Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

sábado, 12 de março de 2011

Capítulo I – Os Irmãos Mimieux e A Condução Fantasma


Frederico ainda sonhava com a cidade em caos constante: carros coloridos, faróis, luzes, prédios, outdoors, propaganda, música alta, monumentos, postes, cabos elétricos, pombos, trepadeiras crescendo em construções abandonadas, calçadas quebradas pelo tempo, postos de gasolina e a chuva pesada que caíra meia hora após sua saída da escola. Eram três quadras a pé até a avenida principal da cidade, onde todos os veículos rodam pelo menos uma vez por dia, num fluxo constante como sangue nervoso, buzinas, fumaça, pessoas de todos os tipos, acessórios de todos os tipos, olhos coloridos, cabelos penteados, enrolados, lisos e crespos. Óculos. Frederico estava de óculos novos naquela manhã, e por isso era capaz de enxergar o mundo de uma maneira como nunca havia enxergado, estava tudo tão diferente, tão mudado. 4 graus de um lado e 2,5 de outro.
Ele podia ver as casas, as construções, suas janelas abertas e o que havia dentro delas, podia ver os quintais ao longe e podia ver o que as pessoas faziam neles. Os rostos dos humanos estavam incrivelmente limpos agora, e ao que parecia, não eram mais borrões morenos, brancos e negros, usando roupas e passeando ao seu redor de um lado para o outro, agora havia consistência, realidade, essência, personalidade, cada coisa era única, era enxergar em High Definition.
Via Buritizal – São Camilo, foi o ônibus em que ele subiu, como sempre o fez todas as noites, agora às tardes também, porque o carro estava na oficina. Após um ano pegando a condução amarela, a cor de pão dos detalhes do veículo já lhe era muito familiar, e o deixava todo animado ao surgirem em espectro mais ao longe, para depois do sinal vermelho. Só que desta vez o sono era tanto que ele não pode resistir, as pálpebras abertas que permitiam seus olhos a vaguearem pelos detalhes da nova tela que fora pintada diante dos seus olhos pôs-se a cair com insistência, até que o embalo das curvas o deixou tão relaxado, e o vento gelado pós-chuva tão delicioso que os olhos decidiram que um pequeno descanso não faria mal algum.
Frederico acordou com um solavanco, o ônibus havia passado por cima de um cascalho enorme que o fez pular feito um rã revoltada. O rapaz foi ao chão, e o medo de passar vergonha em meio aos outros passageiros o ajudou a imitar o ônibus na hora de se por de pé novamente. Ele saltou quase instantaneamente, e ao fazer isto percebeu sua iminente solidão dentro da condução. Os únicos sinais de uma remanescente vida que permeou o veículo há algumas horas atrás eram o motorista mudo e uma garota que dormia com os cabelos longos e ondulados jogados em cima do rosto, na última cadeira do ônibus.
Frederico sentou-se buscando o celular, estava muito longe do seu ponto, isso era fato, tão longe quanto nunca esteve antes em toda a sua vida. Ladeando a estrada de pedras cinzas e soltas, estavam grossas árvores, gigantes verdes e ameaçadores, reinando e disputando o trono como rei da vegetação local. A estrada era tão estreita, mas tão estreita, que ele poderia jurar a vocês neste exato momento que não sabia se estava caindo num fosso verde ou correndo na horizontal. O ônibus acelerava cada vez mais, até que a mata grossa e virgem que ladeava a estrada tornou-se um simples borrão cor de musgo, as formas já não eram mais distinguíveis, apenas a essência das coisas do lado de fora eram explícitas, o verde escuro reinava ali.
Um desespero sem igual tomou conta do seu coração. Ele estava fora da cidade, isso era óbvio, mas onde ele estaria? Para onde aquele ônibus estava indo? Aquela estrada feita de cascalho e seixo de lago lhe era tão estranha quanto a mata fechada que a ladeava, aquelas árvores, aquelas folhas, a vegetação em si, não era natural da Amazônia, e muito menos a temperatura do ar que invadia feroz pelas janelas, rugindo violento num gelo sem igual. Ele fechou o zíper do casaco. O telefone estava descarregado, o que era impossível, pois antes de sair da escola ele se certificara de que a bateria estava cheia, completa. E enquanto isso, a velocidade do ônibus se tornava cada vez maior, cada vez mais perturbadora e perigosa sendo conduzida sobre aquele terreno instável de pequenas pedrinhas. Se o motorista tentasse frear naquele momento, não conseguiria em hipótese alguma, e o veículo tombaria de lado ocasionando num dos mais feios acidentes da história. Isso, é claro, se o ônibus estivesse lotado.
