Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

segunda-feira, 12 de março de 2012

PARTE ONZE: LEVIATHAN!


- Nosso povo costumava viver em uma galáxia afastada, muito distante, em harmonia e paz constantes – enquanto falava, o Príncipe Alado revirava suas almofadas e brinquedos em busca de esferas de metal perfeitamente redondas e reluzentes, as quais o príncipe sacudia com força, atritando-as umas nas outras por vezes, isso as acendia como vagalumes azuis. Ele as jogava para cima e elas flutuavam como pequenos sóis azulados. A essa altura Ray Ann já havia se acostumado à escuridão, de modo que podia ver quase tudo à sua volta, inclusive as distantes múmias dos ancestrais de Alado nas gaiolas ao redor, o que lhe causava arrepios constantes – do caminho entre a nossa galáxia até esta, dez gerações da minha família se sucederam no cruzeiro espacial, vivendo em gaiolas como estas. Da chegada até o último ciclo de trevas, cinco gerações se passaram. Eu sou o último Alado.

Ray permanecia sentada, olhando atentamente para cima, as belas esferas flutuavam para cima e para baixo com graça e maestria, num quase balé. Logo tudo estava iluminado pela luz azul, e o ambiente da gaiola onde Aib’Koletis mantinha o príncipe cativo já não parecia mais tão assustador ou repressivo como antes. O vulto de burca havia saído de lá já há algum tempo, e os enormes portões que levavam ao reino de lava permaneciam bem fechados, de modo que o calor escaldante não mais entrava. Tudo o que havia era uma leve e fresca umidade, provavelmente vindoura de pequenas passagens de ar no alto da cúpula da câmara cavernosa.

- Então você já nasceu cativo? – ela perguntou.

- Sim, de certo modo. Sinto-me preso a ela, preso e completamente louco por ela. Ela tem algo que me prende, não sei explicar – Alado sentou-se de frente para Ray Ann e olhou dentro dos olhos dela. Era incrível o modo como ele parecia humano. Não fosse aquele par de asas atrofiadas presas em fortes amarras e aqueles penetrantes olhos violeta, ela podia jurar que ele era um rapaz como qualquer outro, um rapaz judeu, é claro. O nariz dele era avantajado, porém belo e muito bem desenhado. Seus membros eram finos e delicados, sua estrutura era leve como a de um pássaro, ele passava a impressão de estar pronto para flutuar a qualquer momento de tão leve e delicado que era. Dono de um rosto fino e esculpido cuidadosamente, a criatura humanoide mais perfeita do universo até agora. Ela jamais imaginaria encontrar algo tão humano ali, entre estrelas distantes e planetas selvagens. Só de imaginar as criaturas brutais contra as quais lutara na arena, comparadas ao delicado Alado, ela sentia tonturas.

- No meu planeta há um nome para isso! – Ray se levantou para esticar as costas doloridas e se espreguiçar – quando um indivíduo é sequestrado, e passa-se muito tempo após o sequestro, a pessoa se acostuma à imagem do sequestrador e desenvolve afetividade por ela, aos poucos isto pode se tornar paixão e até um amor. Não lembro o nome no momento, mas parece que é isto que está acontecendo aqui. Isso deve ter se intensificado pelas gerações que se passaram em cativeiro, você já nasceu sequestrado, preso, ela é tudo o que você conhece fora seu povo e as cavernas. Vocês passaram eras aqui embaixo escavando e minerando, operando máquinas, escravos dos desejos do império. Vocês não conhecem outra vida se não esta. Você, em especial, não conhece outra vida se não esta.
Ele abaixou a cabeça, pensativo.

- Não cheguei a conhecer minha mãe, conheci meu pai por acaso em uma das minhas inúmeras fugas. O nome dele é...


- Yeovah – disse Donnick, repousando sua mão delicadamente sobre o ombro franzino da figura ao seu lado. O ancião encurvado ainda segurava o fio prateado que pendurava o casulo seco de onde a arraia neon havia saído, usado por ele como lanterna há poucos minutos atrás. O misterioso ser ainda planava serelepe ao redor, descobrindo um novo mundo após deixar sua fase crisálida pra trás, após deixar sua prisão depois de completa a metamorfose. – o nome dele é Yeovah!

- E desde quando você fala alienígena? – exclamou Augusta, confusa – pensei que a única ET aqui fosse a Fábia!

- Ei, pera aí um instante! – a gorduchinha levantou o báculo, com uma expressão tremendamente ofendida estampada no rosto. Hikikomori voou em cima dela, abaixando o braço da garota delicadamente.

- Mantenha isso abaixado, por favor – a Sybila tentou parecer controlada, mas ficou visivelmente nervosa após o movimento feito pela garota com a sua pseudo-arma aparentemente inofensiva.

