Naquele dia, o sol amanheceu tão quente quanto em qualquer outro, e a Rosa tão faladeira quanto qualquer outro animado papagaio num dia ensolarado da Amazônia. Na noite passada papai havia saído pelas nove da noite e voltado lá pelas 11 ou 12, o que me deu o apartamento inteirinho só para mim enquanto ele estava fora. Iêda dormia, cansada do Círio, eu pelo contrário aguentei muito bem todos esses dias agitados que tive de 9 a 13 de outubro, já estou praticamente acostumado com dormir tarde e me acordar cedo... Então, quando eu via vídeos sobre assombrações no Youtube, principalmente sobre a maldição do Lobisomem, e lembrava das histórias terríveis que a Camilla havia me contado, aquilo começou...
Era pra lá da meia noite, acredito eu, quando comecei a ouvir os estranhos sons de pedras sendo jogadas contra a porta e a parede do lado de fora do apartamento, no pátio. Eu me arrepiei todinho, lembrando da história do bole-bole [leia a primeira parte de A Wonderful Holiday] enquanto as pedrinhas voavam em direção à porta e à parede, estalando no azulejo do pátio. Me levantei então e abri a porta, gritando: “pode parar com a graça que eu sei que são vocês que estão jogando!” porque eu jurava que as meninas estavam me pregando uma peça, só para me assustar! Mas não, papai estava do outro lado da cerca, lá embaixo, sibilando para eu calar a boca e passar a chave para ele.
Ufa! Não era assombração nenhuma, só o papai querendo entrar! O.o’
Então tudo bem, desci pela escuridão, levei a chave para ele, mas assim que ele subiu, algo inusitado aconteceu: uma pedrinha foi lançada contra a porta no exato instante em que ele fechou, mas lá embaixo não havia ninguém...
Após uma batalha daquelas, conseguiram me botar para fora da cama, e assim, após um rápido banho que tomei, desci as escadas e tomamos café todos juntos como de costume. Mas ao descermos, eu e Iêda vimos que as meninas não estavam arrumadas, ainda estavam de pijamas e muito bem despertas. Perguntamos a elas o porque de não estarem arrumadas, e elas disseram que não iriam, pois tinham de ajudar a Tia Ana com o almoço e a arrumação da casa. Foi então que Iêda e seu poder maligno de persuasão entraram em ação!
Tia Ana, comadre do papai, é conhecida pelas filhas e por todo o Jarí por ser muito dura, direta e decidida. Quando papai chega para almoçar e sobe para a soneca, pode chegar até o Papa às portas dela procurando pelo papai, mas ela não deixa subir alma viva alguma, o que rendeu o apelido de General entre o pessoal da prefeitura. Porém, para comigo e com minha irmã ela não é nada disso que dizem por aí, muito pelo contrário, ela é uma mulher amável, acolhedora, espirituosa e muito engraçada, sem contar que cozinha muito bem [ela precisa ME ensinar a fazer aquele bife! Senhor de Misericórdia!].
Iêda levantou-se da mesa do café e foi até a tia, que estava lavando louça naquele momento, e perguntou a ela porque as meninas não poderiam ir [Camilla e Mimi estavam para aula, por isso não foram], e ela por sua vez repetiu o mesmo que Yara e Lorenice disseram: precisavam ajudar nos afazeres do dia. Iêda pediu mais uma vez, e conseguiu derreter o coração da Tia Ana quando pegou Yara, abraçou-a e disse “Por favor, tia! Elas são minhas amiguinhas!”.
Essa Iêda não vale nada! Como ela conseguiu? Só sei que Tia Ana disse “ta, ta bom, leva elas, aproveita e deixa elas pra lá!”. E então foi uma alegria só, as meninas correram para o quarto trocar de roupa e fomos todos no carro do papai até o cais do campo de futebol, onde sempre rola o festival de verão de Laranjal onde as pessoas se banham. Pois bem, Tio Clal, marido da Tia Ana apareceu logo depois com a lancha [ou voadeira se preferirem] com o símbolo da maçonaria. Demorou um pouco para finalmente partirmos, pois papai resolveu dar um stop para ir buscar a namorada dele e ir ao supermercado.
