- Temos de sair daqui. Agora mesmo. – Hikikomori olhou de soslaio para os portões fechados na escuridão às suas costas. O chão da câmara estava coberto por uma camada de muco verde fluorescente e tripas, as entranhas do Vigia estavam espalhadas por todo canto. Órgãos alienígenas e tripas longas transparentes exibiam seu conteúdo repugnante numa amostra de horrores que se refletia nos cristais espelhados do chão e das paredes. – há uma horda de androides a caminho! E eles estão praticamente aqui dentro!
- Não podemos sair daqui sem tirar aqueles dois dali de cima! – Fábia apontou seu báculo para o alto, muito acima da sua cabeça.
- Abaixe isso, por favor! – a Sybila sobressaltou-se e esticou as mãos em direção à garota fazendo um gesto nervoso para que ela descesse sua arma singela. Fábia deu de ombros, confusa, e guardou seu báculo de coração alado no cinto puído das suas calças desgastadas.
- Porque temos de sair daqui com tanta pressa? Pensando melhor, não gostaria de andar pelado por aí... – Christopher puxava a barra da jaqueta para baixo esticando-a ao máximo para que cobrissem tudo o que pudesse estar de fora.
- Estamos numa caverna, Chris, me poupe! – exclamou Pietro revirando os olhos e jogando os braços pra cima – você está com vergonha de quem? Das lesmas? Acho que todos nós aqui já vimos mais do que queríamos!
O Professor só ficou mais encabulado. Não havia maneira de chegar até a gaiola central a não ser escalando pelas paredes, enfiando os pés e as mãos nas falhas entre os cristais afiados, o que era uma situação no mínimo perigosa que renderia lembranças nada agradáveis marcadas direto na pele! Não havia outra saída a não ser esta, veio a calhar descobrir que as tripas do monstro eram recobertas por uma película ultra resistente que serviu mais do que bem como protetor para mãos, braços e joelhos. Cortá-la em pedaços não foi difícil para a lâmina da foice, a parte mais complicada de todas foi a escalada, que mesmo auxiliada por protetores improvisados rendeu rasgões nas roupas e arranhões superficiais nos rostos, nas barrigas e nas pernas.
A subida mais complicada foi a de Christopher, é claro, que por decisão unânime teve de ser o último na fila da escalada por motivos óbvios... Já no alto, usaram as gaiolas mais próximas às paredes como ponto de partida no caminho rumo à gaiola maior, saltando de uma gaiola menor a outra feito macacos brincando no cipó. Foi assim que eles costuraram pela escuridão até o alto do cativeiro que mantinha Ray Ann e o príncipe Alado reféns. Lá próximos, Christopher passou à frente para usar a lâmina da foice nas barras do gradeado, que para seu espanto cederam passivamente ao atrito do fio de corte, foi como cortar manteiga, não houve sequer barulho de metal contra metal, os golpes sequer soltaram faísca. Em dois minutos, o Apocalipse Club inteiro estava dentro da gaiola de Alado.
- Muito obrigado, príncipe – o Professor Umbrella se curvou várias vezes, encabulado, em direção ao príncipe após vestir as calças que ele havia lhe emprestado. Uma das poucas peças de roupa que tinha disponível fora uma túnica branca cheia de detalhes azulados e a tanga esfarrapada que utilizava no momento.
- Não se curve, Cavaleiro – sorriu Alado, colocando a mão sobre o ombro de Christopher antes que ele pudesse se inclinar pra frente mais uma vez – eu é quem deveria estar agradecendo. Agradecendo pelo seu coração puro, e pela bravura dos seus escudeiros, pelo companheirismo. Vocês realmente voltaram para buscá-la. Confesso que cheguei a duvidar que isto fosse acontecer e imploro por perdão – o príncipe pôs um joelho no chão e apoiou-se sobre um único pé, reverenciando o grupo abaixando a cabeça lentamente.
- Bom, eu prometo não me curvar mais se você também não se curvar! – Chris ajudou-o a levantar-se.
- Agora rápido, vocês tem que sair daqui. – o príncipe pegou as mãos de Ray Ann delicadamente e a puxou para frente, incluindo-a em seu grupo de origem mais uma vez. – os androides estão praticamente nos portões e são indestrutíveis, vocês não terão chances contra o exército inteiro.
- Como... Como assim Alado?! – exclamou Ray desvencilhando-se das mãos dele gentilmente – você não vem conosco?
- Eu não posso sair daqui, eu não posso deixar o meu povo! –lágrimas brotaram dos olhos dele – e eu não posso deixar... ela.
Ray revirou os olhos.
- Você PRECISA deixá-la! – esbravejou a garota, o restante do grupo não estava entendendo muito bem o que acontecia, mas observava em silêncio respeitoso – ela te mantém em cativeiro, não te deixa ficar com a tua família, te trata como um bichinho de estimação te mantendo nessa gaiola o tempo inteiro! Você sequer sai para um passeio, tinha de driblar o Vigia para esticar as pernas lá fora! Você nem conhecia o seu pai até um tempo atrás, teve de fugir para conhecê-lo! Alguém que te ama faria isso com você? Alguém que te ama te manteria preso, sem amigos? Você realmente acha que alguém que te ama faria isso? – lágrimas brotavam dos olhos da garota em cascata, umedecendo as bochechas furiosas coradas. – PENSE NISSO!
Alado mantinha-se cabisbaixo ouvindo o sermão.
- DIGA ALGUMA COISA! – desta vez ela urrou, e o eco da sua voz reverberou violentamente contra as paredes da caverna.
- Eu... Eu não... Você... – ele respirou fundo e ergueu seus expressivos olhos violeta para a garota. Ali ela percebeu verdadeiramente o quanto ele era belo e atraente, seu coração palpitou – você foi a coisa mais próxima que eu tive de uma amiga em todos estes ciclos... – aproximou-se de supetão e abraçou-a com força. Seus ossos de passarinho machucaram-na um pouco, e ela se viu surpresa com aquele gesto inesperado. Antes que ela pudesse dizer algo, ele se afastou e segurou suas mãos entre as dele amorosamente – mas eu não posso partir, não posso deixar pra trás a única vida que conheço. Eu não saberia viver sem ela, eu não sobreviveria lá fora. Ela cuida de mim, acredite, ela só quer me proteger.
- Alado... – Ray fechou os olhos e virou o rosto para engolir a revolta. Antes de ela abri-los novamente, a pancada surda invadiu seus ouvidos e num momento Alado estava caído ao chão. Pietro havia o acertado na cabeça com o bastão de Fábia. Hikikomori deu um berro, e foi extremamente estranho vê-la gritar, ela que vivia sussurrando e mantinha uma postura categórica controlada o tempo inteiro. Pietro então jogou o magricelo sobre seus ombros largos.