O capitão riu, divertido.

- Eles falam um tipo estranho de hebraico, eu entendo a maior parte do que eles falam... – ele olhou para trás, os vultos escondidos nas sombras recuaram um pouco mais longe – ele fala, na verdade. Os outros parecem não gostar muito da minha presença... Da nossa presença, em geral.

Fez-se silêncio enquanto eles se entreolhavam tentando medir a situação e pensar no próximo passo. Segundo o tradutor temporário Donnick, Yeovah estava ali para alertá-los de que ao final daquele túnel, um enorme vale rochoso se abria, cercado de cânions subterrâneos, quase uma versão inferior do mundo morto que havia lá em cima. Segundo ele, uma criatura chamada Vigia estaria esperando do outro lado do vale para liquidá-los assim que o atravessassem, e isto os deixou em estado de alerta, quase em desespero. Ser morto na escuridão de cavernas alienígenas por um monstro que ninguém jamais havia visto ou sabia dizer exatamente o que era não parecia nada agradável. Yeovah também disse que Ray Ann havia sido levada pelo Vigia e estava sendo mantida em cativeiro junto ao príncipe de seu povo, Alado, mas a pior parte estava ainda por vir.

- COMO É QUE É? – disseram eles em coro. Até Donnick mostrou surpresa ao traduzir aquilo, nem ele esperava por isto. O ancião resmungou baixinho outra vez.

- É, parece que a nossa nave zarpou sozinha! – ele deu de ombros, tentando parecer pouco preocupado, mas a ideia de estar preso para sempre naquele planeta anão desagradável não soava nem um pouco convidativa, tanto para ele quanto para os outros. A estrela que eles orbitavam era uma gigante vermelha, o que significa que ela é uma bomba relógio: a qualquer momento pode explodir e aniquilar toda a vida num raio de milhares de anos-luz!

- Eu sabia que isso iria acontecer – Hikikomori chiou alto o suficiente para ser ouvida, ainda segurava sua placa de vidro entre os longos dedos delgados – nos esquecemos totalmente dos servos de Aib’Somar, eles estavam lá dentro conosco o tempo inteiro!

- As toupeirinhas! – exclamou Pietro – malditas sejam!

- Elas mesmas – Hikikomori começou a dedilhar no computador portátil, emitindo zumbidos e bipes delicados ao pressionar a ponta do indicador contra o cristal. – ao verem que a nave estava sob o ataque dos escorpiões, elas levantaram voo e programaram uma rota de volta à Taurus, estão voltando para o planeta artificial que orbita Aldebarã.

Imediatamente o corredor foi preenchido por ecos de muxoxos, resmungos e exclamações de decepção, desesperança e indignação. Estariam eles presos ali?

O pequeno ancião tornou a falar.

- Ele disse que há uma chance – traduziu Donnick – ele falou que existem duas torres de controle na superfície, no lado escuro do planeta... – o pequeno homem continuou a falar, o capitão iniciou uma tradução quase simultânea – ele diz que elas são apenas a parte visível de uma nave espacial maior. A única maneira de chegar até lá, logicamente, é pelo subterrâneo, mas as entradas estão todas protegidas por... Fantasmas? Sem forma? Sem rosto? – a criatura calou-se e fixou o olhar no grupo de humanos à sua frente. Donnick permaneceu tentando traduzir sua última frase – não sei o que ele quer dizer com isso...

- Androides – fez a Sybila, de olhos fechados, esticando seu espírito através das cavernas em busca das entradas para a grande nave oculta. – um grupo pequeno de androides protege a nave e opera dentro dela. É a central de controle do império de Scorpio, eles monitoram tudo o que está acontecendo nesta região da galáxia de dentro daquelas duas torres.

A situação só se complica.

- Como vamos chegar até lá? – perguntou Fábia. – esses túneis são infinitos!

- Temos que salvar Ray Ann! – exclamou Pietro, puxando sua bazuca de energia das costas para os braços.

- Não podemos passar por esses androides, em Cosmogony vimos do que eles são capazes! São indestrutíveis! – disse uma nervosa Augusta.

Christopher Umbrella, que permanecera este tempo inteiro calado, absorto em pensamentos enquanto manipulava sua foice ergueu os olhos para o grupo. Outra vez estava tomado por aquele espírito que não era seu, aquela força que não era sua, algo muito mais antigo que ele e muito mais poderoso, algo que o impulsionava a encontrá-la, a tomá-la em seus braços, a ter Azura próxima e presa a ele para sempre. Seu coração estava fervendo e sua pele formigando.

- Vamos salvar a Ray e tomar aquela nave. – o som da sua voz após tanto tempo de silêncio surpreendeu a todos. Até mesmo aos acompanhantes alienígenas do pequeno ancião, que ainda permaneciam ocultos e amedrontados nas sombras, a uma distância segura do grupo de gigantes invasores do espaço.

