Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

The Big Machine 3 - Apocalipse 17




- Não é possível – Ray caiu de joelhos, sua visão turva, turva pelas lágrimas que brotavam de baixo das pálpebras, fazendo o ambiente se dissolver em água ao redor, como se ela observasse o mundo de dentro da janela de um carro, parado debaixo de um aguaceiro.

Ela não sabia se por causa da chuva pesada que caía sobre a cidade naquele momento ou se por causa daquele mar que lhe brotava dos olhos em queda livre como cachoeira, mas algo lhe dava a sensação de fazer parte de um daqueles quadros caóticos que a professora de artes havia mostrado em suas aulas, Guernica talvez. Porém imagine a tinta fresca, secando na tela, e imagine uma alma maligna carregando um balde cheio de água, indo em direção à pintura que seca em toda a sua desgraça retratada de forma mais fiel. Imagine também que esta alma cruel lançou mão de todo o conteúdo do balde sobre a tela maldita, só pelo bel-prazer de ver todo o trabalho escorrendo pelas pernas do cavalete em forma de papa azul, cinza e preta, as cores do caos.

Era assim que os olhos de Ray Ann viam a Fortaleza de São José de Macapá em chamas naquele momento. Alguma mão repleta de unhas compridas parecia ter-lhe arrancado o coração do peito. Os Apocalípticos residentes naquela dimensão estavam parados no gramado molhado, observando a estrutura centenária arder em brasa vermelha e laranja debaixo do temporal que se abatia sobre a capital. Como estátuas inexpressivas.
Quem estaria vivo? Quem estaria morto? Quem teria sido carregado à força na carroceria das carretas feito animais, em direção aos campos de concentração, para a conversão em soldados-zumbis? Estas e muitas outras perguntas passavam por suas cabeças numa velocidade incrível. Poucas pessoas já sentiram a impressão de perder o chão por um momento. Poucas pessoas já tiveram a sensação de ter perdido todo o ar, de ter o coração feito em pedaços, de possuir um vazio repentino no peito, um buraco negro sugando todas as reações humanas possíveis para tal tipo de situação sórdida.

