Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

quarta-feira, 30 de março de 2011

Capítulo VII – Amélia Mimieux e a Borboleta Amarela


- Tem um terreno baldio do lado de casa, não acha isso perigoso? – perguntou ela, fria. Já não era a mesma mulher de antes. Agora, com quase trinta anos, era preocupada e um tanto amargurada, tinha o cenho sempre franzido e os olhos azuis-água sempre marejados. Mas o carinho para com os filhos era o mesmo. Ver Amélia sorrindo, Frederico jogando bola no quintal, isso era sempre muito prazeroso, e fazer isso ouvindo Djavan enquanto a lavadora batia a roupa e ela lia um livro era melhor ainda. Melhor ainda quando o marido estava viajando.


Dimitri estava se comportando como um verdadeiro idiota ultimamente. Não era o mesmo desde que deixaram a França, e já estavam prestes a se mudar de novo. O interior do Paraná não era o que ele queria.


- Não me preocupa nem um pouco. – fez ele.


- Bandidos podem se esconder lá – respondeu ela, baixando os olhos para o livro outra vez.


- Você parece muito pouco preocupada também, lendo esse livro aí. – o carro fez a curva. – deveria se preocupar com os meninos e o português deles. Eles estão há um ano aqui e não conseguem aprender nada na escola porque você fala com eles em francês em casa. Isso os confunde, Amelie.


- Não posso deixar a língua materna deles morrer. – disse, despreocupada enquanto virava a página do livro. – esse porco é um safado!


- O que?! – espantou-se o marido, quase perdendo a direção – Isso são modos, Amelie?!


Ela gargalhou.


- Não queria que eu falasse português fluentemente? Estou treinando! – riu outra vez.


- Você é louca, está ficando louca. – o sinal fechou. Silêncio por um tempo. – que livro está lendo?


- A Revolução dos Bichos – respondeu, antes sequer do marido terminar a pergunta direito. Ele grunhiu.


- Não adianta xingar os personagens – fez ele – é até covardia, eles não podem se defender.


- Lhe digo o mesmo.


- O que está querendo dizer?! – perguntou, desconfiado.


- Não adianta me xingar, eu nem posso me defender.


A briga sempre começa assim. Chegaram em casa se agredindo verbalmente. Amélia pintava em seu quartinho enquanto Frederico caçava insetos na lama lá fora. Eram crianças ainda, pouco mais velhas, cinco anos haviam se passado desde a vinda da França.


- Esses dois nunca se cansam – Amélia suspirou e voltou a pintar. Uma borboleta amarela enorme, tão viva quanto as verdadeiras, brincava na tela tomando forma e cor. Que linda, pensou, admirando a obra. Ficaria pendurado na parede da sala. Aquela borboleta estava frequentemente invadindo seus doces sonhos noturnos, a maioria deles era sobre uma revoada delas, várias borboletas amarelas migrando para acasalar, cruzando a frente do carro unidas numa nuvem.


No sonho ela estava viajando, ela, o irmão e os pais, no velho carro quadrado que usavam na França, aquele carro com o interior claro e de teto baixo que fazia Dimitri Mimieux parecer um gigante recurvado sobre o volante. Era sempre assim, eles nunca chegavam ao destino, o sonho inteiro era a viagem e paisagens, infinitas, sem fim, montanhas nevadas distantes, florestas verdes geladas, sorrisos e borboletas.


Amélia era uma criança prodígio, com seis anos foi classificada superdotada, falava fluentemente e pintava divinamente. Seu único defeito era ser mimada. Mimada até demais. Ela e Frederico viviam em pé de guerra, brigando por tudo, eventualmente pelo fato de ela ter o péssimo costume de mexer nas coisas dele, e ele desde aquela idade sempre fora muito possessivo.


- Já estão prontos?! – gritou o pai. – hora de ir pra escola!


O caminho para o colégio era tão arborizado, tão arejado. As árvores passavam voando pela janela do carro numa velocidade razoável. Por mais estressado que o pai estivesse ele nunca acelerava, ele sempre ia numa velocidade constante e agradável, que fazia o vento gelado da serra mais gostoso, mais delicioso, saboroso. Era tão bom ir para a aula, voltar então era uma maravilha, a rua principal da cidade era um prato cheio para os olhos, pelo menos pra quem gostava da natureza, do cheiro das folhas novas, do fim do inverno e da chegada da primavera.


Aquela cidade inominável no interior do estado do Paraná ficava no alto, de modo que todo inverno sempre tinha aquela ameaça constante de neve, havia um prelúdio da chegada, mas ela própria dita nunca se consumava. Agora era o fim da estação, as flores já começavam a brotar nos ipês e nas cerejeiras, tulipas delicadas nos canteiros e margaridas salpicando as varandas aqui e ali despontavam.