- CHEGA DE LENGA-LENGA E VAMO DÁ O FORA DAQUI! – começou então a escalar as barras da gaiola para sair através da abertura feita no alto pela lâmina da foice. Todos observavam àquilo estarrecidos, Fábia deu de ombros, abaixou-se e pegou seu báculo do chão. Foi a segunda a iniciar a escalada.
- Você está louco?! Poderia ter matado todos nós! – exclamava Hikikomori logo abaixo, muitas oitavas acima do que era acostumada a falar.
- Ora, cale a boca e suba logo! – retrucou Pietro, truculento.
- Oh! – Hikikomori estava sentindo ultraje pela primeira vez. Coisas que se aprendia e se sentia ao conviver certo tempo com humanos.
Quando já haviam saído da gaiola e preparavam-se para saltar de uma em uma até as paredes, os portões se abriram. O pânico inundou seus corações gelando a espinha. Em poucos instantes a câmara estava entupida de androides sem face, a superfície líquida espelhada feito nitrato de prata que eram seus corpos refletia os cristais e o ambiente ao redor com perfeita exatidão. Eles entraram e começaram a sondagem, eram muitos, mais de duas centenas, abarrotavam o lugar enquanto a luz vermelha e o ar quente invadiam a caverna pelo portões: o campo de poças de lava havia repentinamente se tornado um rio incandescente de rocha aquosa e fumegante correndo com ferocidade! A ponte de pedra poderia ser embrulhada a qualquer momento pelo manto vermelho diabólico. O Apocalipse Club estava estático, mais pareciam estátuas de cera derretendo do que humanos em pânico procurando uma alternativa para escapar.
- Não tenho outra escolha... – Hikikomori sibilou para si mesma, mas todos olharam para ela perguntando-se ao mesmo tempo com quem ela poderia estar falando. Os olhos se esbugalharam quando o triângulo que pairava flutuando acima da cabeça da Sybila triplicou de tamanho até se tornar uma asa-delta gigantesca! Ela o atravessou exatamente ao meio como se fosse invisível e em segundos estava montada em cima da prancha azulada triangular feito o surfista prateado em sua condução. – o que estão esperando? Pulem pra cá já!
Ao som mais alto da sua voz, os androides sem rosto lá embaixo se agitaram, emitindo o costumeiro som de ondas de rádio com interferência. Imediatamente, os mais próximos das paredes iniciaram a escalada frenética. Havia mais uma legião deles do lado de fora da câmara ocupando apertados no minúsculo espaço entre o paredão de pedra e o rio de lava lá embaixo. Quando os monstros alcançaram as gaiolas menores mais próximas às laterais, o grupo já estava planando em um triângulo voador para longe da gaiola, para longe da câmara, para longe da prisão secular de Alado e toda a sua linhagem. Eles seguiram voando o curso do rio de lava acima enquanto Hikikomori verificava a posição com relação à nave mãe de Aib’Koletis.
- Estamos exatamente embaixo da nave! – ela gritou acima do som do ar sendo cortado pela prancha triangular e o chiar da lava incandescente lá embaixo – ela mede dois quilômetros! A entrada principal é aquela caverna que vimos de frente para os portões da câmara! Vamos voltar!
Feito o caminho inverso, eles notaram que muitos androides tentando persegui-los haviam caído na lava enquanto outros ainda escalavam as paredes no interior do cativeiro procurando por eles. A asa-delta fez uma curva brusca e dobrou para dentro da caverna com a abertura em forma de octógono. Uma chapa grossa de metal desceu às costas deles trancando a passagem após a sua travessia, e conforme avançavam rumo às profundezas daquele túnel, luzes esverdeadas em turquesa iam acendendo nas laterais, iluminando o caminho que já não era mais de pedra, e sim de metal polido, liso e gelado. Já estavam dentro da nave, e o calor do reino de fogo havia ficado para trás.
Já contavam com sorrisos de vitória no rosto e abraços calorosos quando dois androides metamorfos apareceram no meio do caminho. Saltaram tentando alcançar o triângulo voador, sem sucesso, e ao olhar para trás, Augusta e Ray Ann viram-nos mudarem de forma e transformarem-se em dois pássaros de metal iniciando uma perseguição aérea alucinada através do túnel, que seguia em linha reta infinita.
- Droga! – rosnou Hikikomori entre os dentes. Eles já estavam muito próximos. – é agora. FÁBIA!
- OI! – a gordinha deu um pulo, espantada ao ouvir gritarem seu nome.
- APONTE O BÁCULO NA DIREÇÃO DELES E CONCENTRE-SE! – ordenou.
- MAS...
- FAÇA O QUE EU ESTOU DIZENDO! AGORA!
Eles estavam tão próximos que poderiam perfeitamente saltar para a nave improvisada a qualquer momento. Fábia fez o que foi pedido. Demorou um pouco para se concentrar em meio àquela confusão, mas num instante o flash branco veio e fez o mundo ao redor desaparecer em luz rapidamente.
- Protejam seus olhos! – ordenou Hikikomori.
Quando a luz se foi, tudo estava congelado. Camadas de gelo cobriam o corredor até perder de vista, e não havia mais nada os perseguindo em sua fuga.
- O que aconteceu?! – exclamou Fábia apavorada, os olhos maiores que duas luas.
- Depois eu explico, agora temos que nos concentrar em achar a sala de controle desse lugar!
O corredor havia se alargado mais, e portais octogonais haviam surgido nas laterais. Portas para compartimentos e câmaras da nave mãe. As curvas, subidas e descidas bruscas começaram, eles tiveram de se segurar ainda mais. Hikikomori não tirava os olhos de seu computador portátil, as coisas no caminho começaram a passar rápido demais para que eles pudessem acompanhar.
- Quase lá!
Uma câmara colossal em forma de globo se abriu a final da última curva. Adjetivos como “enorme” ou “gigantesco” eram apelidos para a envergadura daquele lugar em forma de colmeia. As paredes estavam cheias de buracos octogonais de uma ponta a outra, como favos de cera esperando para receber as larvas da abelha-rainha. O Apocalipse Club estava maravilhado!
- Para cima! Segurem-se!
A guinada foi brusca, os berros foram ensurdecedores quando se viram subindo na vertical em direção a uma abertura circular no topo do globo da morte que era a bolha da câmara central. Ao atravessarem-na, esta se fechou abaixo deles, e o triângulo voador de Hikikomori desapareceu ao poucos, levando seus pés ao chão novamente e ressurgindo outra vez em sua forma original logo atrás da cabeça da Sybila como uma aureola angelical. Estavam agora numa completa escuridão, o que despertou os reflexos de autodefesa humana: cada um deles puxou suas armas. A espada samurai eletrificada de Ray Ann soltava faísca no breu, banhando o grupo de luz a cada estalo de eletricidade.
- Achavam que iam escapar assim, tão depressa? – a voz de Aib’Koletis invadiu seus ouvidos pela primeira vez. Era algo réptil, tudo em seu tom lembrava uma serpente pondo a língua pra fora e sacudindo seu chocalho. Porém, também soava como água aquático, profundo, velho, remetendo a fissuras abissais, estranhas formas de vida das profundezas e navios naufragados. – o jogo está só começando!
