Segunda-feira, saí de casa, pela parte da tarde. Minha primeira respiração de ar puro em semanas trancafiado nestes cômodos frios e apertadinhos, tão aconchegantes, escrevendo crônicas embaixo das luzes cativantes e calorosas da árvore de Natal, desenhando deitado na cama, semi-coberto por um edredom que precisa urgentemente de uma lavagem, com meu cabelo sempre sujo... A coruja saiu da toca, e ora vejam só, de dia. Embaixo do sol já fraco das quatro da tarde.
- Está fechado, só abre amanhã, às oito. - disse o homem engravatado, em frente à Casa da Cidadania. Bufei e joguei meus ombros pra frente. Lá se fora mais uma chance de tirar meu título de eleitor, e o pior de tudo é que eu tive de fazer o requerimento via internet outra vez, dia 6 era o último dia do prazo para comparecer a 2ª Zona Eleitoral.
- E agora? - perguntei para mim mesmo, admirando o portão fechão do prédio de arquitetura tão incomum para esta cidade. Escorei-me numa árvore, coloquei os fones nos ouvidos e dei play em "O" de iamamiwhoami. Versão do concerto, é lógico, a versão convencional já me enjoou, embora ainda me seduza de certo modo. O Atual é só daqui há alguns quarteirões, pensei. Será que tem alguém lá? Será que o pessoal ainda tá tendo recuperação?
Menti o pé na calçada, espantei pombos, despertei olhares curiosos de pedreiros em construções e risinhos abafados debochados de garotos e garotas que andavam pela rua. Recebi olhares sugestivos e abaixei os olhos, como boa gueixa, educada pela honorável e instruída Mameha, como Sayuri em "Memórias de Uma Gueixa".
Foi rápido, a passos largos, saltando raízes de árvores e valas compridas, cheguei à esquina do Centro de Ensino Atual, aquele que foi meu segundo lar durante aproximadamente oito anos e que agora me parecia tão distante, outro mundo, outra realidade. A tarde estava ensolarada, dourada, iluminada. As folhas das árvores nunca estiveram tão verdes e agitadas, o vento nunca soprou com tanta alegria quanto naquele dia. O sol pela primeira vez me sorria. Nunca me senti tão íntimo dele assim na vida, eu que tanto odiei o calor que ele me proporcionava, agora estava amando aqueles raios em meu rosto, me lambendo com o vento. Era uma tarde deliciosa, sem dúvidas. Caminhei em rumo à escola então, adentrei em seu hall e seus corredores com muita intimidade, é claro, não deixei este ninho há tanto tempo assim, os rostos me são muito conhecidos ainda, e cada passo que dei ainda era muito bem previsto e calculado. Ali estava meu corredor, e ali estava a minha sala de aula, e todos os meninos estavam lá, esperando a hora da última prova da recuperação.
Abri a porta com muita teatralidade, como sempre.
- Meninos, o Rei de vocês chegou!
Eles riram, Israel veio me cumprimentar. Sorrisos convidativos, calorosos, simpáticos, muito conhecidos, rostos familiares conversando como se o mundo que nós conhecíamos nunca houvesse acabado, como se aquilo fosse uma extensão, um bônus do que acabou. E realmente, aquilo o era.
Conversei durante algum tempo, aproveitei para anunciar os novos projetos aqui do blog, mostrar alguns desenhos que estavam na mochila, no meu Grande Livro onde estão classificados os meus croquis desde a oitava série até a atualidade que agora eu carrego para cima e para baixo, mostrando para quem talvez interessar (To Whom It May Concern...).
O Anderson cortou o cabelo afinal, tirou aquele ninho de passarinho da cabeça. Até que ele é bonitinho sem aquilo, quem olha nem consegue imaginar que já é casado e está prestes a ser pai! Sim, o bebê nasce daqui há alguns dias, e segundo ele, vou fazer faculdade na mesma sala que a mamãe da criança. CEAP ano que vem... Nossa! Faculdade! Quem diria! Passou tão rápido, ontem mesmo eu estava na sétima série brincando de ninja-feiticeiro...
E então a tia Darcy, tão doce a adorável tia Darcy, uma mãezona para todos nós, entrou na sala, para dar um aviso àqueles que iriam fazer a prova de recuperação da Professora Josivane, e aproveitou também a minha presença surpresa para dar o recado:
- Tenho um presente pra ti! Vem cá!
Eu a acompanhei até sua sala particular, imaginando talvez receber o meu envelope com as avaliações do bimestre, que fora trocado com o do Anderson no começo do mês passado... Recebi isso e muito mais das suas mãos: um certificado simbólico de conclusão de curso e mais uma foto da turma, emoldurada com muito carinho num quadro bege para servir de enfeite de mesa ou de cabeceira, para ficar na memória, na recordação. Exceto pela presença de alguns "seres ilustres" na fotografia, ela estava épica, saudosa, um tanto carismática e inocente, até meiga, passava a ideia de falsa união da 311 sempre em guerra. Guerras são sadias nessa idade, atiçam o instinto de competitividade e malícia do mundo lá fora.
