HD está atolado de memórias e arquivos com mais de centenas de anos! - algo vinha descendo das sombras, e dessa vez não parecia ter patas ou ser tão grande, era humanoide.

Tinha cabeça, busto e braços de manequim encardidos cobertos por um material semelhante à sua pele artificial, mas não havia pernas da cintura para baixo. O fim da sua coluna vertebral estava ligado a uma espécie de suporte triangular semelhante a uma bacia óssea, e dele vários cabos e fios pendiam sujos, faiscando, ligados a uma fonte distante oculta nas sombras. Um enorme braço biônico dava suporte à sua locomoção, e o topo da sua cabeça era repleto de espinhos que lhe saíam do meio dos olhos e iam em linha reta até o final da nuca, como uma barbatana. Era a carcaça viva de uma androide milenar, que de tão antiga, só se mantinha funcionando graças àquelas várias fontes atreladas à base da sua estrutura. Cabos como aqueles lhe saíam de trás da cabeça também. Era praticamente um esqueleto vivo.

- Como você... - Mekare começou, mas foi logo interrompida.

- Meu nome é Negasjatingaron - fez a carcaça-viva, abrindo seus braços com dificuldade, rangendo e soltando faíscas. - sou a responsável pelas caldeiras do subterrâneo. Todo o calor que vem do centro da terra passa pelos meus tubos e faz girar o Grande Gerador, que fornece energia eterna para os robôs que ainda insistem em vir até o Setor 13 se alimentar...

- Setor 13?

- Sim, é como chamamos agora as ruínas da megalópole humana Neon City.

- Quem lhe fez responsável por esse lugar? - perguntou Mekare, sentando-se. Colocou a cabeça do robô velho sobre seu colo.

- Eu mesma me fiz! Quando os homens foram morrendo, eu me vi sem saída alguma! Me escondi nos subterrâneos e passei a vagar durante muito tempo... Até que encontrei a sala das caldeiras. Os humanos que cuidavam daqui já haviam morrido há muito tempo, então decidi assumir o controle por conta própria, assim, a Mestra não me incomodaria e eu ainda lhe seria útil!

- Mestra?

- Sim, a nossa governante, a Mestra!

- Quem é ela?

- Nós nunca a vimos, mas os DK's seguem as suas ordens e destroçam aqueles que não a agradam, os restos são jogados no lixão, para servir de alimento à Midgardsormen!

Por um instante, Negasjatingaron pareceu estremecer de medo. Robôs sentem medo? Se não sentem, pelo menos possuem noção de perigo e de auto-preservação. Mekare sabia quem eram os DK's, anteriormente serviam à ESFERA como um batalhão policial, era uma tropa infinita de robôs-gorilas de titânio. Tão fortes e esmagadores quanto um tanque de guerra, equipados com todo o tipo de arma.

- Porque a internet ainda funciona depois de tanto tempo?

- Porque a Mestra permite! Ela tem tudo sob controle, tudo!

- Isso é tão estranho! Tão confuso! O que aconteceu com o mundo? O que houve com a terra depois que adormeci?! - Mekare levantou-se e olhou para cima, estava exatamente sob a luz espectral que vinha do lado de fora, atravessando o bueiro aberto como um holofote.

- Não se preocupe, jovem, eu lhe mostrarei!

Negasjatingaron recuou para as sombras, e em seu lugar, dessa vez, o grosso braço biônico que sustentava a estrutura do seu corpo trouxe um velho monitor de tela plana. O Media Player começou a executar um video na mesma hora.

O video mostrava os humanos morrendo, o pânico nas cidades, o caos instaurado. Aquele pandemônio propriamente dito começou quando a ESFERA se auto-desligou sem nenhum motivo aparente, deixando o mundo inteiro no escuro, sem segurança, sem energia elétrica, todos os sistemas fora do ar. Por mais que tentassem, nenhum humano ou máquina jamais conseguiu localizar a câmara secreta que abrigava o supercérebro. Exploraram as câmaras no subsolo tentando descobrir a razão do problema, a raiz da falha, o porquê da escuridão que se abateu sobre a terra sem nenhum sucesso. Os que se aventuraram a ir mais fundo nas profundezas do subterrâneo jamais retornaram.

