Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

9.20.19.13.5.723378


A imagem daquela pobre cadela atropelada não me deixou dormir. Me deitei às 3, mas às 6 eu já estava de pé. Não conseguia imaginar nossa protetora, nossa amiga, apodrecendo ao ar livre, lá fora no quintal, dentro de um saco preto, esperando alguém para enterrá-la.
Ele havia cavado o buraco, mas era eu quem tinha de fazer isso, era eu quem tinha de jogar a terra sobre ela. Não havia motivos para cavar mais fundo, estava perfeito, o buraco cobria metade das minhas pernas, e eu sou alto, alto demais. Era profundidade o suficiente para fazer o descanso final da vigia do lar.
As imagens do dia anterior me vinham à cabeça enquanto os pássaros cantavam e o sol terminava de nascer. Minha irmã havia acabado de ir para a aula. O vento gelado da manhã acariciava o capim com carinho, acordando a folhagem das árvores trazendo os raios de sol consigo, tornando amarelo o brilho azul espectral deixado para trás pela madrugada. Eu nunca vira mamãe sofrer daquele jeito, não por um animal. Trancou-se no quarto após ir até a porta de casa receber a notícia do vizinho. Não teve coragem de ir até a calçada para ver o corpo, oculto pelo velho Ford KA branco que costumávamos usar há algum tempo atrás. Agora uma carcaça sucateando.
Mas eu tive coragem.
E preferia não ter visto a boa e velha Gabi estirada daquele jeito.
Na mesma hora me veio à imagem à cabeça. Daquela raposa de pelos dourado-alaranjados que explodia e dava lugar a um monte de larvas, numa imagem acelerada de sua decomposição na abertura de True Blood. Seria esse o destino dela? As moscas já se acumulavam.
- Foi de manhã cedinho - disse o velho - o carro acertou ela em cheio, ela correu chorando pra cá e se jogou aqui atrás do carro...
Levei a mão à boca. Mamãe entrou.
- Quer que eu a enterre? Eu levo ela...
- Não, não, não precisa - fiz, perturbado - o rapaz tá vindo pegar ela já...
O velho foi-se. Entrei. Procurei o rumo do quarto, segurei a mão dela. Estivera chorando ao telefone há alguns segundos antes de eu entrar pela porta.
- Calma, não chora, isso é super normal. Eu sei o que a senhora tá passando, mas é assim mesmo e... - segurei na mão dela. Ela puxou a mão bruscamente para junto do corpo e levantou-se furiosa.
- Não quero mais saber de bicho nenhum aqui nessa casa! - disse, às lágrimas. - quero todos esses gatos fora daqui! Tudo eu! Tudo eu!
- Nenhum de nós teve culpa, mãe.
Ela ficou calada.
Me levantei e saí, fui me sentar na cadeira de balanço roxa do pátio. Cruzei os braços atrás da cabeça e fiquei admirando aquela tarde amarela e poeirenta, quente como o inferno. Um dia ensolarado e melancólico como aqueles dias de minha infância em que eu passava as tardes na casa da vovó, brincando sozinho enquanto as outras crianças estavam na escola. Meus pais haviam acabado de se separar.
Havia cheiro de chão recém-encerado e Laura Pausini tocando baixo no rádio da sala. Todas as luzes da casa desligadas, todos os adultos dormindo a sesta vespertina. Mas eu não, eu ficava andando pela casa, pra lá e pra cá, explorando cada canto dali. As moscas se acumulando em cima da mesa, cheiro de café recém-feito e pão quente com manteiga direto da padaria. Os raios de sol entravam fortes pela janela da cozinha onde minúsculos grãos de poeira dançavam no ar como mini universos num balé constante. Pó.
Havia também o som distante do sorveteiro e seu carrinho de mão, a buzina estridente de carros e o som irritante mas reconfortante da voz vinda dos auto-falantes no caminhão da Tropigás. Década de noventa. Cigarros baratos. Vento nos coqueiros do quintal. As folhas verdes lustrosas esfregando-se umas nas outras provocando aquele barulho delicioso que eu tanto adorava. Às vezes eu me deitava sozinho no chão sujo para olhar os pombos no telhado e as copas dos coqueiros dançando ao sabor do vento. Ficava imaginando o que havia do outro lado do muro, na casa do vizinho, e me divertia falando sozinho, brincando com uma velha cruz de metal da minha altura que há muito havia sido esquecida ali perto dos entulhos. Zerão, o cachorro dormia ali perto. Não se aproxime muito, ele morde.
Assim eram as minhas tardes na casa da vovó. Seis ou cinco anos de idade. Era sempre assim. E eu não sabia porque, mas aquela atmosfera daquela tarde fatídica onde encontramos o corpo da Gabi já sem vida me fez lembrar dessas doces e melancólicas tardes solitárias, onde eu me sentia muito bem acompanhado de mim mesmo. Eu era muito mais feliz quando não me relacionava com as pessoas. Ah! Se eu soubesse! Teria optado por se autista como alguns pais e professores estavam me qualificando!
- Ela trancou a porta - minha irmã surgiu no vão da porta da sala - e agora? Eu tenho que tomar banho e me arrumar pra ir pro balé, as coisas estão todas lá dentro!
Dei de ombros.
- Ela acha que a culpa é nossa.
Silêncio.
- Eu vinha avisando há séculos - continuei - essa cachorra tava solta desde o dia de ano novo. Eu vinha dizendo: "prende essa cachorra, prende essa cachorra" ou "vai acontecer uma merda, ou o carro vai bater ou ela vai morder alguém! prende essa cachorra!", agora mamãe finge que não me escuta.
- Não NOS escuta - corrigiu minha irmã - ela espera acontecer pra depois lamentar, precisa ouvir tudo de fora pra poder confirmar se é verdade ou não, nunca nos ouve. Nunca.
- Às vezes somos mais sábios que ela - terminei.