- Vamos para o Amapá assim que vocês saírem de férias, meninos – disse o pai, cortando o uivo do vento que entrava pelas janelas abertas do velho Fiat vermelho.


Frederico estava com a cara metida num livro. Amélia parecia ter sido a única a prestar atenção no que o pai havia dito.


- Mas porque papai? – ela se lembrava muito pouco da última mudança, era uma garotinha de três anos naquele período – parece que foi ontem que chegamos da França!


O pai lhe respondeu, parecia muito calmo na verdade. Quando eles brigavam, ele sempre parecia muito calmo depois. Nunca era verdade, sua careca vermelha e a veia enorme saltada na testa provavam o contrário.


- A vida é assim mesmo, minha princesa – disse, olhando para um lado e depois para o outro antes de atravessar o cruzamento. – nós vivemos em constante mudança.


Frederico continuou lendo o livro. Harry Potter e a Câmara Secreta. Os olhos de Amélia iam do irmão avulso às costas do pai vestidas no suéter cinza.


- Onde fica esse tal de Amapá? – ela passou pro banco da frente, se contorcendo feito uma lagartixa.


- Não é uma pessoa, é um estado, meu bem. – ele parecia ignorar o fato de que era perigoso uma criança ficar se movimentando dentro de um carro em movimento.


- Onde fica? – tornou a perguntar, largando-se no banco com um baque surdo.


- Longe, na outra ponta do país!


Mantiveram silêncio então. Chegaram à escola, se despediram do pai com beijinhos estalados na sua barba sempre por fazer e entraram. Tudo era sempre muito chato quando se estava na terceira série. Conversar com os amigos sempre fora a única diversão. A professora não ligava muito pro que Amélia fazia ou deixava de fazer, havia desistido de tentar convencê-la a estudar ou fazer alguma coisa dentro de sala, a menina tinha resposta para tudo na ponta da língua e sabia usar psicologia reversa como nenhum adulto conseguia. Ela os envolvia numa armadilha como uma aranha soturna e os pegava na teia, a danada.


Não tinha porque discutir com Amélia Mimieux, a não ser que quisesse perder toda a compostura e autoridade diante de uma turma de crianças com apenas oito anos de idade. A escola ficava um pouco afastada da cidade, no meio de um campo aberto, construída no sopé de um morro, havia araucárias ao redor, espalhadas e bem separadas aqui e ali. Diante do prédio havia a estrada e depois da estrada um profundo vale se abria a perder de vista, e as suas cores no pôr-do-sol eram as mais lindas de se ver, pelo menos naquela região.


Tudo se tingia de vermelho, amarelo e laranja, as árvores, as pedras, as nuvens. Havia um lago no meio dele, ou um arroio como aquele povo estranho chamava. Amélia nunca se acostumaria ao português daquele lugar, não era o português do seu pai.


- Não está vendo? – perguntou para a amiga.


- Vendo o quê?


Ela apontou.


- Onde? – a amiga procurou por toda a paisagem, mas não encontrou o que Amélia queria que ela visse.


- Aquela borboleta amarela, voando ali na beira da estrada! – era hora do intervalo, e as crianças a esta hora costumavam brincar numa área aberta do prédio que ficava logo à frente, pouco afastada da entrada. Era como um pátio, mas possuía uma caixa de areia e brinquedos. Escorregadores, balanços e três casas de madeira onde as meninas fingiam serem princesas em seus castelos. Havia também gangorras e um laguinho com peixes e uma estátua de anjo bem no meio. O lugar era cercado por um gradeado alto cuja base era um pequeno muro de meio metro feito de cimento, tijolos e argamassa. Nele brotavam gramíneas e trepadeiras que se enroscavam nas grades. Era muito fácil para a magricela Amélia atravessar as falhas entre as barras. Foi o que ela fez.


- Amélia, aonde você vai?! – perguntou a garotinha gordinha, correndo até o gradeado. – não pode sair! Volta! Você sabe o que acontece com quem sai!


- Eu preciso ver aquela borboleta! – respondeu, voltando para a amiga. – eu a pintei hoje de manhã! Ela deve ter escapado da minha tela! Ela estava na tela e agora está voando ali do outro lado da estrada! – voltou a cabeça para lá, para o outro lado, em direção ao vale profundo, mas não eram os morros ou a floresta que ela via, ela via a borboleta do outro lado da estrada. Sua tão amada borboleta pintada com tanto carinho na tela estava viva e voava logo ali. E como ela era grandiosa! Magistral! Havia certamente um grande espaço entre a propriedade da escola e a estrada. Era uma extensão verde de gramado molhado que se estendia até a beira do asfalto com arbustos crescendo aqui e ali. Ela era pequena, seria fácil se esconder atrás de um, depois de outro, até chegar à beira da rodovia e atravessar para encontrar a borboleta, sua tão amada borboleta!


