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domingo, 20 de fevereiro de 2011

The Big Machine 3 - Apocalipse 19


Andar pela cidade de dia era totalmente diferente de caminhar nas trevas da madrugada, ao que eles estavam habituados. De dia tudo parecia ainda mais perturbador, mais caótico, desesperador, o aperto no peito ficava mais forte a cada passo em frente. Esta perturbação vinha principalmente do fato de encontrarem ruas tão conhecidas do cotidiano, agora completamente devastadas e irreconhecíveis. Veículos capotados, árvores derrubadas, postes tombados, cinzas de lojas e moradias, papel e roupas espalhados pelas calçadas e pelo asfalto numa sopa de lama temperada pela água e pela terra enlameada resultante das chuvas torrenciais. Pontos conhecidos da cidade em ruínas, semáforos apagados e silêncio, um silêncio absoluto um tanto claustrofóbico. Era como estar preso num pesadelo apocalíptico de quatro paredes sem fim. Até o ar estava parado, o vento não batia entre as fendas dos muros derrubados, não entrava pelas vidraças quebradas. Era tudo gelado, parado, estático, como uma fotografia maldita de destruição e caos.
- Fazia tempo que nós não saíamos de dia... – Ray suspirou e catou uma fotografia qualquer do chão. Uma família feliz sorria na foto chamuscada na moldura artificial. – a situação parece pior à luz do dia...
Alexis ia à frente, caminhando com as mãos sobre o rosto, limpando a torrente de lágrimas em sua careta retorcida de dor, seus olhos fundos e vermelhos nunca estiveram tão tristes. Onde estaria a sua família? Seus pais? As pessoas que ela amava? Onde estariam os seus entes queridos no meio daquela catástrofe toda? O que teria acontecido a eles?
- Alexis... – Maxine pôs a mão sobre o ombro da moça atordoada. Ela sequer reagiu. – você tem que tentar se acalmar, eles precisam ver que você continua sendo uma general, se demonstrar alguma emoção, nosso plano pode ir por água a baixo... Seja forte agora! – Max segurou a mão da jovenzinha com força e transmitiu positividade com apenas um único olhar, seus lábios repuxados para dentro da boca numa máscara de seriedade e confiança. Aquilo parecia um tanto maternal e reconfortou bastante o coração da garota, tão jovem e tão perdida no meio daquilo tudo, não fazia muito tempo que havia recobrado a consciência e saído do transe que a havia transformado numa das generais malignas que serviam à Alberta e sua trupe. Alexis engoliu o choro e fechou os olhos com força, deixando uma derradeira lágrima escorrer por sua face corada, descendo rumo ao desconhecido até perder-se pouco abaixo do queixo, pingando no chão molhado da rua devastada.
- Estamos perto – alertou Haruno, quebrando o silêncio do momento enquanto subia numa caçamba de areia tombada sobre a calçada para ter ampla visão do que estava à frente. As ruas estavam irreconhecíveis, de modo que era impossível se localizar guiando-se pelas construções ou pelas placas, as quais não mais existiam. Muitos prédios e casas foram derrubados e o concreto restante deles se espalhava nas avenidas aos montes, esmagando a lataria de carros ou motos, formando pirâmides casuais dos restos mortais da antes pacata, serena e poeirenta Macapá. Agora úmida, gelada e morta.
- Estou achando estranho, estranho demais... – os olhos semicerrados de Ray Ann vasculhavam o ambiente ao redor com destreza. – onde estão os soldados? Os robôs?
- Estão todos concentrados nas periferias, onde residem os últimos grupos de refugiados. – soluçou Alexis, respirando fundo em seguida, procurando dentro de si a máscara perdida de general, o disfarce que era a sua salvação e a salvação de todos os que haviam sido capturados na pilhagem da Fortaleza. Sua família poderia estar entre eles, esse era o seu incentivo, o alimento da sua esperança. Eram tempos escuros e nublados para aquele povo.
Não demorou muito para que os muros perfeitamente brancos do Estádio Glicério Marques surgissem em meio aos escombros fumarentos da cidade, talvez a única coisa de pé e em perfeito estado em quadras de distância.