Nisso ele nos deixou no cais, e embarcamos logo porque ele estava demorando muito, assim Tio Clal dirigiu a lancha até a balsa do bate-estaca, e lá ficamos por um tempo até recebermos o aval para voltarmos ao cais e pegar o papai, que demorou um tempo significativo. E neste meio-tempo, ficamos contando histórias sobre rio, revendo as lendas que contamos a algumas noites e imaginando a reação de minha mãe se visse minha irmã e a mim estacionados no meio do rio...
As meninas ficaram fazendo propaganda da terra delas, direto, dizem que Gurupá é um sonho, doze horas de viagem rio acima, do lado do Pará, fica esta cidade de mais de cem anos. Elas disseram quem existem casas de pedra e de barro lá ainda, do período colonial, e a igreja da cidade é uma beleza também, e estão todos torcendo para que passemos o período de festas de final de ano com eles lá, na terra deles. Fico imaginando se seria uma boa. Realmente deve ser muito divertido bem “aventuresco” algo diferente, algo que vai me fazer sair bem da minha rotina, como foi este dia do passeio da cachoeira...
Papai chegou logo depois, e após um momento desesperador quando soubemos que ele iria dirigindo a lancha, seguimos numa viagem incrível rio acima, vendo cada porto do caminho, cada paisagem deslumbrante e cada vila ribeirinha... Vocês não fazem ideia de como a nossa região é bonita, é algo paradisíaco, algo indescritível. A selva, as águas negras do rio encantador, as extensas ilhas que dividem o rio em braços, a vida borbulha a cada esquina. A mata ali é um ser único, vivo e onipresente, é quase como se o homem nem tivesse chegado a tocar naquilo tudo, a Amazônia é uma joia única e rara. Uma joia viva que canta várias canções ao mesmo tempo, canções que se unem numa única maravilha que nos encanta e seduz.
Tantos mistérios, tantos segredos escondidos, tanta coisa que precisa ser vista. Quem ainda não veio nos visitar não sabe o que está perdendo. Não há palavras para descrever o sentimento que brota na gente, a sensação de fazer parte daquilo, de ser um pedaço minúsculo de um todo. Iêda, Yara e eu até comparamos o passeio no rio até a cachoeira com o percurso que os barcos fazem para chegar até a ilha de Harper na minissérie O Mistério da Ilha, mas eu agora eu acho que não, é algo muito mais grandioso que isso, é uma experiência única. Em imaginar que morei durante tantos anos ali e não vi nada disso... Posso até ter visto, mas eu tinha três anos de idade apenas e não lembro de mais nada.
Exceto da vez em que a maré estava braba e a nossa voadeira quase virou nas águas barrentas de outro rio desses... Nem me lembro onde foi isso, mas lembro que paramos o barco num casebre ribeirinho, e foi a primeira vez que eu vi camarões vivos =D. Mas isso foi há muito tempo atrás... Voltemos ao presente!
Eis que chegamos á cachoeira, e nossa, como tudo ali é belo. Pedras negras colossais descansam na beira do rio, a mata verde e espessa sussurra para a água nervosa que desce do alto em cascatas brancas e cristalinas de bolhas e espuma. A água ali é quente, pois desce das planícies pedregosas do alto rio, e escorre para a grande via das águas escuras em riachos e corredeiras incontroláveis. A primeira coisa que fiz quando a lancha “estacionou” foi escalar um monte de pedras [quentes por causa do sol] que levava até uma pequena, mas poderosa cascata lá no alto, cercada de árvores e pura mata. Aquilo ali me lembrou exatamente, sem tirar nada, o talvez mais popular filme de todos os tempos “A Lagoa Azul”, onde tem aquelas cachoeiras no interior da ilha e etc.