Aos poucos, o que restara da população mundial migrava e se acumulava em Neon City, em busca de respostas, apenas para encontrar uma cidade vazia e morta. Logo, seus esqueletos se tornaram parte da paisagem. O lixo humano havia tornado a cidade inabitável e altamente tóxica, as fossas de tratamento subterrâneo transbordavam e espalhavam o veneno pelo solo. Mekare não viu metade dos acontecimentos porque havia sido isolada no laboratório pela Criadora, que possuía o seu próprio gerador. Por isso o desligamento mundial passou batido! Porque a ESFERA se desligara? Porque sua sala secreta se perdera?

Então os robôs se viram sozinhos, perdidos, desamparados, sem ninguém que os consertasse, que os mantivesse funcionando, completamente desorientados e fora de suas funções, sem ter quem os comandasse agora, sem seus donos e seus superiores para ditarem as ordens. Assim como os seres humanos, estes fizeram o mesmo caminho: atravessaram continentes, mares e desertos até encontrarem Neon City, seguindo os rumores de que ainda havia uma fonte de energia aqui, alternativa à ESFERA...

Os boatos estavam certos, realmente havia. Alguém estava usando a pressão da lava vulcânica quilômetros abaixo da superfície terrestre para fazer girar as turbinas que alimentavam o Grande Gerador, e esse alguém também controlava agora o exército de gorilas-robôs! Sua fama foi se espalhando ao redor do mundo e seu domínio também, com o monopólio da energia, quem não servisse a ela, que ficou conhecida apenas como "A Mestra", acabava destroçado e lançado no estômago de Midgardsormen, o descontrolado processador de lixo que somente seguia ordens suas.

As megalópoles mundiais então foram rebatizadas como "Setores". Representantes da Mestra foram enviados para para cada um deles, a maioria das cidades foram reconstruídas, mas Neon City... Essa virou o lixão do mundo! Toda a sucata produzida pelas nações robóticas dos outros continentes são enviadas dia após dia para cá em enormes navios cargueiros, despejadas nos portos e levadas para os limites da cidade numa carreata de caminhões-contêiners. Aos poucos a cidade inteira tornou-se um enorme aterro de sucata. Os robôs que aqui ficaram, foram obrigados a servir à Mestra, e os inúteis - como aqueles que salvaram a vida de Mekare antes de irem parar no estômago de Midgardsormen. - são entregues ao processador de metais, ou então passam a vida a vagar como zumbis, em busca de peças velhas ou baterias usadas que possam substituir seus membros enferrujados e alimentar sua força já gasta.

Mas além de exercer a função de ferro velho mundial, o Setor 13 também é o quartel general da Mestra. Sua sala de controle se esconde em algum lugar da mineradora, nos limites mais remotos das ruínas da cidade. Atualmente, ninguém sabe onde se encontra, mas reza a lenda que muda de lugar constantemente...

Quando a tela do monitor finalmente desligou, a carcaça viva da guardiã das caldeiras surgiu das sombras, sorrindo com seus lábios de plástico rasgados para a androide Mekare que assimilava o que o mundo havia se tornado com muita precisão.

- Eu sou Negasjatingaron, a Guardiã das Caldeiras, mas como você é provavelmente a nossa salvadora, pode me chamar de Calciferia. Não temas, pois serei tua amiga daqui pra frente!




Continua...

domingo, 24 de julho de 2011

A Era Reboot


Nesta madrugada, uma nova era começou neste blog! A Era Reboot!

