Ex-Repórter e Antropólogo da Universidade Real Franco-Italiana em 18 de Novembro de 1996.
E aqui em meu leito de morte, contarei a vocês o que aconteceu a seguir...
Os vultos escuros que nos cercavam ficaram para fora, e nós ficamos ali dentro sem saber o porque de as feras não nos terem atacado e devorado. Se é que realmente eram feras, o que se mostrou mais tarde não o ser, tratavam-se de nativos locais usando roupas de palha e folhas de imbaúba da cabeça aos pés, nos fazendo reverências e recepcionando a oferenda, eles acreditam que a imbaúba tem propriedades mágicas capazes de afastar a fome sexual voraz de Abim’raso. Assim adentramos no templo e vimos todos aqueles símbolos nefastos e repugnantes desenhados na parede e descritos em uma linguagem de runas e hieróglifos nunca antes vista nem por Ray Ann nem por Fábia. Ray Ann disse que aquilo se assemelhava muito a uns escritos encontrados em chapas de metal desconhecido no gelo da Groenlândia. Não sei porque, aquilo me arrepiou.
Logo o teto começou a tremer, e fomos adentrando naquele túnel apertado e extenso até que a escuridão abriu-se numa câmara, um sarcófago repleto de morcegos que voavam em baderna para todos os lados. Colunas grossas sustentavam o teto invisível graças a altitude em que se encontrava. Ray Ann fez questão de parar a exploração para analisar os escritos das colunas macabras. Eram os mesmo do início do túnel, só que mais limpos e mais compreensíveis por ela. Havia muito de egípcio ali, e um pouco de escandinavo muitíssimo antigo. Havia simbologia israelita e árabe e hindu e uns traços poucos de sânscrito, aquilo dava dor de cabeça, segundo ela, era um bailado, uma batida, uma vitamina feita de todas as línguas mais antigas do nosso universo.
E havia mais desenhos surgindo, principalmente no chão. Havia círculos dentro de círculos e imagens humanas tocando tambores, havia cenas de sacrifício usando um facão sagrado em forma de meia lua e cenas de rituais sexuais que me recuso a descrever. O ato sexual representava algo grande e poderoso para aquele povo, algo capaz de repelir a fêmea maldita Abim’raso que causou a ruína daquele povo. Ahá! Gritou Ray Ann. Ela achara o que procurava: arte rupestre descrevendo a criação da cidade que fica aos pés da pirâmide!
E eis que ela confirmou o que vinha dizendo desde a primeira vez em que nos encontramos
Foi então que eu também ouvi a voz, baixa e sibilada como se dita por uma assombração, quase rouca, mas macia, falava português mas esquecia-se do plural das palavras e misturava dois ou mais verbos numa língua só dela. Era apavorante. Enquanto isso o teto continuava a tremer, as estruturas balançavam como se um exército inteiro estivesse marchando acima das nossas cabeças, as batidas eram ritmadas seguidas de uma batida unificada forte que fazia doer os tímpanos, como se batessem troncos no chão. Eu me arrepiava cada vez mais a cada segundo que passava. Continuamos em frente, ninguém tinha coragem o suficiente para voltar, e arrastando os dois mortos conosco chegamos ao fim da linha, uma parede gigantesca que segundo Ray Ann, de olhos brilhantes, vibrando com suas descobertas estarrecedoras e pertubadoras, tinha desenhada em arte rupestre toda a gênese daquele povo, como eles acreditavam que o mundo havia surgido. Ela quase gritava de emoção, felicidade, havia feito a descoberta do século, um povo totalmente diferente de tudo o que outros arqueólogos ou antropólogos já chegaram a descobrir e estudar, não se encaixava em nada conhecido nos dias atuais.
Ali dizia que o universo fora criado por três anciãs que viviam no vazio até que a cabeça de um alfinete pertencentes à elas estourou gerando o universo. Assim que criou a terra, veio, montada numa bolsa e tendo seu consorte às costas a deusa Abim'raso, para reinar por toda a eternidade. A primeira anciã desceu ao mundo e gerou mil feras, a maioria delas vive solta pelas florestas até hoje, e do deserto vieram as três múmias que tudo sabem e tudo veem: Yneéarj'sos, Svialon'tisos e Ailir'ema, marionetes da grande Klaàpacthu e suas servas leais. A segunda anciã casou-se com a múmia Svialon'tisos e juntos construíram um império no sul da América do Sul, um país chamado Ess'ébetë. Abim'raso e seu consorte Lo'ecdras criaram os primeiros humanos, que juntos construíram a Cidade Sagrada de C'maapã, fadada a viver coberta por um eterno véu que isola-a de tudo e de todos, deixando-a a parte das leis do tempo e da evolução.