Algo veio das sombras atingindo um a um, feito um chicote os lançando para longe. Ray ouviu cada um de seus amigos – inclusive a própria Sybila – serem atingidos por um inimigo covarde e invisível, que se enroscou-se em seu pescoço e apertou-o com violência. A garota gritou, e como se o berro fosse a senha secreta para a luz, o chão começou a brilhar, revelando um lugar amplo e circular, com o teto transparente exibindo as constelações desconhecidas que giravam na esfera celeste do lado de fora da nave, nos céus daquele planeta mumificado onde a vida transbordava em seu interior. Eles estavam exatamente entre as duas torres de controle, no coração da nave, no covil de Aib’Koletis.
Ela gargalhou. Um de seus tentáculos estava apertando o pescoço fino de Ray Ann como uma jiboia faminta, a garota estava ficando roxa e prestes a desmaiar, perdendo todo o ar, pendurada a metros de distância do chão, debatendo e estrebuchando violentamente.
- SOLTE-A! AGORA MESMO! – era a voz de Alado, ele havia despertado e era o único de pé entre aqueles que a Aib havia chicoteado com seus tentáculos extensíveis. Pela primeira vez, seu rosto não estava oculto por sombras ou alegorias extravagantes envoltas em véus e tecidos pesados. Sua figura pavorosa possuía um único olho feito um ciclope, e sua boca exibia um sorriso tão largo e satisfeito repleto de minúsculos dentinhos prateados pontiagudos que causavam desespero só de olhar. Era um verdadeiro demônio. E para completar o conjunto de horrores, ela não possuía nariz, respirava por asquerosas guelras que abriam e fechavam entre suas costelas. Era um ser humanoide de pele dura e um tanto escamosa, e pelo modo como estava trajada (quase nua), parecia mais uma mutação de Hikikomori por ser tão alta.
- Alado! – seu tentáculo afrouxou-se ao redor do pescoço da garota vagarosamente, até que o corpo da jovem caísse no chão com um baque estalado. O príncipe correu até ela para socorrê-la. O monstro que era Aib’Koletis exibia uma expressão incrédula nos limites de suas feições alienígenas diante daquela cena. Ela não estava acreditando! Era Alado, o seu Alado, seu querido Alado! Seu cativo, seu bichinho de estimação! Aquilo que ela mais prezava no universo inteiro! O amor da sua vida!
- Olhe o que você fez a ela! – esbravejou o príncipe, mostrando os dentes para o monstro diante de si – como eu pude?! Como eu pude amá-la?! Como eu nunca vi a criatura que você era por baixo de todo aquele véu?! – ele sentiu repulsa pela primeira vez – EU TENHO NOJO DE VOCÊ! NOJO!
As asas amarradas às suas costas soltaram-se das tiras de couro e abriram-se cheias de esplendor, batendo violenta, porém majestosamente quatro vezes, lançando nuvens e mais nuvens de plumas brancas no ar. Como poderia um par de asas tão pequeno e tão atrofiado como aquele ter se tornado tão grande, belo e viril como aquele de uma hora pra outra? O que havia dado forças a Alado para que suas asas houvessem sido preenchidas por tanta vitalidade? Elas não paravam de bater um segundo! Ele estava quase alçando voo quando elas se esticaram por fim, atingindo uma envergadura assustadora que formou sombra sobre seu magricelo e franzino corpo, cobrindo também a desacordada Ray. Lágrimas douradas escorriam dos olhos violeta da criatura. Um mar de plumas bailava no ar.
- A... Amor! – rosnou Aib’Koletis enojada – você se apaixonou por ela! – os tentáculos na cabeça do monstro dobraram de tamanho e ricochetearam mais furiosos – não permitirei! JAMAIS!
Antes que ela pudesse tomar uma atitude mortal, uma bola de energia maciça a atingiu no peito, esmagando-o imediatamente. Seu corpo atravessou o salão e caiu duro do outro lado, sem vida. Aib’Koletis estava acabada.
- Preciso! Preciso escapar! Preciso escapar! – Fafis chispava feito um abutre em seu capuz preto por entre as pedras soltas da superfície ressecada do planeta morto, corria em direção a uma gruta oculta num cânion distante no lado escuro da esfera, banhado pela luz de estrelas ancestrais e desconhecidas – preciso buscar ajuda! A soberana Koletis caiu! – aproximou-se ruidosamente de um aglomerado de pedras pontiagudas escondido no escuro e tateou pela entrada da caverna.
Uma pequena nave em formato de ovo equipada com duas potentes turbinas – estas que mais lembravam orelhinhas de camundongo – revelou-se após a mãozinha delicada da roedora puxar o lençol branco que a cobria no interior da gruta escura. Atrapalhada como era, demorou um tempo para ligar a navezinha, que com as poderosas turbinas que tinha se arrastou quilômetros de barriga no solo gelado do planeta antes de levantar voo e finalmente, escapar da atmosfera cheia de gases nocivos, em direção ao espaço sideral.
♦ ♦ ♦
- Não posso partir com vocês, eu sinto muito – Alado ainda limpava as lágrimas douradas que escorriam de seus enormes olhos reluzentes. Eles haviam abandonado a cor de violeta fosca para assumir um tom purpúreo fulguroso, incandescente, forte. Talvez fosse o ar das cavernas, sempre escuro e abafado, que deixasse seus olhos agora tão vívidos quase apagados. Agora que suas asas haviam crescido ele parecia outra pessoa... Outro ser, na verdade. Já que ele de longe não era uma pessoa. – tenho de liderar a partida do meu povo, vamos voltar para a nossa galáxia natal imediatamente.
- Nós podemos levá-los! Eu sei que podemos! – ela o abraçou mais forte. Estava contendo o choro havia algumas horas desde que se acordara e se deparara com Aib’Koletis morta e aquele novo Alado. Agora mais príncipe do que nunca. Ele exalava a realeza de seu povo antigo em cada poro do seu corpo, cheirava a algo agridoce que enchia a boca de água.
- Isso é algo que temos de fazer sozinhos, minha querida, é a nossa lei, é como deve ser feito – ele a tomou nos braços mais uma vez e a pressionou forte contra aquelas costelas magras.
- Porque isso aconteceu com você? O que são essas asas enormes? Elas eram tão pequenas antes... – ela se afastou delicadamente para admirar a envergadura colossal daquele par de asas de cisne. Estavam os dois sozinhos na enorme câmara azul-turquesa enquanto o restante do grupo tentava eliminar os androides que ainda zanzavam pela nave mãe com a ajuda do báculo superpoderoso de Fábia Paola, congelando tudo.