Yeovah resmungou outra vez em sua língua, desta vez alto o suficiente para que todos ouvissem. Donnick o traduziu imediatamente.

- Ele disse que não importa o caminho que trilhemos o Vigia irá nos caçar até o fim. Mais cedo ou mais tarde teremos de enfrentá-lo. – ele assumiu uma postura rígida e determinada, a mesma aura que envolvera o Professor Umbrella pairava sobre o capitão agora, seus olhares se cruzaram e havia o fogo da batalha neles.

- Que ele venha – Christopher levantou sua foice negra, que reluziu à luz da arraia neon ainda pairando ao redor – estamos mais do que preparados para ele.

A energia dominou-os um por um, os olhares de medo e receio transformaram-se em expressões de determinação e crença absoluta na meta então traçada. As mãos pairavam sobre as armas, prontas para o combate. Era hora de agir, e não de fugir. Sybila Hikikomori tentou esconder um sorriso de satisfação ao sentir que os escolhidos reencarnados estavam despertando aos poucos, se tornando o que foram em suas vidas anteriores, mas não conseguiu. Pela primeira vez, seus dentes perfeitamente brancos e serrilhados estavam à mostra. Que bela ela era sorrindo, feliz por estar vendo avanço, e assustada por estar se tornando cada vez mais humana.


♦ ♦ ♦



- Então Yeovah os está guiando... – Aib’Koletis levantou-se do seu trono e caminhou em direção ao holograma quase transparente produzido pela tecnologia de refração de cristais diante dela. Nele, uma arraia neon ia à frente iluminando o caminho enquanto o grupo de humanos era escoltado por pequenos e franzinos seres das cavernas, de cabelos prateados, olhos claros e asas atrofiadas, presas em tiras violentas de couro bruto.

- Precisamos tomar uma atitude, minha senhora! – exclamou Fafis em sua voz fanha, saltitando em seu manto preto tentando manter o capuz sobre o focinho com as mãozinhas rosadas de rata – pelo rumo que tomam logo estarão nas câmaras profundas da mineração, e de lá é apenas um salto para...

- CALE A BOCA, FAFIS! – o guincho estridente da Aib ecoou pela sala cristalina do trono – eu sei muito bem o que vem depois das câmaras de mineração, acha que não conheço as minhas cavernas?! Este é um dos últimos planetas onde restaram metais preciosos e combustível fóssil para manter o império inteiro funcionando, acha que sou IDIOTA?

- Não, minha senhora, muito pelo contrário, eu apenas...

- ORA, FAÇA-ME O FAVOR! – os gritos de Aib’Koletis espantavam as pequeninas rãs peludas para trás dos seus cogumelos coloridos entre os pilares greco-romanos. – eu não estou nem um pouco preocupada. O Vigia fará deles picadinho, não irá sobrar um átomo para contar história. O ácido expelido por ele vai derretê-los até não restar NADA.
- Tem... Tem razão, mestra! – Fafis pareceu animada outra vez, e não ressentida por ter irritado sua soberana.

- Agora volte para seu maldito posto nas torres de controle e pare de descer até aqui pra fazer fofoca, sua inútil! – a gigante escamosa chutou a pequena figura de Fafis em direção ao túnel de saída da sala do trono. Esta deu um gritinho de dor ao ser atingida nas costelas e encolheu-se numa bolinha de pelos, se deixando rolar em direção à saída gemendo, num misto de dor e prazer por estar rolando, divertida, para longe da sua agressora. Aib’Koletis permaneceu de pé, os braços cruzados às costas, o peito estufado, observando da escuridão com serenidade os movimentos do grupo de humanos em sua incursão pelas cavernas.

O rosto da Arquiduquesa permanecia oculto pelas sombras, enquanto os longos e gordos tentáculos cheios de ventosas que lhe serviam de cabelo dançavam no ar úmido e pesado da câmara mais profunda. Eles não cresciam como fios de cabelo, mas sim eram partes extensíveis da cabeça, exatamente como os braços de um polvo, uma mutação horrenda originada de algum erro evolutivo num planeta distante. Seu corpo sempre envolto por muito tecido pela primeira vez estava nu, e por não estarem envoltos em um pesado turbante como de costume, os tentáculos comemoravam a liberdade ondulando violentamente no ar tentando agarrar alvos invisíveis. Pareciam ter vida própria, mas era só sua dona expressando o nervosismo.

O nervosismo pela proximidade do grupo às maquinas que operam a mineração, e consequentemente, aos seus operadores.