Após isto, Abim'raso viajou para o oeste e de lá nunca voltou... Estas inscrições eram mil anos posteriores às inscrições nas paredes da entrada do templo. Minhas pernas já fraquejavam e minha boca já estava seca, foi quando eu senti o sangue descendo pelas rachaduras dos meus lábios. Não havia dúvidas que aquilo era ação demoníaca como nenhuma outra. Desmaiei então, e ao me acordar percebi que estava amarrado, e que todos os meus outros companheiros também estavam amarrados e toras de imbaúba também. Tochas enormes iluminavam totalmente aquele pátio circular interno da pirâmide sustentado por colunas tão grossas quanto as anteriormente vistas por nós na colossal câmara de entrada. A agora eu pudia ver a fonte dos tremores e das batidas que sacudiam a pirâmide de ponta a cabeça. Os nativos locais estavam dançando de braços dados em círculo enorme, completamente nus, batendo os pés com força no chão, sacudindo tudo. Dentro do grande círculo formado por eles havia outro menor, mas os escolhidos não tinham os braços dados, dançavam independentemente a uma certa distância uns dos outros, agarrados a grossos troncos de imbaúba que eram batidos no chão a cada três passos dados por eles. O círculo externo era formado só por mulheres enquanto o interno era formado só por homens.
No alto de um pedestal estavámos nós, agora completamente despertos, atrás de nós havia uma estátua, a maior estátua que eu já vira em toda a minha vida, nem se comparava com o buda asiático em tamanho, era realmente incrível e imensa, maior do que um prédio, o que me fez refletir sobre como aquilo fora parar dentro de uma pirâmide. Aquele era o ritual do despertar da besta, e nós éramos a oferenda! Me debati sem sucesso, os outros também lutavam para se desamarrar. Capitão Maurice estava morto em uma mesa de pedra, o sangue da sua jugular escorria para o jarro que uma garota branquela suja de cabelos escuros e compridos segurava logo embaixo. Assim que o jarro ficou cheio, ela escalou feito uma jia à escada que levava até o pedestal, e fez marcas estranhas com o sangue no chão ao pé da grande estátua às nossas costas, ou seja, aos nossos pés. Não podia ver muito da estátua, mas sabia que ela estava lá, atrás de mim pois via braços e pés do que talvez fosse uma criatura.
O barulho da dança se intensificou, e os tambores ribombaram mais fortes. A garota magricela nua fazia a dança mais frenética, estranha e nojenta que eu já vira até então, sacudindo o corpo todo como num ataque de epilepsia, um choque ou uma convulsão, seus olhos estavam completamente revirados, era assustador. Foi então que dois nativos deitaram os troncos em que nós estávamos amarrados, de modo a ficarmos diante da estátua, e agora eu pude ver do que se tratava. Era a imagem de Abim'raso de boca aberta, esculpida na rocha do modo mais fiel e grotesco que puderam fazer-lhe. O corpo raquítico e magricela. Os braços finos abertos esticando as membranas que a criatura utiliza para voos rasantes, seus olhinhos apertados de peteca e seu narizinho horripilante empinado. Estava de pernas cruzadas, seus pés pontudos e sem dedos cutucavam o vazio enquanto tochas ardiam em suas mãos. Sua boquinha dentuça estava aberta, como se rugisse, mas não deveríamos nos preocupar com o que saísse daquela caverna, e sim da caverna de baixo, que simbolizava a sua grotesca genitália.
Pasmem: a genitália da criatura (ou a gruta), tinha a mesma geometria doentia das naves espaciais desenhadas nas colunas da entrada! Eu me vomitei.
Foi então que a garota (supostamente uma virgem). Se lançou para dentro da gruta de boa vontade, e de lá vieram seus gritos e esguichos de sangue. A música e a batida pararam no mesmo instante. Os nativos se ajoelharam e abaixaram as cabeças. E ela surgiu.