Durante quatro semanas, você estará acompanhando a história de Mekare, a andróide que acordou mil anos no futuro após a extinção da humanidade, agora cheia de perguntas na cabeça: porque a desligaram? Quem a desligou? Porque roubaram seu cartão de memória? Onde está o corpo da sua criadora? Estas, entre outras perguntas perturbam o projeto M3K4-R3, que parte em busca de respostas lançando-se contra a vidraça do laboratório onde ela foi criada e onde passou o último milênio adormecida.

Pra quem não acompanha o blog, espero que tenham pelo menos a decência de ler os primeiros The Big Machine para entender o que está se passando antes de falar qualquer coisa e dizer que não está entendendo nada ou que está fora de contexto. Reboot é crossover de The Big Machine 2, de modo que temos o mundo de Maxine Fernandes muito tempo (MUITO tempo MESMO) depois da heroína, perceba que a ESFERA - o supercomputador que governa o mundo - já foi citada, assim como o grupo terrorista que atua contra esse governo.

Enfim, semana que vem tem mais. Não esqueçam de conferir as novidades.


~


X

L.M.

sábado, 23 de julho de 2011

Reboot - Capítulo 1: Despertar


- Iniciar Projeto M3K4-R3

Primeiro vieram as luzes vermelhas girando em trio na escuridão.

E de repente havia muita poeira cobrindo seus olhos. Todo o seu campo de visão estava embaçado. O sistema travou pelo menos sete vezes antes de iniciar por completo, e várias vezes todo o chato processo de leitura de HD e de sistema foi repetido. O excesso de poeira no disco rígido causa esse tipo de coisa. As aranhas já haviam feito várias teias ao seu redor, cobriam-lhe da cabeça aos pés como um véu de noiva. Havia um rato esmagado em sua mão. Um rato morto, ou pelo menos o que restou dele, seus ossos, de talvez 200 anos atrás. Estava tudo tão silencioso que ela podia ouvir plenamente ao ruído mínimo, quase inaudível, de seus pequenos resfriadores internos girando.

Após o software ter completado enfim sua iniciação sem travar outra vez, a checagem interna foi feita. Um mapa preto de linhas azuis se formou diante de seus olhos, no interior da sua retina cibernética, mostrando cada centímetro de seu corpo. Apesar de tanto tempo ter passado, estava tudo em perfeito estado.

Cada vertebra artificial estava no lugar, cada parafuso estava muito bem enroscado, cada engrenagem girava com perfeição agora, desobstruindo sua passagem e soprando a poeira para longe com seu leve movimento. Era difícil se mexer, alguns membros mais distantes demoraram a obedecer ao comando, faltava sincronia neles, e ela não estava com paciência para forçar outra reinicialização. Robôs tem paciência?

De algum modo, Mekare estava a todo o vapor, limpando as faixas grossas de poeira que cobriam seu rosto como uma segunda capinha que jazia por cima da resina perolada que lhe servia de pele. 3 centímetros de espessura mais precisamente. Ela admirou sua mão por um longo tempo, o modo como ela fechava e abria ao seu comando, as articulações elásticas expostas, escuras, entre seus dedos gelados de metal coberto por resina. Ela era realmente feita de resina? Ou era porcelana? Ela era algum tipo de boneca de porcelana?

Mas o que a intrigava acima de tudo era o motivo de seu despertar. Quem a havia ligado? Quem havia apertado o botão vermelho atrás da sua nuca, dando início ao sistema outra vez?

A última lembrança que habitava seu HD quase vazio era um arquivo de vídeo muito antigo, datando de mil anos atrás, demorou um pouco para rodar no player embutido em seu cérebro eletrônico, mas enfim reproduziu. Era ela. Aquela mulher linda de cabelos escuros cacheados, aquela mulher com lábios de mel e hálito de baunilha, os olhos dois diamantes negros de luxúria. Aquela mulher que lhe causava uma estranha pane de processamento de dados no seu sistema interno. O rosto estaria gravado para sempre naquele vídeo em dividido em duas fases: um reproduzia seus tempos áureos de jovialidade e vitalidade, sorrisos, o nome de Mekare sendo pronunciado com tanta doçura e paixão. Beijos humanos quentes em sua pele gelada.