No começo eu só ia entrar na água pela cintura, nem tirar a minha blusa eu quis, mas acabou que eu não resisti à água e fui com tudo, pouco me importando se meu cabelo iria dar muito trabalho depois [e como deu...]. No final das contas, tive de tirar a blusa mesmo porque ela estava ficando amarelada por causa da tonalidade da água, e acabei ficando só de sunga! [que mico...], olha que eu admiro a Beth Ditto e todo aquele negócio revolucionário dela de posar pelada e não ter vergonha de mostrar as suas curvas volumosas e tal, mas eu ainda não sou tão desinibido quanto ela, apesar de admirar muito toda a sua coragem.
Pois bem, eu só de sunga é uma coisa bem parecida com ela na capa da revista LOVE se vocês querem saber, e após a chegada dos barcos turísticos de passeio que sempre fazem visita lá [e que chegaram logo depois da gente], o povo não fugiu à regra e ficou me encarando mesmo. É claro, quem ia perder essa oportunidade de ver um hipopótamo albino ao vivo e a cores? ;O;
De fato, eu as meninas brincamos muito naquele dia, mergulhamos, nadamos contra a correnteza, nos aventuramos nos montes de pedra abaixo da cachoeira, disputamos para ver quem era mais forte contra a força das águas na parte mais rasa. [Detalhe, distendi o músculo da batata da minha perna nessa hora e pensei que nunca mais fosse me mexer, quase morri de dor, mas nem gritei nem fiz nada, por incrível que pareça. Pobre de mim! Chamei por Deus e mundo dizendo que não conseguia mexer minha perna, mas ninguém ligou mesmo! Que horror!] Depois que recuperei metade dos movimentos da minha perna direita, vesti minha calça com muito esforço, depois minha blusa e dei um tempinho dentro da lancha. [o tempinho que houve para todos os piuns do mundo me ferrarem, coisa que eu só vim sentir ontem de manhã, vê se pode? Jurava que tinha voltado da Cachoeira de Santo Antônio sem nenhuma ferrada dos malignos piuns, mas no dia seguinte, haja coçar!].
Antes de tudo isso acontecer, vocês acreditam que eu perdi meus óculos naquelas águas profundas e escuras feito breu? Também, só ideia minha tomar banho de rio usando óculos! E culpa da Iêda também, que ia quase me afogando! É que a Yara nos convidou para atravessar o canal com ela até a queda d’água que ficava do outro lado, mas após constatar que era fundo demais, gritei para Iêda voltar. Porém a débil mental resolve se agarrar em mim, e mesmo depois de eu tentar empurrá-la mil vezes para a parte mais rasa, ela voltava e me levava pro fundo! Ai, que raiva que me dá de gente burra!
No final das contas, uma mão bateu no meu rosto e levou meus óculos para o fundo, mão que a Iêda jura que não foi a dela. E a Yara também jura que nem chegou perto de mim nessa hora. É claro que quando se perde algo no meio da correnteza de um rio pedregoso, escuro e fundo, é certeza de que nunca mais se verá o objeto perdido. O próprio papai disse que àquela altura os meus óculos já estavam no fundo do canal lá ao longe. Mas outra de coisa de sobrenatural aconteceu naquela manhã. Os garotos que trabalham no barco do pai da Yara ficaram sabendo da história dos óculos perdidos, e eles passaram praticamente a manhã toda no fundo do rio, vasculhando. E no final das contas, quando eu já planejava o que eu faria para copiar assuntos do quadro e pegar ônibus, um dos garotos boiou para fora d’água com meus óculos na mão!
Meus óculos são um tesouro enorme para mim, porque é com eles que eu enxergo, e com eles presenciei muita coisa na minha vida. Sem contar que o aro dele é do Rio Grande do Sul, terra que nunca esqueço e que sempre faço questão de relembrar. Enfim, estes óculos são uma parte importante de mim [como meu pen drive] sem eles eu não sou nada. Papai pagou doze reais para os caras e mais três coca-colas do nosso isopor. Enfim, após isso tirei meus anéis, guardei tudo o que tinha de valor na bolsa e terminei de curtir a manhã ensolarada... Até o momento que distendi o músculo e fui comer tucunaré assado na brasa [e na braba], sem tempero nenhum numa fogueirinha no meio das pedras...
Acabei foi mascando meu cabelo, não levo jeito para essa vida selvagem.