- Eu atingi a maturidade da minha espécie. Fechei um ciclo de vida. – fez ele, sorrindo, olhando sonhador para cima, para as estrelas do teto abobadado transparente cheio de arcos de ferro. – pensei que isto nunca fosse acontecer. Não acontece há eras, desde que nosso povo foi trazido à força para as cavernas e as nossas asas presas em amarras, nunca mais atingimos a maturidade. Nossas asas sem uso, ao invés de crescerem, atrofiam até quase sumir. Mas algo... Algo fez com que... tornou isso possível. Temo que este algo tenha sido você.
- Eu?! – Ray espantou-se – mas eu não fiz nada!
- Você me deu forças. Você me tirou na gaiola e da escuridão das cavernas e me fez enxergar quem minha amada era de verdade. Você. – Alado sorriu, amável, retirou uma gota de lágrima dourada do canto do olho e esfregou nos lábios da jovem com delicadeza. – prove.
No começo ela estranhou, mas ao passar a língua nos lábios logo sentiu o gosto doce de mel. Era divino!
- No nosso sistema planetário natal, algumas criaturas costumavam fazer-nos chorar para coletar as nossas lágrimas. Elas eram muito maiores que nós e possuíam vários braços.
- Não consigo... imaginar... – disse a garota, um tanto apática, ainda entorpecida pelo gosto da lágrima de Alado.
- Agora temos de nos despedir. Um dia nos encontraremos de novo. Eu creio nisso. Você crê?
Ela fechou os olhos e engoliu em seco.
- Sim, eu creio – disse, séria.
Alado deu o sorriso mais largo e sincero que dera desde a primeira vez em que os dois se encontraram nas cavernas profundas, exibindo dentes perolados e lábios macios, finos, belos. Ray jamais se esqueceria daquele sorriso.
O pássaro abriu as asas pela última vez, cobrindo-a com uma sombra cálida e aconchegante. Juntas elas eram majestosas e incrivelmente brancas, poderosas. Ele as bateu várias vezes, levantando outra nuvem de plumas enquanto erguia-se do chão, ganhando o ar. Não demorou muito para atravessar o teto, que se desmaterializou com a sua proximidade e tornou-se sólido logo em seguida, após a sua travessia. Ray Ann imaginou-o ganhando os céus, ganhando as estrelas, chegando à sua constelação de origem, Cygnus. Imaginou céus rosados, nuvens azuladas e esverdeadas, árvores que crescem sem parar rumo aos céus, gigantes de vários braços e confortáveis ninhos repletos de plumas brancas. Ela gostaria de visitar o mundo de Alado um dia. Os mundos de Alado.
Quando a nave mãe de Aib’Koletis levantou voo, rasgando a rocha e atravessando a atmosfera venenosa daquele planeta primitivo, o Apocalipse Club não imaginava que passaria tanto tempo velejando no espaço, costurando entre as estrelas dentro de um navio voador. A nave da Arquiduquesa tinha o exato formato de um barco terrestre, as duas torres lembravam mastros e seu corpo em forma de banana lembrava o casco. Na lateral, duas barbatanas de metal seguravam o equilíbrio e içavam o enorme cruzeiro espacial para frente com a ajuda de duas turbinas, uma em cada asa.
Eles conferiram a passagem do tempo baseada no calendário do tablet de Augusta (que por incrível que pareça estivera esse tempo inteiro intacto no bolso interno da jaqueta da garota, descarregado). Longos meses se passaram, meses compridos o suficiente para que eles pudessem conhecer cada pedaço daquele enorme navio de metal, que em lugar de cruzar os mares cruzava o espaço.
Tiveram tempo inclusive para subir às torres de controle e observar os distantes sistemas planetários que antes estiveram sob o poder de Aib’Koletis, agora completamente livres da tirania de mais um dos cruéis soberanos eleitos pela Imperatriz Azura para administrar regiões remotas do universo. Hikikomori assumiu a pilotagem, que funcionava no salão turquesa através da mesma tecnologia de refração de cristais utilizada na subterrânea sala do trono nas cavernas. Ali usada para simular o espaço lá fora em três dimensões, mostrando os caminhos a serem trilhados, identificando planetas, estrelas e regiões inteiras nomeadas e mapeadas. A mesma câmara onde Ray havia se despedido de Alado por tempo indeterminado. A lembrança vívida dele em sua mente ainda pulsava sem parar.
Nos planetas e luas que estavam sob o domínio da terrível Aib’Koletis a ausência da soberana foi sentida aos poucos, quando os soldados sem rosto na falta de novas ordens e sinais enviados da base começaram a agir de forma estranha ou simplesmente parar, largando seus postos, suas incumbências para ficarem parados. Assumindo a postura de verdadeiras estátuas de chumbo banhadas em nitrato de prata, refletindo o mundo ao redor em sua superfície espelhada, agora nada maleável e dura como pedra. Logo o povo começou a reagir carregando-os para o alto de montanhas, jogando-os de penhascos ou atirando-os em fundos de lagos e mares, livrando-se daquelas incômodas figuras que representavam terror e opressão eternos. Agora parados para sempre sem ordens para receber.
E enquanto isso, o navio espacial roubado tinha cada centímetro explorado pelos novos residentes. Salas de jogos, salas de reunião, laboratórios, observatórios e biomas alienígenas simulados (lugares dos quais foram estritamente aconselhados a ficarem longe), quase uma Cosmogony melhorada e muito mais complexa. Seu sistema de corredores tão intrincado, se interligando de tal forma que tornava fácil a tarefa de se perder entre suas curvas, subidas, descidas e espirais. Não havia nada ali que lembrasse o comportamento humano ou a existência orgânica em geral.
Não foram encontrados banheiros, os dormitórios eram nada se não salas com enormes pufes ou câmaras para sono criogênico com cápsulas dispostas em círculo na posição vertical. Para completar o pacote de luxo, as coisas ali estava sempre à meia luz o tempo inteiro, os andares que compunham o navio ficavam imersos numa semi-escuridão suspeita que os fazia pensar puder haver algo escondido nas sombras espreitando. Coisas que passaram despercebidas às primeiras patrulhas de limpeza do lugar para livrá-lo de androides metamorfos ou quaisquer coisas desagradáveis.
Os androides eram congelados pela bomba criogênica de Fábia (sim, no final das contas descobriu-se que seu meigo báculo na verdade era uma arma com potencial relativamente perigoso para quem não estivesse dentro do círculo de proteção que o objeto projetava ao redor do portador.) e em seguida trancafiados em verdadeiros frigoríficos espalhados por mais de vinte colossais andares interligados pelo enorme fosso globular que os viajantes encontraram logo após invadir a nave exatamente no centro. Uma enorme bolha anti-gravitacional que lembrava o interior de uma colmeia perfeitamente redonda, um globo da morte com as paredes cheias de alvéolos. Estes eram os portais para corredores, câmaras e salões que compunham o interior da nave.