Onde estava o cobrador? Havia sumido. Frederico sentou-se e tentou ligar o telefone celular. Impossível, o aparelho não dava sinal de vida. O rapaz olhou para trás. A garota com os cabelos sobre o rosto ainda dormia tranquila, como se nada estivesse acontecendo. Ele arriscaria, então. Ou acordaria a jovem, ou falaria com o motorista. Duas pessoas não poderiam estar na mesma situação, não poderiam ter dormido tanto dentro do mesmo ônibus, no mesmo dia. A garota tinha de estar indo para algum lugar, um lugar que ela conhecia, só poderia conhecer mesmo, pois era impossível uma pessoa estar tão relaxada em meio àqueles solavancos e todo aquele som do motor acelerando e do cascalho atacando voraz a lataria do monstro de ferro.
Levantou-se, apoiando-se nas barras, foi com cuidado até o primeiro banco da frente, o banco vermelho que fica a um nível elevado dos bancos normais. Sentou-se. Estava gelado, criando coragem para falar com o motorista. Será que ele levaria uma bronca? O mundo à frente era cinza e verde. Cinza da estrada. Verde da vegetação.
- Paraná!
Murmurou Frederico. Aquela mata e aquela temperatura eram sulistas, com certeza. A estrada de cascalhos, talvez. Não, isto era completamente insano. Como seria possível, em nome de Jesus, ele ter dormido tanto a ponto de ter atravessado o país em meio a um cochilo leve numa volta pra casa corriqueira? E afinal de contas, aquilo tinha realmente um fim?
Frederico levantou-se, respirou fundo, e meteu a cara no saco para abordar o homem que dirigia. Mas, para seu desespero, não havia ninguém ali sentado, não havia alma viva pilotando aquele carro, o volante, a direção, estava vazia, o veículo estava fora de controle numa velocidade absurda!
Frederico gritou e caiu para trás, de traseiro no chão, ele pôs-se de gatinhas e percorreu a nave central de quatro. Sua mochila ficara para trás. A garota dormia na última cadeira. Agora de pé, ele segurava-se para não cair, nervoso como estava, arrastava-se, alavancava-se para a última cadeira, o tempo parecia correr mais devagar, o ônibus parecia estar ficando mais comprido, mais extenso, ele nunca alcançava a tão esperada última cadeira, sua mão nunca chegava ao ombro da jovem. Da jovem que abriu os olhos e tirou o cabelo da cara, a jovem que fez Frederico gritar de espanto.
- MIA!
A garota arregalou os olhos, olhou para um lado, olhou para o outro e começou a tremer dos pés à cabeça, soltando macabro grito ao perceber onde estava. Dentro de um ônibus em alta velocidade, correndo no meio do nada, sem motorista, indo em direção ao desconhecido. Pobre Amélia. Se ela se livrasse de tal situação, juraria por Deus que nunca mais dormiria numa aula de Física, a qual era sua última lembrança antes de tirar um belo cochilo com a mochila sobre a cara. De repente, estava dentro de um ônibus. Que situação...
Assim que os dois estavam bem despertos, de pé, olhando um para cara do outro numa disputa ferrenha para ver quem tinha a expressão mais apavorada, a floresta abriu-se num grande vale de cascalhos e pinheiros e ciprestes, cercado de montanhas e colinas rochosas e coloridas. Amarelas, vermelhas, azuis e alaranjadas, tingidas pelo contraste do pôr do sol. O céu era uma aquarela nunca antes vista. E de repente a estrada inclinou-se, a velocidade impossível só aumentava, os dois rolaram um sobre o outro e foram espremidos contra a catraca violentamente. Seriam as leis da física completamente revoltadas com Amélia por não ter prestado atenção na aula?
O que acontecia ali era o mesmo exemplo que o professor dava antes da última piscadela sonolenta da garota: Um ônibus em alta velocidade sobe uma ladeira e você é jogado para traz. Qual lei da física de aplica a isto?
As montanhas ficavam mais próximas, os pinheiros e as araucárias cada vez mais altas misturando-se a uma vegetação insana que era agora era um misto da mata amazônica e da mata sulista. A descida foi pior ainda. Um abismo abriu-se diante dos olhos dos garotos. De um lado, o vazio apavorante. Do outro, a morte iminente. Adiante deles, uma estrada estreita que era engolida ferozmente pela velocidade impossível com que aquele ônibus seguia adiante, cortando a neblina branca e o vazio que separava uma cadeia de montanhas da outra. Já cheio de hematomas, Frederico usou suas últimas forças para engatinhar até o banco do motorista e tentar tomar a direção. As outras montanhas ficavam cada vez mais próximas. Para sua surpresa, o volante, a chave no contato e a marcha, ambos estavam duros, emperrados. Amélia rezava.