Vocês podem até achar uma bobagem da minha parte, mas eu acredito em todas essas lendas de interior, em todas essas encantarias de mata, em toda essa sabedoria antiga das nossas terras, e tenho certeza de que no momento em que pedi ao rio que devolvesse meus óculos, ele viu que meu pedido era sincero e percebeu o quanto eu necessitava deles. Quando se perde algo num rio, algo pequeno como óculos ou um anel, jamais se acha. Mas o rio foi generoso comigo e me devolveu o que era meu. È a prova concreta do que eu disse na primeira postagem dessa série; tudo na mata tem dono, tudo no rio tem dono. As entidades que cuidam das águas dos rios e das árvores e das plantas são muitas, e cabe à elas a decisão de serem generosas conosco ou não. Seja lá que entidade devolveu meus óculos, muito obrigado ;D.
Na volta do passeio paramos no cemitério onde foi enterrado o corpo de Joseph Greiner, alemão que morreu de malária tentando levar o nazismo à Amazônia. Gente ruim morre assim mesmo, das piores doenças possíveis. Vimos uma casa caindo aos pedaços, construída há mais de 100 anos, na época da extração da borracha e do ouro, com janelas antigas de vidro quebrado, sustentada por pernamancas feito palafitas normais, mas de arquitetura puramente europeia. Sinistro...
Ah, e na volta, cada vez que o barco parava eu levava um susto e entrava em desespero, imaginando o que estaria por vir ou o que estaria acontecendo! Que horror, morro de pavor de encalhar no meio de um rio, ainda mais um rio de águas escuras como o Jarí, onde a gente nunca sabe o que tem no fundo... Me arrepio todinho só de imaginar. O problema era que a maré estava seca e corríamos o risco de encalhar a qualquer momento. Yara ia atrás, do ladinho do motor, cuidando da posição da hélice e reparando o momento em que água saísse suja de barro, que significaria que encostamos no fundo do rio. Lorenice vinha quieta o caminho todo, estava morta de cansada. E Yara me surpreendeu por saber tudo sobre pilotagem, motor de lancha, rio e maré, uma verdadeira nata da navegação fluvial! Palmas pra ela! ;D~
Foi então que a hélice bateu contra alguma coisa no fundo do rio, e fomos todos lançados para frente. Nossas cabeças viraram para trás todas ao mesmo tempo. O barco parou. Foi então que ergueu-se da água uma tartaruga enorme, do tamanho de uma ilha! Sua boca era escura e mais profunda que o maior dos fossos, era uma besta monstruosa que... brincadeira gente, não aconteceu nada disso, to viajando aqui... O que aconteceu foi que realmente batemos em algo, mas não sabemos o que. Talvez fosse um tronco, ou uma pedra... Ou realmente uma tartaruga gigante! ;O
Chegamos sãos e salvos ao cais, e para casa todos fomos, tomar banho e descansar. Após o descanso, à noite fomos à pizzaria, não sem antes, é claro, nos reunirmos todos no quarto das meninas para “tricotar”. Camilla é quem sabe dos podres de todo mundo. Adoro essa garota. Nosso santo bateu certinho! Sem comentários mais, fomos andando até o Maré Mansa, e lá papai mandou pedir uma mesa gigantesca pra todo mundo sentar, pois além do pessoal de costume estava a irmã mais nova da namorada do papai.
Yara e Lorenice sentaram perto de mim, e enquanto a pizza não vinha [e até mesmo depois que chegou], eu e Yara ficamos falando sobre as piores coisas que já nos aconteceram, como os MAL-ENTENDIDOS da nossa vida nos prejudicaram. Contei pra ela a história da Garota Box e o surto dela depois que rimos da situação inusitada em que ela se encontrava. Yara disse que já havia lhe ocorrido o mesmo. Umas garotas pegaram-na cantando sozinha, e espalharam pela escola toda que ela era uma doida. O caso dela foi bem pior, porque as garotas fizeram de maldade e sujaram a reputação dela por aí. No meu caso, quem teve a reputação suja fui eu, pois além de a escandalosa ter dado um show todo por causa de uma brincadeira totalmente relevante ainda saiu pela escola inventando coisas sobre mim.