Nove meses se passaram ali dentro, sem pistas relevantes de onde o próximo arquiduque poderia estar. Nove longos e tediosos meses explorando caminhos, passagens e salas do tesouro repletas de relíquias interplanetárias, verdadeiros museus inteiros escondidos ali, a história de milhares de povos distantes, oculta atrás de paredes e caixas de vidro em mostruários extensos. Viveiros cheios de animais selvagens, coisas enormes ou pequeninas cheias de olhos, pernas, antenas, patas e chifres. Seres que pensavam estarem em seu habitat natural graças às simulações dos ambientes de onde foram tirados, mas que viviam uma eterna mentira e sequer faziam ideia de que eram observados pelos olhos curiosos de humanos vindos de um minúsculo planeta esquecido pelo resto do universo.
- Estamos no Cruzeiro Espacial Delta – disse a Sybila, durante a refeição dos humanos. Ela não costumava se juntar a eles nessas horas, mas sentava-se à mesa e os fazia companhia, raríssimas vezes comia alguma coisa. O metabolismo da sua espécie era muito lento, de modo que ela poderia passar meses, anos terrestres sem comer, assim mesmo continuaria satisfeita como se houvesse comido há pouquíssimo tempo.
- Cruzeiro Espacial Delta? – Augusta brincava com o estranho macarrão verde em seu prato. A comida que eles encontraram ali estocada em depósitos do tamanho de galpões portuários era no mínimo esquisita, mas saborosa, e capaz de satisfazê-los por um longo tempo. Comida alienígena era algo como comida asiática: exótica aos extremos.
- Por um acaso não é a nave da história? – Fábia afastou seu prato com uma expressão de repulsa nos olhos. Ela era a única que não havia se acostumado àquelas refeições e por isso havia emagrecido bastante, em nada lembrava a moça rechonchuda que um dia fora – digo, a história da Princesa Azura.
- Sim, Cruzeiro Espacial Frontier Delta. – afirmou Hikikomori, os dedos enlaçados apoiando seu queixo pontudo enquanto os cotovelos sustentavam o peso da sua cabeça na placa de metal flutuante que lhes servia de mesa. Todos largaram seus talheres alienígenas para observá-la, surpresos.
- Tem certeza? – Pietro cutucou a massa redonda e rosada em seu prato triangular com o híbrido de faca e colher que tinha em mãos – digo, se este for realmente o CEFΔ, o lendário Cruzeiro Espacial onde a família real vivia, o que ele esteve fazendo durante todo esse tempo enterrado naquele planetinha, nas mãos de Aib’Koletis?
- Não consigo chegar a uma conclusão a respeito disso – ela uniu as sobrancelhas franzindo a testa, confusa. – aqui residiram gerações milenares de seres poderosíssimos, os amos de minha mãe e os que vieram antes deles habitaram estes corredores. Esta nave-mãe é considerada sagrada por muitos povos espalhados pelos sistemas planetários, para muitos deles é até um pecado que estejamos aqui dentro... O que poderia ter acontecido para...
- E porque você só reparou agora? – fez Ray Ann, largando seu talher também, estava cansada daquela linguiça roxa cujo recheio interno lembrava mais o miolo de uma laranja tingida de vermelho. – você viveu aqui durante um tempo, não viveu? Você nos contou que era o braço direito de Azura nos tempos áureos, praticamente a “melhor amiga” dela.
Hikikomori olhou para cima e em seguida ao redor, analisando o refeitório com minúcia.
- Está diferente, tudo está diferente, provavelmente Aib’Koletis modificou o interior da nave quando assumiu o controle... Eu só consegui perceber onde estávamos quando reiniciei o sistema de navegação, o brasão da família Shantrya surgiu luminoso e logo em seguida o nome da nave nos ideogramas usados na escrita do povo da princesa e seus ancestrais.
Hikikomori puxou o prato de Christopher para perto e desenhou uma série de traços e curvas nas manchas da gelatina com a ponta do dedo:
- Nós podemos levá-los! Eu sei que podemos! – ela o abraçou mais forte. Estava contendo o choro havia algumas horas desde que se acordara e se deparara com Aib’Koletis morta e aquele novo Alado. Agora mais príncipe do que nunca. Ele exalava a realeza de seu povo antigo em cada poro do seu corpo, cheirava a algo agridoce que enchia a boca de água.
- Isso é algo que temos de fazer sozinhos, minha querida, é a nossa lei, é como deve ser feito – ele a tomou nos braços mais uma vez e a pressionou forte contra aquelas costelas magras.
- Porque isso aconteceu com você? O que são essas asas enormes? Elas eram tão pequenas antes... – ela se afastou delicadamente para admirar a envergadura colossal daquele par de asas de cisne. Estavam os dois sozinhos na enorme câmara azul-turquesa enquanto o restante do grupo tentava eliminar os androides que ainda zanzavam pela nave mãe com a ajuda do báculo superpoderoso de Fábia Paola, congelando tudo.
- Eu atingi a maturidade da minha espécie. Fechei um ciclo de vida. – fez ele, sorrindo, olhando sonhador para cima, para as estrelas do teto abobadado transparente cheio de arcos de ferro. – pensei que isto nunca fosse acontecer. Não acontece há eras, desde que nosso povo foi trazido à força para as cavernas e as nossas asas presas em amarras, nunca mais atingimos a maturidade. Nossas asas sem uso, ao invés de crescerem, atrofiam até quase sumir. Mas algo... Algo fez com que... tornou isso possível. Temo que este algo tenha sido você.
- Eu?! – Ray espantou-se – mas eu não fiz nada!
- Você me deu forças. Você me tirou na gaiola e da escuridão das cavernas e me fez enxergar quem minha amada era de verdade. Você. – Alado sorriu, amável, retirou uma gota de lágrima dourada do canto do olho e esfregou nos lábios da jovem com delicadeza. – prove.
No começo ela estranhou, mas ao passar a língua nos lábios logo sentiu o gosto doce de mel. Era divino!
- No nosso sistema planetário natal, algumas criaturas costumavam fazer-nos chorar para coletar as nossas lágrimas. Elas eram muito maiores que nós e possuíam vários braços.
- Não consigo... imaginar... – disse a garota, um tanto apática, ainda entorpecida pelo gosto da lágrima de Alado.
- Agora temos de nos despedir. Um dia nos encontraremos de novo. Eu creio nisso. Você crê?
Ela fechou os olhos e engoliu em seco.
- Sim, eu creio – disse, séria.
Alado deu o sorriso mais largo e sincero que dera desde a primeira vez em que os dois se encontraram nas cavernas profundas, exibindo dentes perolados e lábios macios, finos, belos. Ray jamais se esqueceria daquele sorriso.