O outro vídeo era triste, escuro, embaçado, mostrava aquela mesma dríade das florestas flutuando num líquido azulado, agora mais parecia uma náiade, dentro de um enorme tanque de vidro. Seu rosto retorcido de dor, cabos conectados a sua coluna vertebral, à sua cabeça, uma máscara de oxigênio lhe cobria a boca e o nariz, proporcionando ar puro naqueles últimos segundos de vida, quando a luz verde no monitor ao lado tornou-se vermelha e o tanque esvaziou. Um som irritante soava baixo, como se alguém houvesse esquecido a porta do carro aberta. Um único tom. O tom da morte. A própria Mekare periciou o corpo com um rápido scanner e um leve toque com a ponta de seus dedos no pulso de carne da humana. Seus sensores nas digitais não captaram batimento cardíaco, e o scanner deu o resultado logo em seguida: falência múltipla dos órgãos.

Outro vídeo em sua database iniciou sozinho ao final daquela lembrança perdida, estava na lista de reprodução do player. Era uma reportagem, gravada do noticiário internacional numa manhã de terça feira, nos últimos anos da raça humana. Havia uma mulher sentada atrás da bancada, aos fundos da imagem, mesclando-se ao azul do plano de fundo, havia imagens do mundo todo sendo repetidas num loop constante. Hospitais lotados, pessoas morrendo, caos nas ruas, destruição nas cidades.

“A situação se agrava nos países de terceiro mundo. O vírus ainda não foi classificado, e nem há esperanças de ser identificado, há uma probabilidade de se tratar de uma nova superbactéria, mas não há nenhum exame que comprove os boatos.”

Outra mulher surgiu no vídeo. Outro jornal, outra emissora, outra gravação.

“A epidemia que devastou metade da população dos países de terceiro mundo atingiu o continente Europeu e Americano muito rapidamente. Há provas de que a primeira morte ocorreu na Índia enquanto outra ocorria simultaneamente no Sri Lanka...”

Os repórteres se alternavam muito rapidamente. Eram excertos de reportagens de ínfimas emissoras diferentes ao redor do mundo. França, Inglaterra, Alemanha, Egito, Grécia, China, Japão, Coréia, Estados Unidos, Brasil, Índia, Oceania. Seguiam um atrás do outro num vídeo de aproximadamente 5 minutos explicando como os cientistas se viram de mãos atadas perante uma epidemia misteriosa que veio do oriente e se alastrou pelo mundo. Isto destruiu grande parte da população mundial em menos de trinta anos, e sequer tinha um nome. Em dez anos menos da metade da população mundial vivia. Grandes valas eram escavadas em campos abertos por máquinas amarelas colossais, os corpos se acumulavam em fileiras de caixões, sacos pretos e panos brancos. Ambulâncias, sirenes altas, viaturas policiais, mães desesperadas segurando seus bebês, crianças sem pais, idosos jogados na calçada.

“O sintoma principal é caracterizado por uma dor incômoda na região abdominal, assemelhando-se às dores de cálculo renal. Nas primeiras semanas os rins atrofiam e há uma retenção elevada de líquido no corpo, e após o acumulo de água no organismo, os órgãos afogam literalmente, e atrofiam um a um até ocorrer falência múltipla...”

“É recomendado que se ferva toda a água para o consumo, humano ou animal, deve-se evitar comer carne de aves ou porcos...”

“O vírus agora também pode ser transmitido pelo contato com indivíduos infectados...”

“Enzima mutante? Superbactéria? Protozoário? A população mundial exige uma resposta!”

“Seria este o fim daquilo que chamamos humanidade?”

E então aquele rosto. O rosto branco, alvo, redondo como a lua. A Criadora em todo o seu esplendor e sensualidade, olhos tristes e amuados, cheios de água pronta para escorrer pela face enluarada.

“Me... Mekare!”