Pensava-se que ali embaixo, nos túneis mais profundos, a vida fosse muito mais escassa e o ar muito mais abafado, para surpresa do grupo, constatou-se exatamente o contrário. A cada curva, a cada descida e a cada subida, a cada estreitamento e alargamento da passagem, o ar se tornava mais respirável e arejado: fortes correntes de ar percorriam aquelas áreas mais baixas, havia trechos em que eles tinham de proteger a vista com os mesmos óculos usados na superfície de tão fortes que as ventanias eram. Suas jaquetas esfarrapadas ondulavam, e suas calças e botas já muito degradadas piores ficavam, aproximando-se cada vez mais do fim da vida útil. Afinal de contas, apesar da limpeza a vácuo e laser feita numa câmara higiênica especial dentro da nave mãe de Aib’Somar, aquelas ainda eram as roupas dadas a eles no dia em que o Apocalipse Club se despediu para sempre da vida na Terra e abraçou o universo como sua nova morada.

A paisagem ali embaixo também não deixava a desejar, a vida transbordava de diversas formas a cada metro percorrido, quilômetros inteiros estavam cobertos por um tapete vegetal espesso de gramíneas fluorescentes que brilhavam no escuro e refletiam nos cristais iluminando o caminho inteiro por completo. Espécimes curiosos rastejavam entre os cogumelos gigantes e coloridos que cresciam das fissuras nas rochas: lesmas gordas coloridas e listradas, anfíbios peludos saltitantes, roedores com super orelhas e cascos fendidos e cardumes exibicionistas de arraias neon azuis, verdes e violetas, entre os quais a guia azulada do grupo sumia sempre, para depois retornar ao seu posto à frente da caravana.

- Ela é uma espécie de mascote da “tribo” – sussurrou Donnick ao pé do ouvido de Augusta, de todas a mais embasbacada pela riqueza em fauna e flora que jorrava nas profundezas, parecia deixar-se seduzir e enfeitiçar por cada microorganismo brilhante que cruzava o seu caminho, estampava no rosto redondo um sorriso tão largo que a fazia parecer o gato risonho no mundo de Alice – eles capturam as “lagartas” na natureza, em fossos muito profundos e câmaras quase inacessíveis, levam para as tocas escavadas na rocha e alimentam até que vire casulo e então, monarca. Eu atravessei uma espécie de vila esculpida nos cristais e fiquei... Exatamente como você está agora quando vi o modo como eles vivem.

Augusta estava e não estava prestando atenção no que Donnick dizia a ela. Estava muito mais curiosa pelos minúsculos enxames de seres vivos mínimos que lutavam pela vida no escuro assim, brilhando. De certo modo os subterrâneos do planeta de Aib’Koletis eram uma versão selvagem de Neon City, uma selva de neon sem concreto e sem pessoas, concebida exclusivamente pela natureza.

As paisagens foram mudando aos poucos, os caminhos tomados pelo ancião Yeovah que ia à frente guiando o grupo foram ficando cada vez mais sinuosos e desafiadores. Houve vezes em que eles tiveram de se espremer dificultosamente através de fissuras tão estreitas que nem Christopher e muito menos Pietro conseguiram passar de primeira, sem um jeitinho certo de encaixar o corpo ali dentro. Rastejar também foi preciso mais à frente, e acredite se quiser, também foi necessário nadar. Um rio subterrâneo surgiu do além, após uma série de arcos de pedra esculpidos e sulcados pelo povo de Yeovah nas eras passadas com a linguagem e os desenhos de sua tribo cicatrizados na rocha. A água estava tão fria que foi impossível resistir a vontade de bater os dentes, o rio se originava do além e também terminava no além, a correnteza fria bateu direto numa parede de rocha e os puxou para baixo, para um túnel submerso.

- Prendam a respiração! – gritou Donnick para o resto do grupo, traduzindo o brado em hebraico de Yeovah. O desespero se generalizou, Augusta, Fábia e Christopher se entreolharam apavorados perante aquela situação! E se morressem afogados? E se não conseguissem segurar a respiração por muito tempo? Eles não tinham outra alternativa, mergulharam na corrente fluvial após encherem seus pulmões até o limite, e se deixaram levar pelos murros da pressão da água. A travessia do túnel aquático não durou nem um metade de um minuto: uma queda d’água os lançou longe, às margens de um lago à beira de uma floresta de samambaias, através da qual eles seguiram caminho costurando pela margem de um regato raso. Ali naquela câmara colossal, assustadoras iguanas do tamanho de búfalos donas de uma peculiar crista vermelha e verde pastavam tranquilamente sem sequer notar a presença dos peregrinos.