O pássaro abriu as asas pela última vez, cobrindo-a com uma sombra cálida e aconchegante. Juntas elas eram majestosas e incrivelmente brancas, poderosas. Ele as bateu várias vezes, levantando outra nuvem de plumas enquanto erguia-se do chão, ganhando o ar. Não demorou muito para atravessar o teto, que se desmaterializou com a sua proximidade e tornou-se sólido logo em seguida, após a sua travessia. Ray Ann imaginou-o ganhando os céus, ganhando as estrelas, chegando à sua constelação de origem, Cygnus. Imaginou céus rosados, nuvens azuladas e esverdeadas, árvores que crescem sem parar rumo aos céus, gigantes de vários braços e confortáveis ninhos repletos de plumas brancas. Ela gostaria de visitar o mundo de Alado um dia. Os mundos de Alado.
Quando a nave mãe de Aib’Koletis levantou voo, rasgando a rocha e atravessando a atmosfera venenosa daquele planeta primitivo, o Apocalipse Club não imaginava que passaria tanto tempo velejando no espaço, costurando entre as estrelas dentro de um navio voador. A nave da Arquiduquesa tinha o exato formato de um barco terrestre, as duas torres lembravam mastros e seu corpo em forma de banana lembrava o casco. Na lateral, duas barbatanas de metal seguravam o equilíbrio e içavam o enorme cruzeiro espacial para frente com a ajuda de duas turbinas, uma em cada asa.
Eles conferiram a passagem do tempo baseada no calendário do tablet de Augusta (que por incrível que pareça estivera esse tempo inteiro intacto no bolso interno da jaqueta da garota, descarregado). Longos meses se passaram, meses compridos o suficiente para que eles pudessem conhecer cada pedaço daquele enorme navio de metal, que em lugar de cruzar os mares cruzava o espaço.
Tiveram tempo inclusive para subir às torres de controle e observar os distantes sistemas planetários que antes estiveram sob o poder de Aib’Koletis, agora completamente livres da tirania de mais um dos cruéis soberanos eleitos pela Imperatriz Azura para administrar regiões remotas do universo. Hikikomori assumiu a pilotagem, que funcionava no salão turquesa através da mesma tecnologia de refração de cristais utilizada na subterrânea sala do trono nas cavernas. Ali usada para simular o espaço lá fora em três dimensões, mostrando os caminhos a serem trilhados, identificando planetas, estrelas e regiões inteiras nomeadas e mapeadas. A mesma câmara onde Ray havia se despedido de Alado por tempo indeterminado. A lembrança vívida dele em sua mente ainda pulsava sem parar.
Nos planetas e luas que estavam sob o domínio da terrível Aib’Koletis a ausência da soberana foi sentida aos poucos, quando os soldados sem rosto na falta de novas ordens e sinais enviados da base começaram a agir de forma estranha ou simplesmente parar, largando seus postos, suas incumbências para ficarem parados. Assumindo a postura de verdadeiras estátuas de chumbo banhadas em nitrato de prata, refletindo o mundo ao redor em sua superfície espelhada, agora nada maleável e dura como pedra. Logo o povo começou a reagir carregando-os para o alto de montanhas, jogando-os de penhascos ou atirando-os em fundos de lagos e mares, livrando-se daquelas incômodas figuras que representavam terror e opressão eternos. Agora parados para sempre sem ordens para receber.
E enquanto isso, o navio espacial roubado tinha cada centímetro explorado pelos novos residentes. Salas de jogos, salas de reunião, laboratórios, observatórios e biomas alienígenas simulados (lugares dos quais foram estritamente aconselhados a ficarem longe), quase uma Cosmogony melhorada e muito mais complexa. Seu sistema de corredores tão intrincado, se interligando de tal forma que tornava fácil a tarefa de se perder entre suas curvas, subidas, descidas e espirais. Não havia nada ali que lembrasse o comportamento humano ou a existência orgânica em geral.
Não foram encontrados banheiros, os dormitórios eram nada se não salas com enormes pufes ou câmaras para sono criogênico com cápsulas dispostas em círculo na posição vertical. Para completar o pacote de luxo, as coisas ali estava sempre à meia luz o tempo inteiro, os andares que compunham o navio ficavam imersos numa semi-escuridão suspeita que os fazia pensar puder haver algo escondido nas sombras espreitando. Coisas que passaram despercebidas às primeiras patrulhas de limpeza do lugar para livrá-lo de androides metamorfos ou quaisquer coisas desagradáveis.
Os androides eram congelados pela bomba criogênica de Fábia (sim, no final das contas descobriu-se que seu meigo báculo na verdade era uma arma com potencial relativamente perigoso para quem não estivesse dentro do círculo de proteção que o objeto projetava ao redor do portador.) e em seguida trancafiados em verdadeiros frigoríficos espalhados por mais de vinte colossais andares interligados pelo enorme fosso globular que os viajantes encontraram logo após invadir a nave exatamente no centro. Uma enorme bolha anti-gravitacional que lembrava o interior de uma colmeia perfeitamente redonda, um globo da morte com as paredes cheias de alvéolos. Estes eram os portais para corredores, câmaras e salões que compunham o interior da nave.
Nove meses se passaram ali dentro, sem pistas relevantes de onde o próximo arquiduque poderia estar. Nove longos e tediosos meses explorando caminhos, passagens e salas do tesouro repletas de relíquias interplanetárias, verdadeiros museus inteiros escondidos ali, a história de milhares de povos distantes, oculta atrás de paredes e caixas de vidro em mostruários extensos. Viveiros cheios de animais selvagens, coisas enormes ou pequeninas cheias de olhos, pernas, antenas, patas e chifres. Seres que pensavam estarem em seu habitat natural graças às simulações dos ambientes de onde foram tirados, mas que viviam uma eterna mentira e sequer faziam ideia de que eram observados pelos olhos curiosos de humanos vindos de um minúsculo planeta esquecido pelo resto do universo.
- Estamos no Cruzeiro Espacial Delta – disse a Sybila, durante a refeição dos humanos. Ela não costumava se juntar a eles nessas horas, mas sentava-se à mesa e os fazia companhia, raríssimas vezes comia alguma coisa. O metabolismo da sua espécie era muito lento, de modo que ela poderia passar meses, anos terrestres sem comer, assim mesmo continuaria satisfeita como se houvesse comido há pouquíssimo tempo.
- Cruzeiro Espacial Delta? – Augusta brincava com o estranho macarrão verde em seu prato. A comida que eles encontraram ali estocada em depósitos do tamanho de galpões portuários era no mínimo esquisita, mas saborosa, e capaz de satisfazê-los por um longo tempo. Comida alienígena era algo como comida asiática: exótica aos extremos.
- Por um acaso não é a nave da história? – Fábia afastou seu prato com uma expressão de repulsa nos olhos. Ela era a única que não havia se acostumado àquelas refeições e por isso havia emagrecido bastante, em nada lembrava a moça rechonchuda que um dia fora – digo, a história da Princesa Azura.
- Sim, Cruzeiro Espacial Frontier Delta. – afirmou Hikikomori, os dedos enlaçados apoiando seu queixo pontudo enquanto os cotovelos sustentavam o peso da sua cabeça na placa de metal flutuante que lhes servia de mesa. Todos largaram seus talheres alienígenas para observá-la, surpresos.