Fábia consolava a garota ensopada que comia terra, esmurrando o chão encharcado enquanto urrava de dor. Seus parentes? Seus amigos? Estariam lá ainda? Que não estivessem, por favor, ela pedia, por favor, que o exército os tenha levado. Ela sabia que aqueles que ficaram para trás seriam os inúteis, os mortos, os quais perderam um membro ou que estavam entre a vida e a morte. Ray Ann mordia o próprio punho, suas lágrimas se misturando à água da chuva, à lama, formado um caldo negro no chão onde ela se arrastava.
- Não pode ser... – Maxine permanecia inexpressiva – como eles chegaram até nós?! Como eles conseguiram invadir a Fortaleza?!
- Eu sinto muito... – Alexis, a ex-general, pôs sua mão sobre o ombro da mulher atordoada, suas madeixas ruivas de leoa, ensopadas, lembravam um gato molhado, de brilho platinado, a franja colada à testa na mistura de água e suor.
Lá dentro não havia restado nada além de dois ou três corpos e destruição. Comida espalhada pelo chão, pratos quebrados, roupas rasgadas, móveis partidos ao meio, colchonetes rasgados e colchões em chamas. Parecia mais o interior de um presídio após uma rebelião. Havia marca de tiros por todos os lados, e marcas escuras nas paredes onde o fogo tocou. Por aproximadamente meia hora, o grupo vasculhou cada canto daquele lugar em silêncio absoluto, procurando uma pista, algo que indicasse que todas aquelas pessoas inocentes estavam vivas e em segurança, algo que indicasse sua fuga. Nada foi encontrado exceto aqueles três corpos abatidos como frangos, estirados no meio da praça de armas, debaixo da chuva pesada. Dois homens e uma mulher, desconhecidos, refugiados. Suas famílias estavam vivas, na teoria.
- Eu sabia, eu sabia que ele tinha que vir conosco! Eu falei que ele tinha que vir conosco! – era a ladainha de Ray Ann, procurando sinais do namorado pelo lugar, completamente fora de si, não trocara uma palavra com outrem desde que entraram no esconderijo destruído, ignorara qualquer fala dirigida a ela, era como se estivesse sozinha e perdida entre sua mente e o mundo, para sempre.
- Eles foram levados para os estádios, temos que ir atrás deles, eles ainda podem estar vivos! – exclamou Haruno, passando seus dedos brancos pelas marcas dos tiros nas paredes. – talvez eles ainda não tenham sofrido a conversão, as marcas das balas estão quentes e o fogo ainda está alto, aconteceu agora pela manhã enquanto vínhamos para cá, quando começou a chover...
- Haruno tem razão. – Miguel quebrou seu silêncio – está tudo muito recente, ou então o fogo já teria sido apagado pelo vento e pela chuva que caiu de madrugada. Foi no intervalo entre as quatro e as sete da manhã. Vejam, o fogo está apagando agora! – apontou para os montes disformes de madeira e tecido que ardiam no meio da praça de armas ao lado dos corpos.
Algo se contorceu no escuro.
Todas as armas foram sacadas.
Estado de alerta máximo.
- Quem está aí?! – gritou Fernando.
- Pessoal... Eu estou viva... Pessoal... – algo gemeu ali perto. Havia alguém debaixo dos escombros do telhado desabado.
- Rápido! Ajudem aqui! É a Gabrielle! É a Gabi! – Maxine começou a cavar, a jogar telhas contra a parede, retirar tijolos e pedras enormes, puxar madeira para fora dos entulhos, abrindo caminho em busca da amiga, cavoucando como um animal desesperado em busca da sua cria perdida. Miguel e Fernando juntaram-se a ela de imediato, e depois Fábia e Alexis também desceram suas mãos sobre a pilha dos restos do teto da mesma sala onde Haruno havia revelado seu passado como general. Agora encharcada e completamente destruída.
Gabrielle teve sua vida conservada pela escrivaninha da sala, havia se escondido ali embaixo após levar um tiro na perna direita e quebrado um dos braços. Sem forças para lutar, escondeu-se embaixo da escrivaninha quando uma bomba explodiu e derrubou parte da construção usada como a “diretoria” do grupo de refugiados pelos Apocalípticos. E então ali ela ficou, e rezou pela sua vida e pediu piedade pelos seus pecados como jamais havia feito antes. Então duas horas depois, seus ouvidos captaram os sinais de passos e murmúrios em meio à chuva e a crepitação das fogueiras da pilhagem feita por 100 homens e um robô-gorila. Era também o sinal de que Deus havia lhe escutado, seus amigos estavam bem, e voltaram sãos e salvos, sua última esperança renovada, sua caixa de pandora particular aberta.
- Gabi! Gabi! Pra onde eles levaram o pessoal?! Pra onde foram?! – gritava Maxine, segurando o rosto da amiga entre as mãos, afastando os cabelos molhados da testa suja, abraçando e beijando-a como se faz a uma filha que estivera desaparecida durante anos.
- Glicério Marques... Eles vão iniciar a conversão ao meio-dia, e o horário estabelecido... – resmungava a mulher, cuspindo e tossindo, completamente desnorteada. Mal enxergava a amiga diante de si.
- Temos que levá-la a um hospital, ela perdeu muito sangue. – fez Fernando. – temos de engessar o braço dela.
- Levem-na. – disse, voltando-se para Miguel e Fernando. – eu e Haruno vamos até o estádio.
- NÃO! NEM PENSAR! VOCÊS NÃO VÃO LÁ SOZINHAS! – gritou o marido. – ESTÁ MALUCA?
- Maluca por justiça! – grunhiu Max por entre os dentes cerrados, de punho fechado. Seu cérebro fervia de ódio dentro da cabeça. – isso acaba hoje!
- Max, é suicídio! – exclamou Alexis, aproximando-se da cena, deixando Ray de lado por alguns instantes. – eu sei como é, deve haver pelo menos uns 50 homens do lado de fora em vigília, sem contar nos robôs que fazem a ronda! Vocês duas estarão mortas antes de avistarem os muros do estádio!
- Não, não estaremos coisa nenhuma! – Haruno intrometeu-se com um sorriso de orelha a orelha. Os presentes observaram-na confusos, porque tanta felicidade numa hora tão obscura? – você vai nos colocar lá dentro!
- EU?! – gritou a garota, levantando-se apavorada, tremendo dos pés à cabeça – MAS NEM PENSAR!
- Claro que sim, Alexis, você é a única que pode fazer isso por nós! – tornou a exclamar a jovem Haruno, segurando a garota pelos ombros e sacudindo-a – veja bem, eles não sabem que você não está mais hipnotizada! Eles não sabem que você deixou de ser general!