Enfim o ônibus foi diminuindo sua velocidade, começou a diminuir no exato ponto em que a estrada alcançou o espaço estreito entre dois penhascos, paredes lisas de rocha. Mais adiante, outro vale abriu-se, uma revoada de borboletas amarelas cor de pão cruzou o caminho da condução. Os irmãos Mimieux estavam pregados ao chão, os rostos colados, abraçados por si mesmos e pelo medo, a velocidade estava diminuindo e diminuindo e diminuindo, até que as rodas já em cacos pararam com rangidos ensurdecedores: o cascalho havia detonado as molas e toda a lataria do ônibus. E tudo fora como um passeio bizarro de montanha-russa, sem segurança alguma, sem proteção.
O silêncio agora era mortal. Amélia Mimieux foi pioneira ao erguer os olhos. O ônibus fez o costumeiro som pneumático de repouso final. As portas traseiras e frontais abriram-se para o ar gelado do vale de cascalhos e pinheiros, um cheiro forte de ervas finas misturadas corroborou o ar e os pulmões dos humanos confusos agachados, pobres criaturas atordoadas que mal acreditavam no fim de seus martírios primordiais. A garota pôs-se de pé e com passos inseguros, nervosos e pesados, aproximou-se de uma das janelas do veículo. Ela estava estática, muda, maravilhada, confusa, tudo ao mesmo tempo. Queria muito vomitar.
Frederico não só o queria como já o estava fazendo. Ele levantou-se, cambaleou até as portas da frente, caiu ajoelhado nas pedras e colocou tudo o que estava no seu estômago para fora. Foi brutal.
Eis o lugar onde os irmãos Mimieux estavam agora:
Exatamente no meio de uma clareira, uma clareira belíssima e bem arejada, às sombras de um pico montanhoso que a protegia do sol forte da tarde que já se ia, o que a tornava escura e mística àquela altura. Sua circunferência era perfeita, encantadora, calculada, alienígena.
Exatamente como tudo ali, seu terreno era composto de calcário, calcário cinza e puro, pedrinhas geladas de todos os tamanhos, que entravam em atrito a cada passo dado, reclamando alto em conjunto, em rebelião contra as solas dos sapatos que as amassavam. Para mais adiante da clareira, na outra extremidade, o terreno entrava em declive, formando um rio de pedras que escorria numa ladeira íngreme e curva para a esquerda, ladeada por outro abismo apavorante, um abismo permeado por uma floresta densa e silenciosa, assustadora e escura àquela altura do dia. Eram 6:50 da tarde.
As árvores ali eram tão altas quanto na estrada, até mais talvez. Frederico que sempre fora tão alto agora se sentia um anão perdido num mundo estranho e inexplorado. Amélia desceu do ônibus e ajudou o irmão a levantar, abraçou-o, deu dois tapas em suas costas e o avaliou de cima abaixo. Estava num estado deplorável.
A noite era presente, mas por incrível que pareça, nem um grilo cricrilava, nem uma ave noturna piava, nem o vento arrebatava seus rostos brancos e agora enregelados pelas temperaturas baixas daquelas montanhas. O que aconteceu em seguida então os deixou completamente desesperados: o veículo deu a partida sozinho, a marcha engatou na primeira automaticamente, uma força oculta acelerou o ônibus, fazendo seu motor rugir furioso. Os faróis acenderam altos, e depois diminuíram de intensidade, a luz tornou-se parcial, mais leve, mais etérea, e então o veículo pôs-se a andar, e Frederico não ficou parado, correu atrás da condução com o rosto coberto de lágrimas, espancando a porta e gritando com o homem invisível que a dirigia.
- ABRE ESSA PORRA! AGORA! ABRE! ABRE! VOCÊ NÃO VAI DEIXAR AGENTE AQUI! NÃO VAI! ABRE! ABRE ESSA PORTA!
Amélia continuou parada enquanto o ônibus aumentava a velocidade e Frederico ficava para trás, eles já estavam quase do outro lado da clareira de rochas. Agora o rapaz esmurrava a porta traseira. Havia uma sombra estranha sentada no lugar do cobrador, uma sombra de olhos amarelos que virou-se e desferiu um olhar de desprezo para o rapaz que caiu sentado com a última arrancada do veículo, e então ele desceu a ladeira e desapareceu na escuridão da estrada adiante, sumindo na curva da descida íngreme, deixando um rastro de poeira para trás. Frederico chorava alto, como uma criança.
Amélia caminhou lentamente até ele e o abraçou.
