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quinta-feira, 24 de março de 2011

Capítulo V – Dimitri Mimieux e a Estrada de Cascalhos


- Porcaria de motor – chutou o para-choque do carro com força e coçou a barba rala.
Uma cigarra zumbia no meio daquele cerrado, perdida por entre as árvores baixas de galhos tortos e folhas pontiagudas. Chão duro, lagartos e insetos. Uma brisa quente levantou a poeira da estrada de terra batida, amarela, alaranjada, vermelha, uma nuvem quase o cegou.
Ele levantou a cara de dentro da parte elétrica do carro, estalou a coluna e encostou-se no para-choque que havia chutado, olhou ao redor.
- Merda – sibilou entredentes – merda, merda, merda!
Iria demorar séculos até um carro passar ali. Aquilo era um atalho que poucos conheciam. Ele precisaria estar na cidade vizinha às seis da tarde, essa era a hora prevista de chegada, estava perdendo horas preciosas de estrada. Laranjal do Jarí estava longe, muito longe agora. Maldito atalho, maldito.
A saída era admirar a paisagem e se perder nela, tentar abstrair até que uma condução passasse e lhe prestasse socorro. Os ônibus usualmente não tomavam aquele caminho, o caminho mais curto, sempre iam pelo caminho mais longo, mais árduo, mais trabalhoso, pelo simples prazer de maltratar os seus passageiros. Aquela estrada horrenda, tantas promessas de asfalto nunca cumpridas. Nada que os políticos corruptos deste estado falam se escreve.
- Não posso ficar parado aqui, não posso. – homem de quarenta anos impossível, pensava que tinha 20 ainda, Dimitri Mimieux nunca foi acomodado, nunca suportara ficar parado, trocara de profissão tantas vezes, se mudara de tantas cidades, para acabar parando ali, no estado do Amapá, longe de tudo e de todos. Até que não era um mal lugar, mas também não era dos melhores. Ao longo de sua vida já esteve em quase todos os estados brasileiros, exceto no Amazonas e no Acre, já fora oficial do exército por muitos anos até pedir a despensa, e depois disso foi delegado, também foi ator na adolescência e tentou alguma coisa na carreira política, sem muito sucesso. Sua vida foi uma sucessão de mudanças que não deram em nada. Agora ele estava casado havia 15 anos, tinha um casal de adolescentes e uma mulher entediada. Era isso o que ele queria?
O horizonte rugiu. Ele olhou pra trás.
O sol tinia sobre sua cabeça como um sino maligno dourado, mas o horizonte era negro e cinzento, há alguns quilômetros daqui já chovia, Deus abençoava aquele cerrado poeirento cheio de plantas secas e venenosas com a sua tão preciosa água! Havia se lembrado enfim daquele pedacinho de mundo esquecido.
Correu pra dentro do carro. A chuva chegou. Foi uma torrente repentina e avassaladora que nublou toda a sua visão, a chuva foi tão forte que fez a estrada desaparecer em questão de segundos, e o cerrado à beira da estrada se tornou um nada além de vultos distorcidos pela água que escorria no vidro da janela do carro. O mundo lá fora havia sumido, ali dentro estava abafado como um forno. Dimitri abriu o vidro da janela da frente por impulso, para tentar fazer entrar um pouco de ar, mas o que entrou foram jatos e mais jatos de água gelada. Ele fechou.
- Ótimo, maravilhoso!
O tempo pareceu se arrastar, o tédio o estava dominando aos poucos. Tentou todas as posições possíveis naquele banco traseiro, tentando dar conforto para a sua coluna já massacrada pelos anos na luta. Frederico tinha a quem puxar, seu pai era alto, corpulento e musculoso, o filho era uma versão pouco franzina do mesmo, mas tinha os ombros largos, de modo que um carro qualquer não os comporta com o conforto devido, porém o dinheiro estava escasso naqueles tempos difíceis. Dinheiro! Ele estava a caminho de um serviço nessa cidade vizinha, quilômetros que podiam ser percorridos em poucas horas dispensáveis se estivessem asfaltados. Mas que grande porcaria.
Talvez o sol tivesse afetado sua cabeça, talvez aquelas sombras se movendo lá fora fossem só mais variações da distorção da água no vidro da janela do carro, mas quando o homem suado quase adormecia, e algo bateu com força na traseira do automóvel parado de motor inutilizado, ele sentiu que era hora de sair daquele lugar. Aquela estrada estava mexendo com a sua cabeça. Ele tentou se esgueirar para ver do que se tratava, na esperança de que fosse um outro carro. Nada. Não havia nada lá. Mas a coisa que se chocou contra ele fora grande o bastante para movê-lo alguns centímetros.
De repente ele sentiu medo. Era a primeira vez que aquele medo o afetava. O medo puro e indescritível. Ele tinha que sair dali.
Na chuva já fraca ele correu como o Diabo foge da cruz. Correu com todas as suas forças, sentindo-se perseguido, observado, correndo sério perigo de vida. O cerrado acabou e uma floresta densa abriu-se ao seu redor, uma floresta de árvores grossas de copas altas e pouco espaço entre elas. A terra alaranjada e poeirenta havia enfim se tornado barro, sopa de lama, e de repente era como andar sobre ovos, o chão estalava, era como andar a beira de um lago cheio de pedrinhas soltas. Um lago de seixos. Dimitri estava fora de si, flutuando entre seus delírios e a realidade, vendo sombras e vultos, andando por força do sobrenatural, pois forças próprias ele não possuía. Nenhuma. Era um errante, um zumbi, um morto vivo tremendo de frio e de fome.
A chuva parou enfim, e após muito andar, cada passo fazia seus ossos gritarem, eles pareciam vidro cortando dentro da carne, as canelas já estavam duras. Já era noite quando ele encontrou a clareira. O poste acendeu sua grande lâmpada amarela no exato momento em que ele pisou no pátio da casa cor-de-pão. Sentindo os azulejos gelados após retirar o sapato surrado pela estrada maldita. Luz elétrica, ar condicionado, micro-ondas, fogão e muita comida na dispensa, roupas e camas feitas, lençóis quentinhos e um computador antigo que rugia ao ser ligado e fazia tremer a mesinha onde ele estava. Um HD cheio de músicas e mais nada. Nenhuma pista do dono da casa.
O dono nunca apareceu.
Todas as tentativas de achar a saída daquela estrada foram em vão.
E tem sido assim durante dois anos.
Até aqueles dois jovens aparecerem perdidos à sua porta.





capítulo curtíssimo, rs

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