Por final, o caminho se abriu à beira de um penhasco, uma queda livre sem fundo. Olhar para baixo era encarar a face da morte na escuridão, cristais brilhavam como pequenas estrelas distantes nas paredes do outro lado do desfiladeiro pelo qual eles seguiam na margem oposta e perigosamente estreita. Enfim, uma passagem em arco esculpida na rocha exatamente como a que precedia o rio gelado surgiu no corpo do paredão de pedra, o grupo seguiu por ali se sentindo muito mais seguro e aliviado. Foi então que a barulhada começou. O som ensurdecedor de furadeiras gigantes e um martelar incessante de milhares de picaretas minúsculas usadas para escavar e desprender dos cristais comuns as pedras realmente valiosas. Eles haviam chegado ao campo de mineração.

Uma área enorme de túneis e câmaras onde homens e mulheres minúsculos pegavam no pesado, operando máquinas enormes, no controle de robôs humanóides com braços e pernas poderosos, conduzindo pequenos trenós amarelos de esteira para o transporte das pedras extraídas das paredes cintilantes. Ali, o pequeno grupo de Yeovah se dispersou entre seus conhecidos, estes trabalhadores sequer deram bola para a passagem dos invasores do planeta: sabiam o que acontecia com quem era pego fazendo corpo mole, não podiam parar um minuto, o tempo inteiro sobre a mira dos androides metamorfos que incrivelmente fizeram pouco caso para a passagem do Apocalipse Club entre as máquinas e os escravos mineradores.

- Estão programados para focar no controle dos trabalhadores, não se preocupem – fez Donnick, traduzindo os resmungos de Yeovah que seguia à frente e com pressa, tentando não ficar sob a vista dos androides. Afinal ele também era um Alado e logo também era um escravo, de modo que deveria estar trabalhando.

Foi a partir da última fenda ínfima transposta que a atmosfera começou a pesar, e as correntes de ar estancaram num calor seco e abafado, tudo ao redor parecia estar fervendo. A escuridão ali era total.

- Estamos perto – traduziu.

E então aconteceu: um campo de poças de lava se abriu diante deles após descerem num fosso profundo e dobrarem uma curva sinuosa no túnel que o sucedia. Vaporoso, quente e incandescente, eram as três únicas palavras que poderiam descrever com perfeição o que estava diante dos olhos de todos. Ali era impossível não colocar as máscaras de oxigênio: o ar estava cheio de gases venenosos nocivos aos pulmões humanos, gases para os quais os pulmões de Yeovah já nasceram preparados.

- Vamos ter de atravessar isso aí?! – exclamou Pietro, perplexo com a ideia de ter de desviar daquelas bolhas de lava fumegante assassina intercalada por estalagmites pontiagudas e gêiseres nervosos e borbulhantes que estavam lançando jatos de água fervente a quilômetros de altura. O teto estava tão distante que era impossível enxergá-lo, e o calor ali embaixo era tanto que em poucos segundos eles estavam completamente empapados de suor, os átomos agitados faziam a paisagem ondular como asfalto quente sob os raios do sol do verão. E do outro lado, portas colossais, exatamente como aquelas que levavam à sala do trono de Aib’Somar na nave-mãe.

Os corações estavam à mil, as armas estavam a postos. Yeovah chiou.

- Ele disse que só pode vir até aqui. O que queremos está do outro lado daqueles portões, e o que nos quer também está lá – ele engoliu o ar em brasa em seco, ferindo a garganta já ressecada pelo calor.

Yeovah despediu-se cordialmente de cada um deles e partiu. A despedida foi mais demorada quando se tratou da calada e centrada Hikikomori. Eles ficaram se entreolhando durante o que pareceu um longo momento até se curvarem para frente respeitosamente.

A travessia do campo minado foi pavorosa e pareceu infinita durante alguns passos entre poças vermelhas e alaranjadas fumegantes cuspidoras de fogo, até acharem uma ponte de pedra alta cortando o terreno bem ao meio partindo de uma gruta no alto da parede oposta, exatamente na direção de onde eles haviam vindo. Não a tinham visto antes por não possuir nada que a ligasse ao solo, até as proximidades dos portões vermelhos repletos de tachões de ferro, onde colunas naturais grossas estavam fazendo base próxima à margem oposta sustentando uma passagem mais larga. Escalá-las não foi dificuldade. Dificuldade foi abrir os portões pesados, Hikikomori teve de usar o seu poder telecinético para movê-las, revelando uma câmara redonda e escura de paredes cristalinas puras e maciças. Estas refletiram a luz do campo de lava e iluminaram tudo de uma ponta a outra, revelando um mar de gaiolas penduradas no teto alto abobadado.

E exatamente no centro do lugar, uma gaiola gigantesca e dourada guardava dois pequenos e franzinos indivíduos: uma assustada e esbugalhada Ray na companhia de um pálido rapaz magricelo numa espécie de tanga grega, ambos sentados entre almofadas e brinquedos rodeados por esferas azuis flutuantes.