Entrei, peguei um livro, sentei-me no pátio. Daniel Molloy estava sendo transformado em vampiro dentro da cabine do avião em "A Rainha dos Condenados". Que livro fantástico. E nada do rapaz chegar. Aquele rapaz que já é homem agora e que eu conheço desde os doze anos. Que me viu crescer praticamente. Ele chegou já perto do anoitecer, restavam duas horas e meia de sol.
- Vai ajudar ele a cavar, por favor, tá?! - fez ela, abrindo a porta do quarto onde eu me estirava no chão, tentando ler o meu livro, escapar da realidade.
- Quando a Baby morreu, eu cavei o buraco sozinho - disse, frio.
- O QUÊ? - perguntou. Não tinha escutado.
- Quando a Baby morreu, eu cavei o buraco sozinho. - disse, gelado.
- COMO É QUE É? - de novo. Ela tinha ouvido. Estava só me desafiando a dizer de novo.
- Quando a Baby morreu, eu cavei o buraco sozinho. - nunca repito uma sentença tantas vezes quanto repito aqui dentro dessa casa.
- MUITO OBRIGADA! - fez, raivosa, bateu a porta do banheiro e se trancou lá dentro. Suspirei e fui lavar a louça. Às vezes sinto necessidade de ter minha própria casa, mas acabaria morrendo na sarjeta sem a ajuda dessa mulher. Isso me deixa decepcionado comigo mesmo. Olha o meu tamanho!
Me tranquei e comecei a escrever. Um capítulo inteiro da minha nova história fluiu como água, como um capítulo há muito tempo não fluía! Me senti em êxtase comigo mesmo! Era fantástico! Há quanto tempo eu não escrevia com tanta vivacidade, com tanta verossimilhança! Com tanta paixão! Eu estava realmente no interior da França ou era impressão minha? A resposta para a dificuldade em escrever nestes tempos difíceis é que agora eu tenho muitas coisas na cabeça ao mesmo tempo. Antes eu era oco, vazio, não tinha muita coisa no cérebro com o que me preocupar. Mas de repente me senti com 14 anos de novo, viajando em meu mundo interno outra vez! Que mágico!
Até que me cortaram a linha do pensamento, e lá fui eu comprar o lanche na padaria. Já era noite. Eu me sinto envergonhado em andar nas ruas com a blusa do meu antigo colégio agora, mas todas as de ficar em casa estão sujas.
Tornei a entrar em meu mundo. E assim fiquei durante um tempo até me informar do que havia acontecido aqui na vida real.
- Ele não enterrou ainda. Acha que tem que cavar mais fundo. - disse, chorosa para mim. Pobre mamãe! Eu sei muito bem o que ela está passando. A morte da Baby pra mim foi uma gota d'água e tanto. - Amanhã cedo talvez ele venha e... O que é isso que tu estás assistindo?
- É True Blood, mamãe.
E então até ela se rendeu ao cotidiano conturbado dos moradores de Bon Temps. Depois minha irmã entrou e elas assistiram por durante uns trinta minutos. Partiram. Terminei a noite assim, chocado pela vida real e pela ficção; a doce avó de Sookie, Adele Stackhouse fora morta, assassinada cruelmente, jazia sobre uma poça de sangue no meio da cozinha! Que horror! E eu me havia apegado tanto àquela senhora em tão poucos episódios! Ela era uma personagem tão carismática e encantadora!
Mas que crueldade, Allan Bal seu filho da mãe!
Mas que crueldade, vida! Sua filha da mãe!
Quer saber? Que todos se ferrem, eu vou enterrar aquela cachorra! Pensei. Deixei um episódio de The Vampire Diaries baixando e fui dormir. Às seis já estava completo o download. Assim que terminei de assistir, pulei da cama e fui para o quintal, empurrei o saco preto para dentro do buraco com a enxada, o cadáver duro e já fétido caiu com um baque surdo no fundo do pequeno poço. Ela era pesada! Então comecei a enterrar, puxar toda a terra a minha volta para dentro do buraco.
E então lembrei de Jonna Lee e sua iamamiwhoami, em seu concerto, cantando os versos desconexos de 9.20.19.13.5.723378 enquanto enterrava a bola de alumínio que continha as cinzas do garoto carbonizado. Ora, e porque não cantar também? Tornar isso ainda mais dramático?


A brisa me lambeu o rosto suado como uma vaca.


Carry my head

With this mengled body

It hurts

Like

Hell

Like

Hell

Lights are on

But there's nobody home

Long asleep

As hard as most...














Em memória de Gabriela.

xxxo


Louie Mimieux

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