- Acho que morremos – ela confessou.
- Não seja idiota – disse limpando as lágrimas.
- Claro que morremos, olhe para nós, olhe para esse paraíso. Este lugar não existe
Amélia tirou a franja da cara e ajeitou o laço vermelho na cabeça. Os dois se entreolharam no escuro, no silêncio, no frio. Ouvindo atentamente qualquer som vindo da floresta. Nada, vazio etéreo e perfeito. Nada de sussurros da floresta. O mundo parecia ter prendido a respiração.
- Olha só, ali tem iluminação elétrica
Ela apontou para um poste mais adiante, do outro lado da clareira, em direção a estrada de onde eles haviam vindo. Realmente, havia iluminação elétrica. Era um poste de concreto como os muitos que existiam na cidade. Sua luz era amarelada, quase um alaranjado escuro. Os insetos voavam ao redor dela sem produzir ruído algum, e mais para a direita do poste, há alguns passos, havia uma casa, uma casa pequena e amarela da mesma cor das borboletas e dos detalhes do ônibus: cor de pão.
Os irmãos se entreolharam assustados e caminharam abraçados em direção ao poste. Cruzar a clareira parecia estar levando mais tempo do que o normal, a casa e o poste pareciam muito distantes, e os dois jovens estavam cansados demais para correr. A escuridão era total, aterradora, mas eles não estavam com medo, pois os únicos sons audíveis ainda eram os do atrito das solas dos sapatos com as pedras reclamonas.
- Ainda acho que morremos.
- É claro que não Amélia, estamos respirando não vê? Ainda sentimos.
- Mas isto todo espírito faz após desencarnar, ele faz isto até se dar conta de que morreu.
- Você está me assustando.
Os dois alcançaram o poste, e ali debaixo ficaram olhando para o escuro durante alguns minutos.
- Vamos bater à porta desta casa?
- Acha que tem alguém aí?
- Acho que não, a luz da frente está apagada.
A casa era minúscula, uma cabana, um casebre amarelo de alvenaria com janelinhas envernizadas, teto pontiagudo. Toda gradeada, com pátio de azulejos azuis e portões de ferro como os das casas do centro, parecia ter sido cuspida violentamente por um bairro de classe média que não a quis mais por algum motivo e a atirou ali no meio do nada. A garagem estava vazia, exceto pelas cadeiras de balanço azuis e roxas que a enfeitavam em fila, e então as luzes da frente se acenderam. Foi um choque e tanto para os irmãos Mimieux que se entreolharam assustados e caminharam ariscos em direção às únicas luzes fluorescentes do local. A clareira agora parecia uma meia lua, parcialmente iluminada pelas luzes da casa e do poste.
As pequenas vidraças que encimavam as janelas de madeira foram acendendo também, uma a uma, e então música começou a ecoar de lá de dentro, se espalhando pela floresta afora. Uma música muito baixa, mas que se dissipava facilmente na escuridão inocente da mata silenciosa e sobrenatural que rodeava os dois. Era hora da neblina.
O espaço ao redor foi tornando-se branco gradativamente, os dois batiam palmas através das grades. A porta abriu-se.
- Boa noite... – disse o homem todo desconfiado. Um homem alto, 50 anos, careca, poucos fios de cabelo ladeando sua cabeça, presos num rabinho de cavalo quase imperceptível. Usava blusão e calças de moletom e tinha a aparência de quem passara a tarde toda dormindo, acordando-se à noite como um morcego ou uma coruja, ligando as luzes da casa.
Após uns instantes, ambos os olhares foram iluminados por clarões de espanto e felicidade, o homem correu para o portão e abriu o cadeado com as mãos geladas, tremendo. Os garotos lá fora não agüentaram de ansiedade, empurraram o ferro e invadiram o pátio, pulando no pescoço do homem e abraçando-o entre as lágrimas que teimavam a escorrer dos rostos contorcidos pelo momento de emoção. Os três agora estavam numa bola de tecido e carne impossível de se destilar, era saudade, era amor, era tempo.
- Papai – gemiam os irmãos Mimieux enquanto abraçavam o homem.
- Meninos, meninos, o que houve com vocês?! – chorava o homem enquanto distribuía beijos nervosos nas cabeças de ambos os jovens. – vamos! Vamos entrando! Não podemos ficar muito tempo aqui fora!
A família Mimieux, parcialmente e misteriosamente reunida adentrou no recinto, na casinha de pão, e a porta foi fechada logo atrás das costas cinzentas do moletom do homem de 50 anos. O mundo externo então silenciou-se.





Um comentário:

E então? O que achou?