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terça-feira, 29 de março de 2011

O Coração



Era uma vez um peito, um peito guardado por fileiras de costelas brancas e brilhantes, e elas eram cobertas de sangrenta carne, que era protegida por delicada pele.

Dentro do peito havia um coração. Um coração pulsante, que bombeava o sangue com fervor, dia após dia, mantendo o corpo vivo e cuidando do equilíbrio daquele pequeno mundo que havia ao seu redor.

Mas um dia, o coração se apaixonou. E o amor o fez sofrer muito por isso. A cada nova paixão, o coração se sentia apertado por uma mão invisível, transpassado por flechas e adagas furiosas, batia com mais força, nervoso, ansioso, bombeando o sangue e os sentimentos com força, prejudicando a ordem das coisas naquele pequeno mundo onde ele era deus.

Isso acontecia vez ou outra, paixões avassaladoras que causavam grandes tremores de terra dentro do peito, às vezes nem as costelas aguentavam tantos terremotos, o coração era o culpado, sempre era o culpado daquele sofrimento todo. E os outros órgãos começaram a ficar aborrecidos com ele, muito aborrecidos, principalmente o cérebro, que ficava num andar acima, sem no coração conseguir mandar.

E então percebeu-se que a cada novo amor, a cada novo tremor de terra seguido da decepção dolorosa, as bordas vermelhas do coração estavam começando a ficar marrons.

Poucos ligaram para aquilo, poucos deram a devida atenção àquele fato.

Todas as vezes em que o coração se apaixonou, ele pensou "dessa vez será diferente!", sempre otimista, nunca desistia de encontrar o seu outro par, o outro coração que o completaria. Mas se querem mesmo saber de uma coisa, nunca foi diferente, era tudo sempre igual, a insegurança, depois a dor, depois o sofrimento e por último o tremor de terra da decepção. Ele nunca, nunca aprendia, sempre se iludia, persistia. Até que houve um tempo em que ele começou a conversar com o cérebro, e aos poucos ele estava começando a aceitar a ideia de que o par que ele tanto procurava, não existia. Aquele coração especial que o completaria não pertencia a este mundo, a nenhum outro mundo. Porque ele simplesmente não existia. Não haveria um "alguém só para mim". Nunca. E não adiantava esperar, o outro coração que o completaria nunca apareceria.

Este foi o começo do fim.

As bordas marrons avançaram, e percebeu-se que aquilo era pedra. O coração aos poucos estava se tornando um enorme pedregulho no meio do peito, e se ele se tornasse mesmo um mineral, não haveria outro órgão para bombear sangue e sentimentos, o que significaria a morte daquele mundo. Conforme a faixa marrom avançava para o centro, aos poucos, com o passar dos anos, as extremidades foram tornando-se cristalinas e cintilantes, quase transparentes, e quando a luz as atravessava, se decompunha nas cores do arco-íris, num evento belíssimo. Mas aquilo significava mais do que beleza, significava a morte se aproximando.

E então, após muitas eras, houve um período de muito frio interno. Um frio insuportável havia tomado conta do peito, havia muita neve ali dentro, e a primavera nunca, nunca chegava. Eram os efeitos do começo do fim. O coração agora possuía algo minúsculo, semelhante a um botão vermelho, um núcleo, um olhinho bem no centro que ainda batia, isso mantinha os outros órgãos vivos, as outras criaturas respirando, era o que restava da grande massa muscular que batia com vontade no lugar do enorme diamante que havia tomado o seu lugar no centro do peito. Mas ninguém parecia se importar com isso! O resto do corpo sequer se lembrava da importância do coração, haviam se passado tantos anos, mas tantos anos, que os órgãos agora nem lembravam que quem os mantinha vivos e funcionando, era o coração, ou pelo menos o que havia restado dele, e por isso estavam pouco ligando para o frio que dominava o peito num inverno eterno.

Mas então houve um período que as flores começaram a aparecer, algo que muito foi comemorado. O coração (ou o núcleo dele) estivera se comportando de forma estranha havia muito tempo, batendo com mais força, crescendo, dobrando de tamanho, forçando a rocha ao seu redor, fazendo rachar as camadas de pedra preciosa que antes era sua parte maior.

Os outros órgãos trataram de descobrir o que estava acontecendo, e como não poderiam saber de outra maneira, perguntaram aos olhos, as janelas da alma. Aqueles únicos indivíduos que possuíam contatos com outros mundos.

Os olhos assentiram e confirmaram as suspeitas. Um outro coração estava mandando um sinal fraco, distante, mas ainda assim, forte o suficiente para fazer aquele pequeno pedacinho vermelho do núcleo do diamante se debater furiosamente no peito.

Mas algo estava muito errado. Os olhos são órgãos sonhadores e passivos, que adoram se iludir, de modo a enxergarem somente o que desejam, só veem o que querem. E o sinal do outro coração precisava passar por eles para atingir o núcleo do diamante. Até alcançar o centro do peito, os sinais já foram tão modificados que não se assemelham mais nem um pouquinho de nada com o que eram antes de serem captados por aquelas duas criaturas avoadas e românticas, de modo que toda a culpa da ilusão fantasiada pelo coração advinha deles. E ninguém nunca havia se tocado disso. Não até aquele momento, por isso exigiu-se confirmação e certeza dos dois, que afirmaram com muito fervor ser tudo verdade: um outro coração estava mandando sinal.

Como era de se esperar, os dois estavam redondamente enganados (devido ao seu formato globular, era comum que eles estivessem redondamente qualquer coisa), e os sinais foram mais uma vez mal interpretados por eles, chegando deturpados ao peito, de modo que o coração recebeu esperanças falsas de uma última luz advinda do fim do túnel.

E então houve o maior de todos os terremotos.

Nada no corpo ficou de pé depois daquilo. Os olhos ficaram cansadas, a boca ficou seca, o estômago faliu, e aos poucos o corpo começou a secar e a definhar. Cada tremor de terra, cada coração partido, fazia com que o peito estremecesse de norte a sul, destruindo tudo o que havia no caminho. A transformação então foi completada. Não havia mais núcleo, não havia mais coração, somente uma grande, transparente, brilhante e gelada rocha sem vida. Tão bela, tão triste, estagnada no meio do peito. Não havia outra saída.

Todo o sentimento e toda a tristeza estavam tão comprimidos dentro daquela pedra que não houve escapatória, o que antes era um coração explodiu, e levou todo o peito junto consigo, espalhando-se no vazio da imensidão do espaço escuro. Estilhaços minúsculos de paixão e sonhos congelados pela ilusão se espalharam pelo universo, antes um mero espaço composto de nada, agora aos poucos sendo povoado na velocidade da luz pelos restos de um coração apaixonado.

E então, cada pequeno pedacinho cintilante do coração tornou-se uma estrela no céu que nós vemos todas as noites. Assim nasceram as constelações.

Ninguém nunca soube a quem pertencia aquele coração que explodiu e iluminou o céu com seus restos, trazendo beleza e segurança durante as noites para toda a eternidade...





Por Antonio Fernandes, em 30 de Março de 2011.

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