Virou-se vagarosa na cama, parecia uma velha tartaruga, encarquilhada, pesada, cascuda e enrugada, seus olhos mal abriam-se, a luz era fraca mas ainda assim era forte demais para suas retinas antigas, desgastadas por tudo o que já presenciaram, fotografaram e guardaram com carinho ou com ojeriza nos veios e sulcos de memórias do cérebro de uma velha de quase oitenta anos. Oitenta anos muito bem vividos. Ou não, os últimos tem sido feitos de pura amargura. Havia alguém parado aos pés da cama, ela sabia que havia alguém mesmo não tendo se virado para o lado da porta do hospital, não sabia, não lembrava como havia ido parar naquele quarto azul, tão sem graça e sem glamour algum.
- Está acordada, Stella, querida? - perguntou a voz.
Stella gemeu, parecia uma lhama no leito de morte.
- Vamos querida, faça um esforcinho, vire-se para me ver! Senti tanto a sua falta! - ela reconhecia essa voz de algum lugar, mas não sabia de onde. Com dificuldade, meneou a cabeça para o lado, a fim de enxergar o rosto que a velava. Não era Aline nem nenhuma das pessoas que ela conhecia, pelo menos não recentemente. Era alguém que há muito tempo ela não via. Sua voz trouxe doces lembranças relacionadas a parques nevados, cheiro de chantilly e chocolate quente, morangos fatiados ao meio e cheiro forte de tabaco. Cat Power tocava alto em algum canto da mente da velha, ela só não sabia onde.
- Quem, quem está aí? - com dificuldade, seus olhos idosos se abriram para depararem-se com uma criatura estranha, de óculos escuros e sobretudo preto, escuro como a noite. Um gorro escondia as mechas encaracoladas, quase crespas, com a cor natural de chocolate já perdida, agora era algo mais cinza, mais alvo, estranho. Seu rosto também estava mudado, o tempo havia lhe dado de presente muitos sulcos e rugas, e sua boca enorme agora estava ressecada. Ela sabia quem era. Aquele rosto, aquela voz...
- Vou retirar os óculos, querida, assim você pode me ver melhor. - a criatura riu e levou a mão aos lábios. Usava luvas de couro preto. - me sinto como o lobo mau disfarçado de chaupéuzinho vermelho, pronto para matar a vovózinha!
Retirou a única coisa que impedia a velha Stella de reconhecê-lo.
E isso fez seu coração fragilizado saltar, fez também cada uma das máquinas reguladores gritarem, alertando que o peito estava em frenezi, em pandemônio, sua saúde estava ameaçada mais uma vez por uma forte emoção.
- Black... Cherry... - fez ela, com uma voz rouca, o ar forçando a saída garganta afora. - Porque?! Porque o meu Lucas?! - foi a única coisa que ela conseguiu dizer. Suas mãos apertando o peito com força, como se isso fosse adiantar alguma coisa.
- Ele nunca foi seu... E nem meu... - riu outra vez - por isso agora não é mais de ninguém! Minha filha fez um bom trabalho...
- Não... pode... ser... Gabriela? - estava à beira do desmaio. Onde estavam os malditos médicos e enfermeiros daquele hospital?!
A criatura abaixou-se e beijou-a na testa.
- Não há mais motivos para me preocupar... Duvido muito que você passe dessa noite... Em todo caso... Bons sonhos, Stella Vazjekovzka...
Tudo apagou. Era pra sempre?
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