- PESSOAL! EU NÃO ACREDITO! – Ray se levantou histérica e correu para as grades, as lágrimas brotaram dos seus olhos desenfreadas, ela sequer as sentiu escorrerem pelo seu rosto e molharem seu pescoço magro.

- Não íamos te deixar pra trás! – gritou Fábia dando pulinhos e sacudindo seu báculo lá embaixo. A gaiola havia sido içada para cima após a partida de Aib’Koletis da câmara.

- Nunca faríamos uma coisa dessas! – Pietro ergueu sua bazuca sorridente, saudando a garota.

- Como vamos tirá-la de lá? – Christopher virou-se para Hikikomori em dúvida.

- A lâmina da sua foice corta tudo, mas acalme-se que ainda não acabou... – Hikikomori permanecia seria, desconfiada, o cenho duro franzido olhando de um lado para o outro – isto está fácil demais... fácil demais...

Os portões se fecharam lentamente atrás deles. Donnick até tentou correr para tentar mantê-los abertos, mas percebeu que seus esforços seriam ridículos e inúteis perto daqueles dois blocos vermelhos de metal pesando toneladas. Logo, tudo mergulhou numa escuridão total, o grupo viu-se refém de um silêncio ameaçador que foi cortando violentamente por um gorgolejo gutural arrepiante, eriçando cada centímetro de pele humana ali presente e ecoando pelas paredes da câmara, reverberando através das grades das jaulas e dependuradas no teto e invadindo seus ouvidos incitando o pavor que precede o desespero.

Exatamente embaixo da gaiola mais alta que ainda brilhava azul pelas esferas luminosas, um raio de luz dourada fez uma curva sinuosa e lenta contornando uma silhueta pavorosa e assustadoramente avantajada há poucos metros do grupo. Eles recuaram rumo aos portões trancados, sem reação alguma se não fugir do que estava por vir. O gorgolejo repetiu-se seguido pelo rápido som do canto entrecortado de uma baleia jubarte, aquilo enregelou a alma e acelerou as respirações de forma frenética: o desespero estava tomando forma bem diante dos seus olhos.

Ele tinha a forma de magníficas explosões de luz, róseas, vermelhas, amarelas, verdes, azuis, púrpuras e brancas, elas estavam preenchendo o contorno de músculos poderosos, ossos brutos, membranas grossas, juntas e mandíbulas assassinas de algo nunca antes visto pelo olho humano. Mais gorgolejos e rugidos animalescos originaram-se daquela criatura que se manifestava em forma de luz perante as figuras apavoradas e espremidas contra a saída de cinco humanos e uma sybila, empunhando armas em mãos suadas e nervosas.

Em segundos havia algo maior de que um ônibus parado exatamente à frente deles, observando-os de fendas profundas e amareladas que eram suas pupilas horizontais retangulares. Ele tinha cabeça e torso de baleia, quatro grossas pernas de réptil e uma cartilaginosa cauda de girino curtíssima em forma de remo na vertical, cujas membranas de finas barbatanas reluzentes ondulavam delicadamente (ou seria asquerosamente?), suas patas de elefante terminavam em três poderosas garras compridas que assim como o resto de seu corpo, eram totalmente transparentes.

Aquele era o Vigia, e sim, seu corpo era totalmente transparente, a aparência gelatinosa que sua massa corpórea ameaçadora passava enganava aos que não o conheciam: sua couraça era dura como aço, e seus músculos poderosos como cordas de bronze, e eles estavam acesos como uma árvore de natal. A luz que as reações químicas que em seu interior provocava refletiam-se nos cristais das paredes que em refração cortavam a escuridão e banhavam o mundo de luz. Ele abriu a boca para rugir, o canto de baleia transformou-se na melodia infernal de uma horda de gatos sendo torturados a sangue frio.

O Apocalipse Club teve de tapar os ouvidos para proteger os tímpanos agredidos. Christopher caiu de joelhos, Fábia fechou os olhos enquanto perdia-se em orações, Augusta estava congelada e Pietro só segurava sua bazuca diante do corpo porque não conseguia nem se mexer a ponto de puxar o gatilho e explodir uma bomba de energia no focinho da criatura. Apenas Donnick e Hikikomori permaneciam controlados diante daquela situação, apreensivos com certeza, mas com os ânimos controlados.

- CORRAM! – berrou Hikikomori. E eles não pensaram duas vezes. A criatura avançou contra eles num salto que fez tremer o chão, esmagando o lugar onde antes eles estiveram agrupados tentando fugir da figura oriunda de um pesadelo doentio. Suas poderosas garras compridas perfuraram o chão abrindo seis sulcos profundos. Ray Ann havia desmaiado na gaiola metros acima, Alado a havia amparado e tentava acordá-la sem sucesso. Lá embaixo o grupo corria sem rumo, numa câmara redonda onde não havia para onde ir, onde se esconder.