Meu Deus, parece até que eu a estou vendo de novo, aqui, no meu escritório velho e sujo, surgindo das sombras toda aberta feito um gato raivoso, me atazanando outra vez com a sua imagem pavorosa! Meu coração até para de bater, e o meu ar se recusa a entrar! Tanto que é o pavor! Ai, que horror! Tenho até repulsa e medo em descrever o que nós vimos...
Era uma humana, uma mulher humana, uma menina humana normal aparentemente. Surgiu da gruta feito uma aranha tarântula horrível, se contorcendo toda, rodando a sua cabeça a 360º no pescoço. Sua pele era cor de terra, e seus cabelos eram da cor da palha, e era tão ridícula e pavorosa quanto a imagem construída em sua homenagem. Entre as suas pernas havia um vão, um espaço, uma falha enorme, que as fazia formar um verdadeiro arco. Era magra, apenas osso e pele, suas veias azuis saltavam para fora. Seus olhos estavam mais do que arregalados, havia acabado de acordar do seu sono de seis anos e ainda limpava os beiços da sua primeira refeição. Segundo as escrituras das paredes, ela iria se reproduzir após a sua primeira refeição, uma virgem, e assim que gerasse a próxima criatura, devoraria-nos como nutrição para a sua cria! Eu lutava contra as cordas violentamente, chorava feito uma criança e gritava feito um porco antes do abate.
A fera maligna soltou macabro grito antes de lançar-se aos ares sobre as nossas cabeças usando suas membranas pegajosas como asas para atracar-se ao tronco da imbaúba, um tronco especial, o mais grosso de todos, preparado unicamente para ela pela tribo. Nunca me esquecerei do som de seu grito, nem que eu viva mil anos. Foi algo que eu realmente não saberia descrever mesmo se fizesse todas as faculdades de letras e literatura existentes no nosso país, em outro país ou em outro mundo. Só sei dizer a vocês que lembra sucção, ou o gemido de mil demônios juntos.
Agarrada ao tronco ela dançou dentro do círculo formado pelos nativos, soltando gritos e mais gritos horrendos, seus olhos revirados e seus dentinhos de cavalo mordendo a madeira. Apesar de todo a maldição que representava, não chegava a um metro e meio (de pura maldade se vocês querem saber). Foi no tempo da dança da fertilidade que surgiu Don Hills, Ray Ann e, por incrível que pareça, Rose Nilde, que afirmou estar amarrada lá há tanto tempo que nem fazia ideia de como a levaram até ali. Don Hills usava um facão para cortar-me as cordas, e repetiu o procedimento em Pietro e em Fábia, e no único marujo sortudo restante, que revelou-se mais tarde uma garota chamada Augusta Decomté que embarcara disfarçada no cais. Aquilo me fez rir por um instante, mas só por um instante, que foi quando a besta fera voou em nossa direção de pernas abertas, atingido Pietro bem na testa, deixando ali a sua marca, de geometria complexa e infernal, a geometria das suas partes íntimas! XD.
Ele desmaiou na hora, enquanto a criatura voava sobre as nossas cabeças desferindo outros ataques, nós reagíamos com pedras e paus, que a atingiam mas não causavam dano sequer. Foi quando ela pousou outra vez, desta vez no alto da cabeça da estátua, e lá ela realizou o ato crucial. Arrancou a perna com um estalo poderoso que ecoou em todas as direções. Fábia Paola gritou. A criatura enfiou o seu membro arrancado dentro da bolsa de marsupial que tinha, e lá a coisa começou a tomar forma até que em poucos segundos uma cabecinha preta de grandes olhos inchados e tufos de cabelo de palha surgiu, guinchando. Ray Ann se vomitou. Era outra vez hora da besta se alimentar. Corremos em todas as direções, pela escuridão, procurando uma saída ao mesmo tempo em que tentávamos escapar da criatura, até que Ray Ann gritou: achara um túnel ali próximo. Corremos todos na direção dela, tendo a besta faminta em nosso encalço, coração a mil, o ar entrando e saindo numa velocidade impossível. Lançamo-nos túnel abaixo, para o desconhecido, e fomos desembocar exatamente ao pé da pirâmide, no primeiro degrau, não me pergunte como, pois eu perdi metade da ação quando estava de olho fechado.