- Tem certeza? – Pietro cutucou a massa redonda e rosada em seu prato triangular com o híbrido de faca e colher que tinha em mãos – digo, se este for realmente o CEFΔ, o lendário Cruzeiro Espacial onde a família real vivia, o que ele esteve fazendo durante todo esse tempo enterrado naquele planetinha, nas mãos de Aib’Koletis?
- Não consigo chegar a uma conclusão a respeito disso – ela uniu as sobrancelhas franzindo a testa, confusa. – aqui residiram gerações milenares de seres poderosíssimos, os amos de minha mãe e os que vieram antes deles habitaram estes corredores. Esta nave-mãe é considerada sagrada por muitos povos espalhados pelos sistemas planetários, para muitos deles é até um pecado que estejamos aqui dentro... O que poderia ter acontecido para...
- E porque você só reparou agora? – fez Ray Ann, largando seu talher também, estava cansada daquela linguiça roxa cujo recheio interno lembrava mais o miolo de uma laranja tingida de vermelho. – você viveu aqui durante um tempo, não viveu? Você nos contou que era o braço direito de Azura nos tempos áureos, praticamente a “melhor amiga” dela.
Hikikomori olhou para cima e em seguida ao redor, analisando o refeitório com minúcia.
- Está diferente, tudo está diferente, provavelmente Aib’Koletis modificou o interior da nave quando assumiu o controle... Eu só consegui perceber onde estávamos quando reiniciei o sistema de navegação, o brasão da família Shantrya surgiu luminoso e logo em seguida o nome da nave nos ideogramas usados na escrita do povo da princesa e seus ancestrais.
Hikikomori puxou o prato de Christopher para perto e desenhou uma série de traços e curvas nas manchas da gelatina com a ponta do dedo:
克魯斯太空邊疆
- Mas isso é chinês! – exclamou Donnick, confuso. – a raça de Azura fala chinês?!
- Acha que as diferentes línguas dos povos do seu planeta vieram de onde? – Hikikomori sorriu, confiante – o seu planeta no passado foi uma espécie de porto super movimentado, que recebia por ciclo de rotação milhares de naves cargueiras, fazendo o transporte de mercadorias advindas de todos os cantos desta galáxia. Foi assim que os símios aprenderam a falar, tendo contato com nossos povos. Ou acham mesmo que aqueles animais primitivos, seus ancestrais, desenvolveram a própria linguagem sozinhos?
O grupo estava em estado de choque, boquiabertos com aquela revelação, no mínimo, perturbadora. Eles estavam na companhia de uma criatura que poderia mudar tudo o que estava escrito atualmente nos livros de história terrestre, revolucionando o modo como a raça humana sempre encarou o seu desenvolvimento quanto seres racionais.
- Os seus continentes ainda nem estavam perfeitamente formados quando receberam os comerciantes e mercadores dos quatro cantos do universo, as transportadoras instalaram bases neles... Aquelas marcas profundas no solo terrestre que vocês insistem em chamar de “crateras de meteoro”... – ela deu uma gargalhada divertida, nunca haviam visto a Sybila gargalhar até então, por isso espantaram-se e recuaram alguns centímetros, assustados – ali ficavam as bases de cada “empresa”, por assim dizer, as naves-mães dos povos que decidiram expandir os negócios até aqui e instalar-se na área. Tudo o que fosse extraído nos outros planetas da região era enviado para lá, e de lá partiam para o destino final. Quando Azura tornou-se a Imperatriz cruel, e todos os sistemas planetários da galáxia foram sugados até o último recurso natural, os comerciantes levantaram suas “tendas” e partiram. Mas já era tarde demais, haviam interferido no desenvolvimento natural do planeta de vocês... E aí estão o que são hoje. Símios falantes. Quem diria.
O silêncio que se seguiu foi mortal. Eles estavam chocados demais para falar qualquer coisa.
- De qualquer modo – ela tornou a tagarelar, voltando sua atenção para o prato rabiscado – assim que descobri que estávamos no Cruzeiro Espacial Delta, saí em busca de Azura pelas câmaras criogênicas. E acreditem, são muitas.
Eles gelaram dos pés à cabeça. Havia uma possibilidade da terrível Azura estar ali, escondida em alguma câmara secreta durante todo esse tempo e Hikikomori não os havia comunicado a respeito disso?! Eles estiveram correndo um possível perigo durante todo esse tempo e não foram avisados?! As bocas já estavam se abrindo e os dedos se pondo em riste para a discussão começar, mas a Sybila os interrompeu.
- Não se preocupem, ela não está aqui. Nunca esteve. A nave está completamente deserta de uma ponta a outra.
- Mas ela poderia estar! – exclamou Donnick – e você não nos avisou! Sabe o quão grave isso é?!
- Vocês estavam seguros esse tempo todo, sempre estiveram. – Hikikomori permanecia calma – mesmo se Azura estivesse escondida em alguma das câmaras familiares dos setores mais profundos, ou nas tumbas criogênicas onde os anciãos dormiam seu sono, ela jamais poderia nos fazer mal. Estaria sob animação suspensa e sem ameaça alguma de despertar. As cápsulas são controladas por painéis em salas separadas e só podem ser abertas por algum elemento externo.
Mesmo após a explicação, a suspeita continuou pairando no ar. Estavam nervosos.
- Não se preocupem – a Sybila sorriu – está tudo sob...
As luzes piscaram uma, duas, três vezes. Um tranco lançou-os ao chão num impacto dolorido, que eles receberam com gritinhos abafados de espanto. A nave havia batido em algo.
- Você ia dizer controle?! – Christopher gritou, acima das sirenes que tocavam alto. O refeitório se banhava em azul-turquesa e logo em seguida voltava à sua meia luz natural com reflexos levemente prateados: eram as luzes das laterais, localizadas abaixo do piso, que brilhavam através das placas de cristal onde se encontravam. Havia outras no teto também, e juntas elas aumentavam e diminuíam de intensidade num ritmo sonolento acompanhado do som ensurdecedor semelhante ao badalar de um enorme sino.
Em alguns instantes eles já estavam na sala de controle, atravessando hologramas de três dimensões simulando o universo ao redor completamente mapeado, cheio de rotas sinalizadas e estrelas nomeadas.
- Como é possível?! – exclamou Hikikomori, manipulando os hologramas com as mãos, mudando as estrelas de posição com puxões que mudavam o ângulo das imagens rapidamente. Foi um espanto para todos, mas a verdade surgiu na forma de uma enorme esfera azulada gigantesca que se aproximava em alta velocidade cada vez mais. Eles estavam caindo.
- Batemos na atmosfera de um planeta! – exclamou o Professor Umbrella puxando sua foice para perto.