Mas nem por isso a Yara foi na coordenação inventar histórias que ouviu de terceiros. E olha que ela tem 13 aninhos, e já é muito mais adulta que qualquer garota de terceiro ano. Contei para ela que todo mundo em Macapá me odeia [fato~], até aqueles que nunca me viram já me odeiam antes de me conhecer. Papai diz que é tudo coisa da minha cabeça. Não é, todo mundo me odeia mesmo. O pessoal da escola me odeia. As pessoas nas ruas me odeiam. Meus vizinhos me odeiam. Até meu cabelo me odeia [fato2~].
Ela disse que também não é lá muito admirada pelo pessoal da escola...
De barriga cheia, fomos dar uma volta na praça, e fizemos todos a promessa do dedinho de amigos para sempre enquanto íamos de braços dados pela rua. Até fechamos a passagem do papai atrás da gente, fizemos uma corrente para ele não passar. Até porque lá no Jarí não é o que podemos chamar de “movimentado”... Só sei que após esse final de semana maravilhoso, ganhei quatro novas irmãs incríveis, amigas, companheiras, maravilhosas e bonitas.
Meninas, estou morrendo de saudade de vocês!
Nossa viagem de volta demorou muito para acontecer, íamos de manhã, mas o motorista que iria nos levar pela estrada resolveu que só vinha de tarde pela parte de uma e meia. Fiquei super triste de ter de voltar e confesso que chorei em casa antes de dormir.
Chorei por ter uma vida tão complicada, tão confusa, mas tão maravilhosa e cheia de pessoas incríveis com quem posso contar sempre.
Chorei pelo fim do grupo que eu, Brenda, Jamile, Marcus e Raíssa formávamos, e chorei simplesmente por uma confusão de sentimentos que me corrompiam por dentro naquele momento. Inclusive pelo fato de eu não ter visitado a Tia Adma e a Jamile nessa visita ao Jarí, e eu nunca deixo de visitar a família Casseb nem uma única vez. O que me deixou com um peso enorme na consciência e me faz imaginar o quanto a Jamile deve estar puta da vida comigo.
9 de novembro é aniversário dela, tenho de comprar um presentão pra ela... Para compensar essa minha maldade...
“Amo você, você me ama, somos uma família feliz... com um forte abraço e... ESQUECI O RESTO huhuhu’ – by Jamile.”
Era pra lá da meia noite, acredito eu, quando comecei a ouvir os estranhos sons de pedras sendo jogadas contra a porta e a parede do lado de fora do apartamento, no pátio. Eu me arrepiei todinho, lembrando da história do bole-bole [leia a primeira parte de A Wonderful Holiday] enquanto as pedrinhas voavam em direção à porta e à parede, estalando no azulejo do pátio. Me levantei então e abri a porta, gritando: “pode parar com a graça que eu sei que são vocês que estão jogando!” porque eu jurava que as meninas estavam me pregando uma peça, só para me assustar! Mas não, papai estava do outro lado da cerca, lá embaixo, sibilando para eu calar a boca e passar a chave para ele.
Ufa! Não era assombração nenhuma, só o papai querendo entrar! O.o’
Então tudo bem, desci pela escuridão, levei a chave para ele, mas assim que ele subiu, algo inusitado aconteceu: uma pedrinha foi lançada contra a porta no exato instante em que ele fechou, mas lá embaixo não havia ninguém...
Após uma batalha daquelas, conseguiram me botar para fora da cama, e assim, após um rápido banho que tomei, desci as escadas e tomamos café todos juntos como de costume. Mas ao descermos, eu e Iêda vimos que as meninas não estavam arrumadas, ainda estavam de pijamas e muito bem despertas. Perguntamos a elas o porque de não estarem arrumadas, e elas disseram que não iriam, pois tinham de ajudar a Tia Ana com o almoço e a arrumação da casa. Foi então que Iêda e seu poder maligno de persuasão entraram em ação!