Corremos a mata durante horas, fugindo de feras e monstros, reais ou imaginários, gritando e chorando por muito tempo, criando em nossas cabeças a imagem da coisa nos seguindo aonde quer que íamos. Imagens que por minutos pareciam muito reais, mas logo se dissipavam. Pela manhã, já cansados, não sabemos como, a cidade amaldiçoada surgiu ensolarada diante de nós, e dentro de uma loja abandonada dormimos o dia todo, sobre roupas empoeiradas e balcões velhos, usando sacolas como travesseiros e casacos como lençóis. Ao anoitecer, quando despertamos, ainda estávamos muito abalados, mas tomamos banho num banheiro aos fundos da loja abandonada, vestimos roupas limpas e voltamos para as ruas em busca do cais por onde chegamos àquele lugar. Nenhum de nós pronunciou única palavra até então, desde que escapamos da morte certa. Os nativos não estavam em suas barracas naquela manhã. Me arrepiei e chorei durante horas, imaginando que eles foram devorados noite passada, dentro da câmara redonda onde passamos momentos aterrorizantes de quase-morte.
Fizemos todo o percurso pelo estranho e extenso trapiche. Nosso barco ainda estava lá, e a maré estava cheia desta vez. Pietro foi quem conduziu o barco, sentado lá atrás, e dormimos mais um pouco após termos a certeza de que saímos finalmente do nevoeiro que cerca a Baía da Mortalha. Chegamos ao vilarejo ribeirinho e fomos recebidos com grande surpresa e festa por eles, voltamos vivos, mas não tivemos coragem de contar a eles o que acontecera nos dois dias em que estivemos desaparecidos. Vó Darcy sabia o que havia acontecido, e ficou feliz de rever Rose Nilde, a mesma estava devendo dois dobrões a ela desde a última vez em que as duas se viram. Não sabíamos como voltar, pois ninguém ali entendia de navegação, por isso passamos longos dois meses vegetando naquelas terras estranhas a nós, sofrendo e revendo em pesadelos mortíferos tudo o que nos aconteceu. As imagens dos mortos me atormentavam a cada noite, era maçante.
Até que surgiu em nosso caminho, enviada por Deus, uma embarcação comercial, e nela nós voltamos para o mundo. Combinamos então de não contar a ninguém o que havia nos acontecido naquele lugar maldito, e decidimos sequer mencionar a existência dele, de modo que escapamos por pouco e devíamos ao menos isso ao nosso bom Deus, esconder dos outros a existência da Baía da Mortalha. Prometemos também jamais nos revermos outra vez, para evitar sofrimentos futuros e lembranças indesejáveis. Jamais voltei para Nova Iorque, e até hoje todos os meus velhos amigos pensam que morri. Se já não estão mortos... Década de 20 já passou a muito tempo...
Vivi no Brasil por alguns anos, e descobri que a Baía da Mortalha fazia parte daquele país quando percorremos a costa... No final das contas acabei vindo parar na Franco-Itália, e aqui em Devian vivo no Palacete Theodoro construído por um conde há muitos anos. Esse lugar me dá arrepios agora que decidi escrever a minha história. Foi algo traumatizante de que jamais me esquecerei. Desde que voltei de lá, nunca tive um sonho feliz, todos são pesadelos horrorosos e já fiz todos os tratamentos que me eram cabíveis. Não era doença. Por sorte não enlouqueci, como Ray Ann que agora mora numa árvore do Central Park. Pietro morreu de doença desconhecida após dois meses de nossa volta, e Fábia Paola vive em Forks, no estado de Washington, EUA. Ela também está começando a pirar. Jura que moram vampiros por lá ;D. Don Hills continua navegando pelos mares, e já viu muita coisa, às vezes me escreve... Rose Nilde também morreu logo depois que voltamos, se atirou no mar e foi pega em cheio pela hélice quando atracávamos na Jamaica...
E assim a vida continua... Assombrada pelo espírito dos mortos em terras desconhecidas, que fomos incapazes de ajugar. Assombrada pelo espírito de Abim'raso, a maldita, que se reproduz a cada seis anos, e que reina eterna sobre a cidade sagrada dela, governando uma nação de homens-morcego... Isso me perturba...
Enquanto isso eu espero a morte vir.
E fico sonhando, sonhos desesperados.
De matas fechadas e pirâmides malditas...
FIM?
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