- É o seguinte, meninas. – sibilou Maxine para suas outras três companheiras, escondidas atrás de uma barricada de veículos amontoados uns sobre os outros. – Vamos nos algemar e Alexis nos guiará para dentro do terreno do estádio. Quero todas as cabeças baixas e quero muita tristeza nesses olhares... Quanto à você, engula o choro ao máximo que puder, vamos precisar da sua cara de má!
Alexis fechou os olhos por alguns segundos e ao abri-los outra vez, havia uma máscara de frieza e maldade sobre seu rosto. Ela passou tanto tempo calada encarando as três que por um momento Maxine realmente pensou que ela havia voltado a ser a general que haviam encontrado no final da madrugada, dentro do prédio da FAMA há algumas horas atrás. A fadiga era tanta que os sentidos já as estavam enganando, precisavam descansar urgentemente. Algemadas umas nas outras formando uma corrente, foram arrastadas com violência teatral aos portões vermelhos fortemente vigiados por dois dos gorilas-robôs. Parados pareciam mais duas estátuas de metal, enganariam a qualquer um, passando por simples enfeites extravagantes e caros para recepcionar os visitantes com as suas caras feias de macaco. Iguaizinhos à Lana Palafita e a sua cara de ribeirinha. Ray sentiu uma vontade irresistível de rir, mas se conteve com todas as forças e jogou seus cabelos sobre o rosto de tal forma que chegou a lembrar a própria Samara de “O Chamado”, uma verdadeira assombração.
- Três novas prisioneiras. – fez Alexis, sem gaguejar. Só ao aproximar-se percebeu que havia dois soldados-zumbis ladeando os robôs, eram tão pequenos perto daquelas máquinas mortíferas que passavam completamente despercebidos de longe, foi quase um susto vê-los saindo do além para barrar a sua entrada. Por um instante ela achou que a farsa havia sido descoberta e quase perdeu o disfarce.
Dois lasers vermelhos saídos das viseiras dos robôs escanearam o rosto de Alexis, um na vertical e outro na horizontal, tornando-se verdes logo em seguida. Os dois soldados caminharam então até o portão e abriram passagem para o comboio de quatro mulheres que adentraram no recinto de imediato. O cenário atrás dos muros era desesperador. As estranhas gaiolas usadas para a captura de fugitivos eram amontoadas em setores, formando corredores de grades com paredes altas e escuras que pareciam querer alcançar o céu nublado do que restou da cidade. Lembravam galerias portuárias de contêineres de metal, com carregamento humano dando lugar aos objetos de importação e exportação. As pessoas ali dentro já estavam cansadas de gritar por socorro, elas sabiam que ninguém poderia ajudá-los, nem ouvi-los, o socorro jamais viria. A única saída era se conformar e entregar-se ao destino de soldado-zumbi escravo na construção da grande torre de controle daquela estranha organização cujo objetivo para eles ainda era desconhecido. Grande parte dos contêineres estava vazia agora que restavam poucos resistentes à ditadura.
- Eles têm de estar aqui, em algum lugar, é pra cá que os capturados neste setor vêm! – Alexis praticamente corria por entre as galerias, procurando por rostos conhecidos e arrastando as três falsas prisioneiras à força no seu encalço, pouco se importando com as câmeras que a acompanhavam.
- Vai com calma, Alexis! Não corra! Não podemos levantar suspeitas! – sibilava Maxine, dando puxões na corrente da algema que a ligava à sua falsa capturadora.
- Assim você vai nos entregar de bandeja pra eles! – exclamava Haruno, em seu posto de última algemada na corrente das falsas prisioneiras. Ray Ann vinha no meio, confusa, com os olhos perdidos por entre as gaiolas. Também procurava por seus familiares, pelo seu amor.
A corrida desembestada das quatro infiltradas foi abruptamente interrompida por dois vultos de preto, um mais alto e moreno, de cabelos crespos e grandes olhos castanhos, outro mais baixo, esguio, magrelo, de rosto fino, olhar severo e cabelos cacheados.
- Florêncio e Rosálio – sussurrou Ray Ann entredentes para trás, para Haruno.
- Nº 9, aonde pensa que vai com esses prisioneiros? – disse a voz grossa de Rosálio, a General de nº 6 na hierarquia dos setores nos quais a cidade foi separada. Alexis foi pega de saia justa com a boca na botija, estava completamente sem reação, parada e estática, tremia dos pés à cabeça, seus olhos esbugalhados como o de um coelho prestes a morrer na boca de uma raposa faminta. Florêncio e Rosálio se entreolharam, sorriram com malícia e voltaram-se para as quatro. – onde você as capturou Nº 9?