Um turbilhão de emoções cruzou meu corpo partícula por partícula, lembrei de tudo, desde o começo, um filme passou pela minha cabeça. Sim, a história finalmente havia chegado ao fim. Não ao fim esperado, mas ao seu fim. As cortinas do show naquele lugar estavam se fechando para abrirem em outro...
Eu e tia Darcy trocamos palavras de incentivo e de saudosismo naquela sala, nos abraçamos e relembramos algumas coisas, falei de como estou dando continuidade ao meu trabalho artístico agora que tenho todo esse tempo livre para compor, desenhar, escrever, criar, é o que eu faço de melhor, revelei minhas expectativas para o próximo ano e meu pesar pelas pessoas que não veem o brilho desta época maravilhosa do ano e não se deixam levar pelo espírito natalino de renovação... Nos abraçamos não pela última vez, ainda nos encontraremos muito na jornada dessa vida, mas mesmo assim, foi um abraço de despedida e de felicitações pelo fim desta fase da grande caminhada. Ela confessou a falta que nós todos vamos fazer a ela, e eu senti um misto de alegria e tristeza em seu olhar. Alegria por ver seus pássaros criados com tanto apreço batendo asas, mas tristeza por vê-los se distanciar. Acontecia todo ano, era natural, mas havia algo de especial naquela turma, sim havia.
Quando tentei voltar à sala de aula, uma prova já estava sendo aplicada, então desci às escadas, saí para a rua e coloquei os fones nos ouvidos outra vez.
"Can't Beat The Feeling" da Kylie Minogue começou a retumbar tímpanos adentro, e uma grande explosão de energia queimou de dentro para fora. Eu estava livre! Livre!
Andei por muito tempo sem rumo, desci à rua da escola em direção ao nada, apenas pelo prazer da caminhada, pelo prazer de não ter para onde ir, de não ter o que fazer. Meus olhos furtivos admiravam os carros, as casas, as pessoas, as árvores e os muros, capturando essências, detalhes, odores e aromas. Meus dedos dançavam por grandes e cercas e meus pés sapateavam por entre canteiros e calçadas.
Quando dei por mim, estava admirando as vitrines do centro comercial da cidade, cortando as pessoas como um estranho, um estrangeiro, um alienígena de olhar perdido e cenho um tanto franzido, mas ao mesmo tempo sereno, uma alma a vagar, a observar e absorver o mundo à sua volta. Fui andando, ao som das minhas músicas favoritas, passeando por becos e ruas conhecidas e desconhecidas, rodeando lugares familiares e outros um tanto curiosos, recebendo olhares desconfiados dos motoristas dos carros que passavam nas ruas estreitas e mal planejadas do nosso centro, lutando para atravessar entre os monstros de metal. Criatura medieval perdida no mundo de plástico do futuro. Assim era eu. E várias ideias me assolavam, e várias coisas vinham à mente ao mesmo tempo. Eu estava atravessando a mim mesmo, rompendo meus limites de algum modo. Um belo estranho passou por mim, em frente ao Macapá Hotel, naquela extensa e larga calçada, abraçado a si mesmo, com ar de decepção. Venha estranho, vamos dividir as nossas dores.
E quando finalmente parei para pensar com coerência, estava deitado à beira da orla, admirando as ondas do rio Amazonas enquanto ouvia "N" da própria iamamiwhoami, Jonna Lee, versão do concerto. A brisa bagunçava minhas mechas artificiais quebradas de raízes onduladas já salientes pelos meses sem o retoque. Cantei para mim mesmo, como um sereiano à beira mar, tomando banho das ondas que quebravam na orla abaixo de mim. Curiosos me olhavam com olhares duvidosos, meu estranho comportamento atraía atenção.
Teatral, sempre, até observando a natureza, Senhor Mimieux.
E quando o sol finalmente baixou, voltei para casa.
E ao descer na parada de ônibus, equilibrei-me no meio-fio à caminho da minha esquina. A esquina onde costumo atravessar para adentrar na Caramuru, cortando a Professor Tostes.
Havia uma coisinha no meu ouvido ao longo do ano que me dizia, sempre, todas as noites, ao voltar da escola, e em algumas tardes também: "quando completares o ciclo, completarás o caminho". Este caminho, o caminho do equilíbrio no meio-fio, sem cair para o asfalto e nem para a calçada.
E adivinha?
Eu completei.
Cheguei à esquina sem por o pé na calçada e nem no asfalto.
Me equilibrei no meio fio sem cair, até o final, e saltei para o chão, ergui a cabeça bem alto, com o meu costumeiro sorriso de lábios retraídos para dentro da boca, formando covinhas na minha bochecha rechonchuda onde a barba já abre caminho contra a minha vontade. Virei-me e atravessei a rua. Rumo à casa.
Dever cumprido, Senhor Mimieux.
Gostei da sua crônica, particularmente é uma modalidade da escrita que me atrai. A partir de hoje vou lhe seguir...
ResponderExcluirConfira o meu blog também...
xD