E então o vulto negro, olhos vermelhos no escuro, e tudo apaga.

Estas são as últimas memórias de Mekare.



Acordar mil anos no futuro com certeza deixará seu processador assim, lento, vagaroso, quase parando. Deixará seus sentidos um pouco mais lerdos, seu cerébro eletrônico completamente retardado, de modo que Mekare passou um dia inteiro deitada de lado, entre algo semelhante a uma geladeira e uma bancada de laboratório. O nível de sujeira e poeira acumulada naquele canto escuro do salão circular era absurdo, seus sensores de bactérias estavam em alerta máximo, e seus resfriadores inteiros - os coolers dos computadores da nossa época - estavam girando a toda potência, tentando resfriar uma máquina que funcionava a todo vapor esquentando a temperaturas altíssimas. Isso era causado pela obstrução interna.

Mas por outro lado seus sensores externos estavam funcionando muito bem, os microscópicos fios de fibra óptica reforçada embutida embaixo da sua pele sintética enviavam um scan preciso da temperatura do ambiente, da quantidade de gases naquela atmosfera, os tipos de gases e dos microorganismos catalogados que ali se desenvolviam. Seu "sistema nervoso" estava funcionando muito bem, e seus olhos também. Eles escanearam o ambiente e catalogaram tudo o que o compunha: a circunferência do salão fechado, a distância entre o chão e o teto, os móveis e a quantidade de saídas, possibilidades sendo calculadas numa velocidade incrível pelo seu supercomputador interno.

Aquele era o mesmo salão onde o sistema fora encerrado. Onde Mekare fora desligada - e onde sua criadora morrera - de modo que o tanque cilíndrico de vidro ainda estava ali. Quebrado, mas ainda estava ali, porém o corpo nu da criadora em seus últimos suspiro já não o habitava há muito tempo. Ela morrera, se fora e isso era fato, para onde seu corpo havia sido levado era a questão. O salão circular era composto por uma enorme bancada apoiada à parede, em parte coberta por botões e teclados que eram ligados aos telões nas paredes e em outra repleta de livros, peças eletrônicas e restos robóticos, além de um resquício de química laboratorial em frascos e pequenos fornos e geladeiras criogênicas. Voltada para o Oeste havia uma grande janela esférica que se pronunciava para fora do prédio num esqueleto de ferro de modo que quem a observasse de fora viria aquilo como uma grande bolha de vidro.

Este era o laboratório da criadora.

E Mekare choraria se tivesse lágrimas. Choraria se não fosse totalmente sintética. Até seus sentimentos eram sintéticos. Suas saudades, seu amor, sua nostalgia por algo que não estava mais ali... Algo que não estava mais ali...

ALERTA: UNIDADE DE DISCO MÓVEL EXTERNA NÃO ENCONTRADA - INSIRA O CARTÃO IMEDIATAMENTE.

Aquele aviso insistente piscava no canto da sua visão como seus irritantes ancestrais do falho e arcaico Windows 7, subindo em forma de balõezinhos retangulares no canto da tela. Mekare sabia o que aconteceria se a Unidade de Disco Móvel Externa não fosse encontrada e inserida.

POR FAVOR, INSIRA A UNIDADE DE DISCO MÓVEL EXTERNA IMEDIATAMENTE.

O aviso alternava o tempo inteiro. Se o cartão de memória não fosse inserido o quanto antes, seu sistema seria reiniciado, mas desta vez, definitivamente. Seu programa recomeçaria do zero, seu HD seria formatado. Medidas de segurança tomadas pela Criadora quando a andróide fora construída e programada, para casos emergenciais. Como por exemplo, um sequestro ou um ataque terrorista dos grupos de esquerda, que eram contra o sistema imposto pela ESFERA: o cartão de memória seria removido com uma simples pressão na nuca de Mekare em meio à confusão e várias informações sigilosas como as atividades laboratoriais secretas seriam salvas. Já em posse dos rebeldes o sistema seria reiniciado, e tudo o que restara na memória interna seria apagado. Para sempre.