Alexis continuou calada. Rosálio deu dois passos em direção à ela, e isso congelou suas entranhas de medo. Ser um general significava deixar os sentimentos humanos de lado para tornar-se uma máquina orgânica a serviço exclusivo da S.U.J.A., o olhar maligno e a pupila sempre dilatada indicava a hipnose, entre outros detalhes como movimentos robóticos precisos, agilidade acima da média, inteligência e lógica aumentadas e incapacidade total de sentir compaixão. A hipnose bloqueava as áreas do cérebro que envolviam grande parte das emoções humanas deixando livre o caminho para que o organismo e os impulsos nos neurônios trabalhassem exclusivamente em áreas como a do raciocínio e desempenho físico, levando o indivíduo ao seu limite. Aquela coisa não-humana era o que estava deixando Alexis tão nervosa, era como estar cara a cara com alguém possuído pelo demônio.
- Você soube, Nº9, do incidente no quartel general? – perguntou Rosálio, executando uma vistoria nas três prisioneiras recém-capturadas, erguendo os rostos e analisando-os bem. Reconheceu Haruno, a antiga ocupante da sua posição na hierarquia dos generais de imediato, e em seguida reconheceu Ray Ann, que deveria estar morta juntamente com seus amigos na destruição do prédio da escola.
- N... não... – gaguejou a garota. Uma lágrima já escorria pelo canto do olho. Ela estava completamente entregue.
- Não é o que as câmeras mostram, e nem o que está registrado na memória dos vigilantes do setor. – ela se referia aos macacos-robôs residentes. Fez um sinal com o dedo para Florêncio, ou nº 7, que com passos largos, aproximou-se das quatro e pegou Alexis pelo braço.
- Obrigada, nº 9, você foi muito generosa trazendo essas três até nós; e muito sensata em se entregar também. – deu um tapinha nas costas da garota decepcionada. – agora, nº 7, leve-as, elas estarão na próxima sessão de conversão.
Maxine não pensou duas vezes, derrubou Rosálio no chão com uma rasteira inesperada, puxou a arma da cintura da garota e apontou para a cabeça dela. Florêncio puxou seu laser do cinto instantaneamente e começou a atirar, as garotas se jogaram no chão, ainda presas às algemas pulso a pulso. Maxine separou os elos com tiros certeiros e gritou para que elas corressem, mas não, elas decidiram ficar e lutar. Usando um dos contêineres como barricada para o combate, levaram vantagem por estarem em maior número e com maior quantidade de munição, logo os dois generais precisariam se esconder para não levar chumbo e poderem chamar o reforços. E era essa a hora certa em que elas correriam dali o mais rápido que pudessem.
- Rápido, pra dentro! Pros fundos da galeria! – ordenou Maxine, apontando para o labirinto de jaulas de metal.
- Vpcê está louca?! Temos que sair daqui! – exclamou Ray tomado a outra direção, Haruno pegou-a pelo braço antes que ela pudesse fazer alguma besteira.
- Não! Temos que ir pro fundo, nos esconder! A esta altura os portões estão todos em alerta, não sairemos daqui nem em mil anos! Vamos! Pra dentro!
Arrastada contra a sua vontade, Ray Ann foi puxada para o interior do labirinto numa busca desesperada por uma gaiola aberta onde poderia esconder-se. Não demorou muito para que encontrassem o que procuravam, para rastejar para as sombras, longe dos olhos dos soldados armados com metralhadoras e rifles que agora percorriam os corredores de gaiolas vasculhando cada centímetro em busca das invasoras.
- Estamos ferradas, ferradas! – resmungava Haruno, agachada, procurando nas sombras uma saída, uma solução.
- Espera, espera! – Maxine levantou-se e pediu silêncio. – estão ouvindo?!
- O que houve? – Harunou também se levantou e foi até onde a companheira estava.
- Eu estou ouvindo – fez Ray ainda agachada. – é uma música... tem crianças cantando!
- Crianças?! Mas eles não trazem crianças pra cá, elas ficam nas ruas... – exclamou Haruno, forçando o seu ouvido ao máximo.