A criatura estava louca, rugindo sem parar e sem rumo na sua perseguição, pois o grupo estava totalmente disperso, correndo como formigas espantadas enquanto o chão tremia a cada salto que o monstro dava rumo ao diminuto corpo de uma de suas presas, que geralmente escapava por pouquíssimo. Os lasers, é óbvio, sequer faziam efeito.

- ELE TEM UMA ABERTURA NAS COSTAS! UMA ABERTURA NAS COSTAS! – a voz de Alado não conseguia se sobressair acima dos gritos de socorro e dos urros furiosos do monstro. – droga, eu não posso sair daqui para ajudá-los!

Repentinamente a criatura parou no centro da câmara colossal, seu papo anfíbio transparente inchou de tal modo repulsivo que Augusta não segurou o vômito enquanto observava àquela cena: seu papo dilatado estava ficando verde incandescente, uma bola de luz verde! A bocarra de baleia com cerdas no lugar de dentes abriu-se para lançar um jato poderoso de ácido fluorescente que ferveu o chão e derreteu os pilares de cristal que estavam em seu caminho. Os respingos daquela gosma sulfurosa que acertaram as roupas dos mais próximos perfuraram tão profundamente que causaram ferimentos superficiais na pele. O próprio vapor que aquele mar fétido exalava era corrosivo, torrando os pelinhos dos braços de Donnick enquanto ele tentava contornar a criatura e seguir as orientações que Alado havia gritado.

Mais jatos como aqueles vieram um após o outro sem intervalo entre eles, o monstro enchia seu papo e lançava a gosma o mais longe que podia. Em pouco tempo o ácido estava corroendo a sola das botas dos aventureiros, porque estava em toda a parte! O Vigia sequer precisava sair do lugar: estava numa posição estratégica exatamente no centro da câmara onde só precisava se virar sob os calcanhares para mudar de posição. Sua cauda de remo balançava preguiçosamente de um lado para o outro abanando o ar. Era ali que Donnick saltaria.

Sem pensar duas vezes, ele pulou e agarrou o mastro balançante. A criatura sequer sentiu que ele a havia tocado, e lutando para manter-se preso a sua pele escorregadia, o capitão iniciou a escalada do torso do animal enquanto este cuspia ácido desenfreado. As costas do bichão eram tão largas que ele podia ficar de pé ali em cima normalmente com a dose certa de equilíbrio, e foi o que ele fez. Mas então, como já era previsto, o ácido produzido pela criatura acabou, e o monstro pôs-se a corre outra vez atrás de suas presas, abrindo e fechando as mandíbulas poderosas de baleia enquanto avançava cada vez mais violento. Donnick agora estava agarrado às cerdas que cresciam nas costas da criatura, lutando para não escorregar.

“Você não pode continuar fugindo” era a voz de Hikikomori na cabeça de Christopher, reverberando como os urros da criatura em seus ouvidos “use a foice, esta é a chance de mostrar do que ela é capaz, confie nela, acredite em você”.

Ele queria, ele realmente desejava sentir o espírito de batalha que havia sentido mais cedo, mas a verdade era que estava se borrando de medo dos pés à cabeça! Aquela perseguição já o estava cansando, e mesmo com cãibras esporádicas ele continuava fugindo, tentando se esconder nas sombras, espantar o monstro com gritos ou golpes cegos da lâmina da sua foice, e isso não surtia efeito algum na criatura, só parecia deixá-la mais furiosa! Enquanto ele fugia, Donnick encarava o monstro de frente! Ele quem deveria ser o Cavaleiro de Ouro, não Chris! Christopher Umbrella era apenas um professor míope de universidade, desastrado, antissocial e com um leve vício em cafeína, seu trabalho sempre fora olhar as estrelas e estudá-las na comodidade do seu laboratório. Aventuras, heroísmo, batalhas... Aquilo não era para ele! Se alguém no campus da universidade ouvisse aquela história de Cavaleiro Intergaláctico, seria riso na certa! Não, ele não era isso. Seus joelhos estavam bambos quando o lapso veio.

Tudo sumiu de repente, e o rosto dela aparece. Ávido, dourado, sorridente. Olhos profundos e caramelados, brilhantes como Andrômeda vista num telescópio potente nas noites mais límpidas do planeta Terra. Cabelos amendoados sempre presos em penteados exuberantes, membros longos e delgados, um tanto brutos, mas ao mesmo tempo delicados em seus movimentos. Azura. Ela estava ali, dentro dele, em algum lugar, fazendo seu coração ferver outra vez. O fogo estava ali. E então ele parou bem diante da criatura, virou-se para ela, ajeitou seus óculos de aro grosso no rosto, curvou-se para frente, apoiou-se nas pernas e apontou a foice em direção ao animal, como um caçador nas savanas africanas pronto para abater a sua presa.