- GENIAL! – gritou Miguel. – JOGADA DE MESTRE! – deu um soco de leve na palma da mão. – Alexis vai levar vocês duas até lá como se fossem prisioneiras capturadas para a conversão, eles sequer vão suspeitar de vocês, são só zumbis e robôs, tudo o que há de humano nos hipnotizados não existe mais, e os robôs foram programados para obedecer aos generais da S.U.J.A.!
- S.U.J.A.?! – Alexis fez uma careta.
- Sapatões Unidas Jamais Arregarão... – gemeu Ray Ann, ali próxima, encostada na parede, ainda atordoada pela realidade cruel. Levantou seus olhos vermelhos para o grupo e pronunciou-se para espanto dos espectadores – eu vou com elas.
- Tem certeza disso Ray?
- Eu vou recuperar o meu amor, nem que tenha de morrer por isso... – deu três passos para frente e puxou sua arma do cinto. – não vou ficar aqui parada chorando, não sou mais esse tipo de garota. Algo mudou em mim hoje e eu não sei o que foi, mas pode ter certeza, assim que eu encontrar a tal da Alberta, vou chutar o traseiro dela como ninguém nunca chutou! – mirou na parede e atirou. O laser fez voar poeira e pequenas lascas de pedra para todos os lados. Sorrisos se estenderam nos rostos, as esperanças se renovando mais uma vez.
- Essa é a vovó que nós conhecemos! – riu Miguel, abraçando a Ray Ann com toda a força. A garota retribuiu o abraço com muita sinceridade. Dos dois netos, o que mais lembrava o seu querido amor era Miguel. Tinham praticamente os mesmos olhos. Era incrível a semelhança, apesar de o temperamento ser muito mais parecido com o dela, fisicamente ele lembrava o avô em tudo.
- Vou trazer o seu avô de lá, meu filho! – fez Ray, graciosa, usando uma voz de velhinha que arrancou gargalhadas de todos, até mesmo da pobre Gabrielle que se retorcia de dor no colo de Fernando. – nem que eu tenha que enfrentar a Alberta cara a cara!
- Elas estão voltando do interior hoje à tarde, também ao meio dia – afirmou Alexis, insegura. Sabia que levaria uma bronca por não ter dito aquilo antes, meio que encolheu os ombros para se proteger dos sorrisos que se desfizeram instantaneamente. Haruno correu até ela.
- Porque não nos disse isso antes?! – exclamou a jovem, nervosa. – teríamos nos preparado para ela!
- Não podem, ninguém está preparado para aquelas três... Na verdade... Aqueles quatro... – seus olhos culpados percorreram rosto a rosto, esperando alguma objeção que a impedisse de continuar a história. – elas três não agem sozinhas, são burras e ambiciosas demais, elas possuem um conselheiro que veio do futuro como vocês...
- Disso nós sabemos – fez Fernando com sua voz grossa de trovão. – é Robert, o capataz de Alberta. Ele roubou o cérebro artificial, pôs na boneca e veio para o passado.
- O problema não é esse. – continuou Alexis, tremendo dos pés à cabeça ao lembrar repentinamente de tudo o que passou até chegar ali – eles sozinhos são fáceis de enfrentar, unidos são razoáveis... Mas dentro do robô, eles são uma ameaça.
- Robô? Do que você está falando? Dos DK’s? – fez Haruno, temendo o pior. Sua memória como general de Alberta não ia tão longe a ponto de resgatar algo tão perigoso e letal quanto ao que Alexis estava se referindo.
- Não, o chefe deles, muito pior que toda a frota junta...
- Desembucha logo, garota! Precisamos agir rápido então! Temos menos de quatro horas para salvar nossas famílias! – gritou Ray Ann, nervosa.
- Mapinguari! Mapinguari! – Alexis iniciou um choro nervoso e copioso. – Este é o nome da arma principal deles, o robô gigante que atacou a escola no dia em que tudo isso começou! Foi ele que atirou os caminhões do exército contra o prédio! Ele é o último recurso deles! É o meio de transporte que eles usam, é nele que eles viajam para o interior, para fazer o controle geral, o Mapinguari não é usado na cidade, só no interior...
- Como nunca vimos ele antes?! – exclamou Fernando – como um robô gigante fica escondido numa cidade de prédios baixos como essa?!
- Isso não importa agora, Fernando – Max virou-se para o marido, séria. – o que importa é que ele é problema, e Alberta e suas amigas virão montadas nele!
- Tanto o Mapinguari quanto os DK’s eram parte de um projeto secreto do governo que ficava escondido na base secreta do Oiapoque, longe dos olhos dos curiosos e em estado de teste... – continuou Alexis. – Quando Alberta invadiu os computadores do exército, tomou controle de toda a frota de macacos-robôs, e dele também. Esse era o plano desde o começo. Ter o Mapinguari sobre controle para poder exercer o poder a pulso de ferro sobre a população do estado e estabelecer a ditadura a partir da força bruta e da violência.
- Está tudo explicado então... – Maxine puxou sua arma do cinto como Ray Ann – não podemos perder tempo então, se não quisermos topar com o rei dos macacos de metal, temos que fazer tudo rápido, vamos! Miguel, Fernando e Fábia vão para o hospital! Haruno, Ray e Alexis vem comigo... Vamos botar pra quebrar!
Os Apocalípticos levantaram seus punhos para o alto e uivaram como uma matilha de lobos pronta para o ataque à manada de bisões.
- Não antes que eu quebre cada um de vocês! – a comemoração foi interrompida bruscamente por uma voz que veio do além. Do outro lado da praça de armas, os encarando como uma assombração debaixo da chuva, havia um vulto de preto fantasmagórico de olhar malicioso e postura felina.
- Quem é esse agora? – perguntou Fernando. Sua intenção era atingir Alexis, que estava tão assustada e confusa quanto eles todos juntos, mas sua pergunta acabou sendo respondida por outra pessoa.
- É o Edvaldo, Edvaldo Lestrange. – fez Ray Ann, apontando a arma na direção do rapaz, que permaneceu lá, na chuva, parado, desarmado e confiante, confiante o bastante para sorrir em direção às armas mortais que o tinham sob mira certeira.



Fim do Apocalipse Dezessete!





Fiquei com pena da Ray Ann ):

Nenhum comentário:

Postar um comentário

E então? O que achou?