O dia era gelado como qualquer outro dia de começo de primavera. E as moitas já estavam salpicadas de florezinhas vermelhas, amarelas e alaranjadas. Outras borboletas e insetos voavam ali perto, como libélulas ou joaninhas, mas nenhum deles se comparava à sua exuberante borboleta amarela, que alçava voo de um lado para o outro, fazendo círculos perfeitos no ar.


Pousava nas folhas compridas do capim e depois voltando ao ar, mas nunca se afastava daquele lugar, como se a chamar Amélia para si, seduzi-la. Sempre no mesmo lugar, como um humano andando em círculos a pensar, ou uma criança a brincar. Sim, era uma criança a brincar. Suas asas e seus saltinhos de uma folha a outra pareciam divertidíssimos! Em breve Amélia estaria com ela. Atravessou a estrada correndo. Havia um animal amassado no asfalto no seu caminho. Já era só carcaça, havia grudado no chão há muitos dias. E lá estava a borboleta, amarela, radiante, como duas fatias de pão unidas por um barbante delicado e encantando por alguma magia antiga que as fazia baterem como asas.


Aquele momento era perfeito, nada podia estragá-lo, nada, aquela era a sua borboleta, ela havia pintado, ela havia dado a vida àquele ser. Esticou o dedo e ela pousou, gentil e delicada. Amélia soltou um risinho baixo e se inclinou para beijá-la.


- AMÉLIA! – um berro estridente cortou o silêncio eloquente do campo verdejante. O momento foi destruído. A professora gritava desesperada do portão da escola, há alguns metros atrás.


De repente o chão não havia. Talvez o susto a tivesse arrastado para a beira do precipício, talvez tivesse se aproximado demais do limite entre a terra e o abismo para ficar perto de sua amada borboleta. Talvez tivesse sido arrastada por alguma força misteriosa para baixo, para dentro do vale. Ela nunca soube explicar como caíra e rolara à ribanceira feito uma fruta madura que despencara do galho. E por mais que tentasse explicar, não conseguia, porque em um dado minuto ela estava ali, com o pé na terra, no capim, há alguns centímetros do meio-fio, e de repente ao virar-se em direção ao berro da mulher, já estava descendo. Descendo com tudo. Aquilo lhe rendeu um pulso quebrado e algumas escoriações bobas nas pernas e no rosto.


Chorando suas dores, ela gemia pelos arranhões e pelos baques, mas também gemia pelas pedras geladas que lhe agrediam a pele. Pedrinhas de lago, acinzentadas, pretas, marronzinhas. Ela havia descido até o vale enfim. E lá em cima, não muito longe dela, a sua amada borboleta amarela voava tranquila em círculos, como se velando sua queda inoportuna.


- AMÉLIA! – duas professoras, a diretora, o porteiro e mais dois homens desconhecidos surgiram lá em cima. – NÃO SE MEXA! NÓS JÁ ESTAMOS DESCENDO!


Amélia não se mexeu. Quer dizer, pelo menos não o corpo, mas sua cabeça virou para o lado, para o espaço entre as árvores que mostrava uma trilha de seixos, um caminho para uma clareira iluminada pela pouca luz do dia nublado. Do outro lado da clareira havia uma casa, um casebre de alvenaria, teto pontudo, janelas marrons envernizadas e gradeadas, portões gradeados de ferro e colunas de madeira sustentando o teto do pátio que ostentava seis cadeiras de balanço enroladas em macarrão roxo e azul.


Como ela se lembrava desses detalhes com tanta nitidez? Se lembrava até do poste ao lado da casa! Se lembrava do modo como o capim crescia nas laterais e de como um sapo coaxou ali perto, tão alto que a assustou. E quando deu por si estava sendo içada pelos braços de um alguém estranho. Não havia mais trilha nem clareira nem casa. Apenas a floresta densa, fechada, abafada e fria. Gelada.


”Vai ficar tudo bem neném, vai ficar tudo bem” foram as palavras do moço gentil que a resgatou. Aquilo mexeu profundamente com seus pais. A escola foi duramente responsabilizada por isso. Amélia ficou de castigo por longos períodos imemoráveis, e houve um tempo em que passar o intervalo entre as aulas na biblioteca nem era tão ruim assim. Mas a imagem da casinha amarela não saiu da sua cabeça durante um bom tempo. Que lugar agradável de se viver! Ali, no meio da floresta, longe de tudo e de todos, tranquilidade e calmaria. Aos poucos o tempo lhe roubou a memória, mas agora tudo parecia tão claro como nunca fora. Uma luz se acendeu em seu cerebelo numa noite escura e friorenta.


- Eu também. – fez ela, olhando para o rosto atônito do irmão, a observar o mundo estranho pela janela.



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