- Não existem planetas nessa área! É impossível! Isto está mapeado pelo sistema e não há registro da existência deste... – outro solavanco lançou todos ao chão. A nave batia contra grandes blocos de pedra flutuante que orbitavam tranquilamente entre as nuvens daquele novo planeta. E eles sentiam aquilo na pele, vivenciavam cada tronco e rodopio, pois o holograma mostrava perfeitamente o percurso em queda da nave como se estivessem ao ar livre, caindo feito o navio voador onde eles se encontravam.
Passar através do campo magnético que mantinha aqueles enormes blocos de pedra flutuando acima do mundo azul desconhecido estabilizou e desacelerou a queda levemente, mas após esta curta passagem a velocidade só aumentou. A gravidade deste planeta parecia ser realmente muito forte, e o impacto contra o oceano infinito que se estendia em todas as direções lá embaixo fez as luzes do Cruzeiro Espacial Delta se apagarem violentamente, de uma vez por todas. Christopher caiu de queixo no chão, e então apagou.
Havia se tornado um ritual este apagar da consciência na chegada a um novo planeta.
- Acha que as diferentes línguas dos povos do seu planeta vieram de onde? – Hikikomori sorriu, confiante – o seu planeta no passado foi uma espécie de porto super movimentado, que recebia por ciclo de rotação milhares de naves cargueiras, fazendo o transporte de mercadorias advindas de todos os cantos desta galáxia. Foi assim que os símios aprenderam a falar, tendo contato com nossos povos. Ou acham mesmo que aqueles animais primitivos, seus ancestrais, desenvolveram a própria linguagem sozinhos?
O grupo estava em estado de choque, boquiabertos com aquela revelação, no mínimo, perturbadora. Eles estavam na companhia de uma criatura que poderia mudar tudo o que estava escrito atualmente nos livros de história terrestre, revolucionando o modo como a raça humana sempre encarou o seu desenvolvimento quanto seres racionais.
- Os seus continentes ainda nem estavam perfeitamente formados quando receberam os comerciantes e mercadores dos quatro cantos do universo, as transportadoras instalaram bases neles... Aquelas marcas profundas no solo terrestre que vocês insistem em chamar de “crateras de meteoro”... – ela deu uma gargalhada divertida, nunca haviam visto a Sybila gargalhar até então, por isso espantaram-se e recuaram alguns centímetros, assustados – ali ficavam as bases de cada “empresa”, por assim dizer, as naves-mães dos povos que decidiram expandir os negócios até aqui e instalar-se na área. Tudo o que fosse extraído nos outros planetas da região era enviado para lá, e de lá partiam para o destino final. Quando Azura tornou-se a Imperatriz cruel, e todos os sistemas planetários da galáxia foram sugados até o último recurso natural, os comerciantes levantaram suas “tendas” e partiram. Mas já era tarde demais, haviam interferido no desenvolvimento natural do planeta de vocês... E aí estão o que são hoje. Símios falantes. Quem diria.
O silêncio que se seguiu foi mortal. Eles estavam chocados demais para falar qualquer coisa.
- De qualquer modo – ela tornou a tagarelar, voltando sua atenção para o prato rabiscado – assim que descobri que estávamos no Cruzeiro Espacial Delta, saí em busca de Azura pelas câmaras criogênicas. E acreditem, são muitas.
Eles gelaram dos pés à cabeça. Havia uma possibilidade da terrível Azura estar ali, escondida em alguma câmara secreta durante todo esse tempo e Hikikomori não os havia comunicado a respeito disso?! Eles estiveram correndo um possível perigo durante todo esse tempo e não foram avisados?! As bocas já estavam se abrindo e os dedos se pondo em riste para a discussão começar, mas a Sybila os interrompeu.
- Não se preocupem, ela não está aqui. Nunca esteve. A nave está completamente deserta de uma ponta a outra.
- Mas ela poderia estar! – exclamou Donnick – e você não nos avisou! Sabe o quão grave isso é?!
- Vocês estavam seguros esse tempo todo, sempre estiveram. – Hikikomori permanecia calma – mesmo se Azura estivesse escondida em alguma das câmaras familiares dos setores mais profundos, ou nas tumbas criogênicas onde os anciãos dormiam seu sono, ela jamais poderia nos fazer mal. Estaria sob animação suspensa e sem ameaça alguma de despertar. As cápsulas são controladas por painéis em salas separadas e só podem ser abertas por algum elemento externo.
Mesmo após a explicação, a suspeita continuou pairando no ar. Estavam nervosos.
- Não se preocupem – a Sybila sorriu – está tudo sob...
As luzes piscaram uma, duas, três vezes. Um tranco lançou-os ao chão num impacto dolorido, que eles receberam com gritinhos abafados de espanto. A nave havia batido em algo.
- Você ia dizer controle?! – Christopher gritou, acima das sirenes que tocavam alto. O refeitório se banhava em azul-turquesa e logo em seguida voltava à sua meia luz natural com reflexos levemente prateados: eram as luzes das laterais, localizadas abaixo do piso, que brilhavam através das placas de cristal onde se encontravam. Havia outras no teto também, e juntas elas aumentavam e diminuíam de intensidade num ritmo sonolento acompanhado do som ensurdecedor semelhante ao badalar de um enorme sino.
Em alguns instantes eles já estavam na sala de controle, atravessando hologramas de três dimensões simulando o universo ao redor completamente mapeado, cheio de rotas sinalizadas e estrelas nomeadas.
- Como é possível?! – exclamou Hikikomori, manipulando os hologramas com as mãos, mudando as estrelas de posição com puxões que mudavam o ângulo das imagens rapidamente. Foi um espanto para todos, mas a verdade surgiu na forma de uma enorme esfera azulada gigantesca que se aproximava em alta velocidade cada vez mais. Eles estavam caindo.
- Batemos na atmosfera de um planeta! – exclamou o Professor Umbrella puxando sua foice para perto.
- Não existem planetas nessa área! É impossível! Isto está mapeado pelo sistema e não há registro da existência deste... – outro solavanco lançou todos ao chão. A nave batia contra grandes blocos de pedra flutuante que orbitavam tranquilamente entre as nuvens daquele novo planeta. E eles sentiam aquilo na pele, vivenciavam cada tronco e rodopio, pois o holograma mostrava perfeitamente o percurso em queda da nave como se estivessem ao ar livre, caindo feito o navio voador onde eles se encontravam.
Passar através do campo magnético que mantinha aqueles enormes blocos de pedra flutuando acima do mundo azul desconhecido estabilizou e desacelerou a queda levemente, mas após esta curta passagem a velocidade só aumentou. A gravidade deste planeta parecia ser realmente muito forte, e o impacto contra o oceano infinito que se estendia em todas as direções lá embaixo fez as luzes do Cruzeiro Espacial Delta se apagarem violentamente, de uma vez por todas. Christopher caiu de queixo no chão, e então apagou.
Havia se tornado um ritual este apagar da consciência na chegada a um novo planeta.
FIM DO PRIMEIRO ARCO!
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