E então o monstro o engoliu.

- NÃO! – urrou Donnick a plenos pulmões.

- KYAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHR! – Ray Ann guinchou de sua jaula logo acima. Era o fim.

O Vigia ergueu sua cabeça de baleia e gorgolejou de satisfação, jorrando ácido através da fissura no topo do seu crânio. Por pouco o jato não atingiu Donnick, que rebolou de lado e caiu de costas nos cristais pontiagudos logo abaixo, sua exclamação de dor foi abafada como um soco no estômago. O restante do grupo estava em estado de choque.

Mas o panorama mudou de repente! O monstro arregalou os olhos, apoiou-se nas patas traseiras, encolheu-se sobre ele mesmo quase como um tatu, pondo-se a estrebuchar logo depois, de costas para o chão exatamente ao lado do capitão caído. Hikikomori correu em socorro do homem. As luzes coloridas que sua estrutura transparente produzia foram se tornando espasmos vermelhos e róseos e seus gorgolejos guturais se tornaram cantos dolorosos de baleia. Um pedido de socorro. Por último, sua barriga inchou feito uma bolha, uma silhueta humana se revolvia dentro da placenta, e aquilo estourou como um balão, jorrando vísceras fluorescentes em todas as direções.

A lança com a foice em forma de bico de papagaio na sua mais distante extremidade agora não era mais negra, era dourada, dourada como um raiar do sol. A pedra que ela ostentava nunca estivera tão radiante. E empunhando-a estava um arfante Professor Umbrella, completamente nu e coberto de ácido verde. A sala mergulhou num silêncio estarrecido, ele inchou o peito a toda potência e urrou. Vitória!

- MAL-DI-TOS! – Aib’Koletis explodiu os cristais refratores que criavam o holograma em sua sala do trono – ELES MATARAM O MEU VIGIA! ELES MATARAM O LEVIATHAN! MATARAM-NO! EU OS AMALDIÇOO! OS AMALDIÇOO!

Fafis estava encolhida num canto distante em seu manto preto, procurando passar despercebida perante a fúria de sua soberana.

- FAFIS, SUA INÚTIL! – urrou a Arquiduquesa – ESVAZIE A NAVE, ENVIE TODA A TROPA DISPONÍVEL DE SOLDADOS SEM ROSTO PARA AQUELA CAVERNA! ISSO NÃO VAI FICAR ASSIM NÃO VAI! – os tentáculos da criatura haviam dobrado de tamanho, suas costas encurvaram-se para frente dando origem a pontiagudos espinhos oriundos dos ossos que compunham a coluna vertebral.

- Sim senhora! – pela primeira vez, a ratinha estava sentindo a adrenalina correndo nas veias – farei isso já! – disse ela, baixinho.

- CORRAAAAAAA!

E assim a subalterna fez.

- Não precisa, é sério – Christopher se limpava da gosma fluorescente ácida com a pequena jaqueta oferecida por Fábia enquanto Augusta tirava o excesso de muco estomacal dos seus cabelos ondulados. O capitão Donnick já retirava sua esfarrapada jaqueta encardida do corpo para oferecê-la ao Professor. Pietro mantinha o rosto virado para o lado contrário, constrangido e enojado ao mesmo tempo. – veja só, a Hikikomori anda nua!
Todos olharam para a figura feminina gigante ao lado que usava um tapa-sexo branco triangular e dois cones de borracha em cima dos mamilos. Ela olhou para eles, séria, e deu de ombros.

- Mas isso é parte da cultura dela – disse Augusta, limpando as lentes dos óculos do professor – e enquanto você não for uma Sybila, não tem permissão para andar com as partes pudendas de fora! – ela estava completamente corada. Quase todos estavam, Ray Ann e Alado observavam a cena, divertidos, lá de cima. Logo, ele estava enfiado na enorme jaqueta do capitão, empunhando a sua foice, agora dourada.

- Porque ela ficou assim? – perguntou Fábia a Hikikomori, apontando para a arma do companheiro. A Sybila sorriu.

- A foice estava adormecida e envolta em trevas desde que o Cavaleiro e seus escudeiros desapareceram. Agora que foi usada novamente pelo próprio, ela acordou e se livrou do manto que a cobria...

Pietro, que ainda tinha o olhar desviado, pegou-se olhando para cima, para dois rostos confusos pendurados no alto.

- E o que vamos fazer com aqueles dois? – ele apontou para Ray Ann e Alado, com as cabeças enfiadas entre as barras de ouro do cativeiro.

Continua...

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