Meu trenzinho
Meu trenzinho
É marrom
É marrom
Vira pra direita
Vira pra esquerda
Faz fom-fom
Faz fom-fom

- Parece que tem uma classe de jardim de infância aqui em algum lugar e... – Ray foi interrompida pela mão de Haruno que foi direto sobre a sua boca. Ambas abaixaram juntas no escuro do contêiner gradeado outra vez. Uma tropa inteira de soldados passou por eles, eram uns 10 ou 20 em marcha, armas em mãos, indo na direção da música. No comando deles havia um rosto conhecido, era Alberto, irmão gêmeo de Alberta, provavelmente era ele quem estava no controle do posto avançado de conversão, seu uniforme era diferente dos outros, possuía listras brancas nas laterais. De óculos escuros enormes e um colete camuflado nas cores da selva, ele passou carregando um rifle no ombro, queixo em pé, olhando fixo para frente, inexpressivo. Seu corte de cabelo e suas roupas faziam-no parecer uma versão menor, branquela e raquítica de Arnold Schwazenegger em “O Exterminador do Futuro”.
A tropa parou mais adiante, as quatro levantaram-se para observar sorrateiras ao que estava acontecendo, na pontinha dos pés.
- Calem a boca, vocês! Isso aqui não é parque de diversão! – ouviu-se a voz de Alberto aos berros não muito longe dali. Algo chocou-se contra as grades de uma das gaiolas três vezes, arrancando gritos do que parecia ser uma turma de terceiro período em cárcere privado. As criancinhas soltaram berros apavorados de doer os ouvidos e começaram a chorar. Provavelmente Alberto teria batido contra as grades usando o rifle em suas mãos.
- Ora, seu desalmado! São apenas crianças! Deixe-as se divertirem antes de virarem robôs serventes como você! – retrucou uma voz espevitada e atrevida, aguda como a de uma cantora pop. Maxine teve vontade de gritar o nome da amiga. Aquela era Tifa! Tifa estava com as crianças em uma gaiola ali perto!
- É a Tifa! É a Tifa! Ela está viva! Viva! – Max abraçou Ray com força e começou a dar pulinhos de alegria enquanto batia palminhas. Sua melhor amiga não havia morrido!
- Ei, se controla! – Haruno deu um cutucão na companheira. – Se eles nos descobrem estamos fritas! Já viu o tamanho daqueles rifles?!
Alexis, que permanecera calada até então, pronunciou-se finalmente.
- Deve haver um jeito de soltá-los! – disse baixinho. – essas gaiolas não são indestrutíveis.
- Mas elas possuem uma senha, nós tivemos sorte que esta estava aberta... – Haruno apontou para o pequeno painel oval equipado no fecho da porta do contêiner.
A tropa de vistoria afastou-se num marchar contínuo até que o som do pisoteio dos soldados extinguiu-se do alcance da audição, era o momento de ir até a gaiola.
Foi uma festa esse reencontro! As esperanças foram renovadas! Ali dentro havia Tifa, alguns adultos e todas as crianças do acampamento. Do outro lado, outro contêiner com mais pessoas dentro, todos os capturados da pilhagem à fortaleza somavam uma quantidade de cinco ou seis gaiolas daquelas lotadas. Parentes, amigos, conhecidos, todos ali, reunidos e lutando pela sobrevivência, acreditando que o socorro chegaria, e suas preces foram ouvidas afinal. Maxine estourou cada um dos fechos com um tiro certeiro do seu laser, danificando os aparelhos que exigiam senhas para destrancarem as jaulas.
- Como vamos sair daqui?! – perguntou Tifa, olhando de uma ponta a outra no corredor de contêineres, cautelosa.
- Não sei, mas nós vamos...
- Ora, vejam só – riu uma voz que vinha de cima. Era a voz de Alberto, Ray Ann a reconheceria em qualquer lugar, anasalada e debochada, com uma dicção rápida demais. – pensavam que iam escapar assim, na cara dura? Não na minha jurisdição, crianças, não mesmo!
Acompanhado da sua tropa fortemente armada, tinha sob mira cada uma daquelas cabeças. Havia homens armados agachados em cima de todos os contêineres empilhados daquele corredor do labirinto interno do estádio Glicério Marques, como abutres à espreita da carniça, vultos negros os observavam frios e prontos para atirar. Só estavam esperando a ordem...






Fim do Apocalipse Dezenove!

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