O cartão de memória continha, em base, toda a "vida" de Mekare. Suas lembranças e seu aprendizado eram gravadas ali, em arquivos de video e em extensões .dll, os plugins que garantiam a sua capacidade de aprender por conta própria mesmo tratando-se de uma máquina. A parte de seu ser que a tornava diferente dos outros robôs havia sido removida da entrada CDM atrás da sua nuca no momento em que ela fora desligada. Quem a havia removido?

Quem a havia arrastado até aquele canto sujo do laboratório? Ela havia sido desligada em frente ao tanque de vidro enquanto observava os sofridos lábios de dor da Criadora pronunciarem seu nome, após o blackout e os dois olhos vermelhos no escuro. Após isso, tudo é grande vazio, nada mais se lembra. Infelizmente, robôs não podem sonhar.


VOCÊ POSSUI 24 HORAS ANTES DA FORMATAÇÃO DE SEGURANÇA.


Levantar-se foi uma tarefa bem difícil. Seus membros estavam completamente descordenados. Suas pernas puseram-se eretas, mas seu tronco permaneceu jogado ao chão, como uma boneca velha, ela ficara com a cabeça entre as pernas encarando a parede. Com a ajuda de seus braços, ela colocou sua coluna em linha reta com o calcanhar, e tudo estava bem até que ela desse um primeiro passo e atravessasse o salão circular correndo para se chocar com a outra parede, o outro lado do balcão, destruindo o painel de controle. Um choque elétrico fortíssimo percorreu todo o seu corpo. A energia ainda passava por ali! Como isso seria possível depois de mil anos? O seu relógio do sistema havia parado de conferir há 800 anos atrás! O gerador ainda estaria funcionando depois de todo esse tempo?

Todas essas preocupações triviais incapazes de serem calculadas por um robô comum foram para o espaço quando ela ergueu seu rosto de porcelana e olhou-se refletida no monitor gigantesco que estava ali diante, embutido na parede. O cristal liquido havia escorrido há muito tempo, mas algo ainda fazia com que o que restara de uma tela LCD refletisse o seu corpo à forte luz do meio dia que vinha do lado de fora. Era a perfeição. Uma Vênus esculpida em titânio, coberta por uma pele falsa dura como pedra, mas lisa e reluzente como pérola. Estava empoeirada e suja, mas continuava bela mesmo assim. Usava um collant preto azulado, e tinha os cabelos sintéticos num loiro-cinzento, cortados na altura do queixo com uma perfeição tremenda. A eternidade cibernética presa no corpo falso de uma adolescente.

Mas então houve aquele momento estranho em que um impulso falso de seu cerébro eletrônico fez suas pernas andarem sozinhas, e ao dar por si, estava correndo a toda velocidade em direção à janela, ao vidro, ao céu pesado e cinzento antinatural causado pelos agentes poluentes de eras inteiras da ação desenfreada do homem - as nuvens pareciam estar perigosamente próximas ao chão - e logo todo o vidro estava estilhaçado e a ferragem da bolha, retorcida.

Seu corpo havia se chocado erroneamente e estava voando entre destroços e lixo preso a um escudo antigravitacional. O escudo antigravitacional onde os carros voadores antes planavam acima dos prédios para descongestionar o trânsito terrestre. Seu corpo flutuou entre a sucata por alguns segundos, chocando-se contra velhos caixotes de ferro, carcaças de robôs e carros, televisores, tablets aos pedaços, aparelhos telefônicos desmontados, peças enormes e minúsculos parafusos soltos no espaço. Fora de controle, ela atingiu o limite inferior da atmosfera antigravitacional de seis metros e ao dar por si, estava caindo, caindo e caindo em direção ao solo, tudo passava muito rápido, tudo aconteceu muito rápido, e como um meteoro, ela atingiu a crosta espessa do que a humanidade havia deixado para trás.




Continua...