Tia Ana, comadre do papai, é conhecida pelas filhas e por todo o Jarí por ser muito dura, direta e decidida. Quando papai chega para almoçar e sobe para a soneca, pode chegar até o Papa às portas dela procurando pelo papai, mas ela não deixa subir alma viva alguma, o que rendeu o apelido de General entre o pessoal da prefeitura. Porém, para comigo e com minha irmã ela não é nada disso que dizem por aí, muito pelo contrário, ela é uma mulher amável, acolhedora, espirituosa e muito engraçada, sem contar que cozinha muito bem [ela precisa ME ensinar a fazer aquele bife! Senhor de Misericórdia!].
Iêda levantou-se da mesa do café e foi até a tia, que estava lavando louça naquele momento, e perguntou a ela porque as meninas não poderiam ir [Camilla e Mimi estavam para aula, por isso não foram], e ela por sua vez repetiu o mesmo que Yara e Lorenice disseram: precisavam ajudar nos afazeres do dia. Iêda pediu mais uma vez, e conseguiu derreter o coração da Tia Ana quando pegou Yara, abraçou-a e disse “Por favor, tia! Elas são minhas amiguinhas!”.
Essa Iêda não vale nada! Como ela conseguiu? Só sei que Tia Ana disse “ta, ta bom, leva elas, aproveita e deixa elas pra lá!”. E então foi uma alegria só, as meninas correram para o quarto trocar de roupa e fomos todos no carro do papai até o cais do campo de futebol, onde sempre rola o festival de verão de Laranjal onde as pessoas se banham. Pois bem, Tio Clal, marido da Tia Ana apareceu logo depois com a lancha [ou voadeira se preferirem] com o símbolo da maçonaria. Demorou um pouco para finalmente partirmos, pois papai resolveu dar um stop para ir buscar a namorada dele e ir ao supermercado.
Nisso ele nos deixou no cais, e embarcamos logo porque ele estava demorando muito, assim Tio Clal dirigiu a lancha até a balsa do bate-estaca, e lá ficamos por um tempo até recebermos o aval para voltarmos ao cais e pegar o papai, que demorou um tempo significativo. E neste meio-tempo, ficamos contando histórias sobre rio, revendo as lendas que contamos a algumas noites e imaginando a reação de minha mãe se visse minha irmã e a mim estacionados no meio do rio...
As meninas ficaram fazendo propaganda da terra delas, direto, dizem que Gurupá é um sonho, doze horas de viagem rio acima, do lado do Pará, fica esta cidade de mais de cem anos. Elas disseram quem existem casas de pedra e de barro lá ainda, do período colonial, e a igreja da cidade é uma beleza também, e estão todos torcendo para que passemos o período de festas de final de ano com eles lá, na terra deles. Fico imaginando se seria uma boa. Realmente deve ser muito divertido bem “aventuresco” algo diferente, algo que vai me fazer sair bem da minha rotina, como foi este dia do passeio da cachoeira...
Papai chegou logo depois, e após um momento desesperador quando soubemos que ele iria dirigindo a lancha, seguimos numa viagem incrível rio acima, vendo cada porto do caminho, cada paisagem deslumbrante e cada vila ribeirinha... Vocês não fazem ideia de como a nossa região é bonita, é algo paradisíaco, algo indescritível. A selva, as águas negras do rio encantador, as extensas ilhas que dividem o rio em braços, a vida borbulha a cada esquina. A mata ali é um ser único, vivo e onipresente, é quase como se o homem nem tivesse chegado a tocar naquilo tudo, a Amazônia é uma joia única e rara. Uma joia viva que canta várias canções ao mesmo tempo, canções que se unem numa única maravilha que nos encanta e seduz.
Tantos mistérios, tantos segredos escondidos, tanta coisa que precisa ser vista. Quem ainda não veio nos visitar não sabe o que está perdendo. Não há palavras para descrever o sentimento que brota na gente, a sensação de fazer parte daquilo, de ser um pedaço minúsculo de um todo. Iêda, Yara e eu até comparamos o passeio no rio até a cachoeira com o percurso que os barcos fazem para chegar até a ilha de Harper na minissérie O Mistério da Ilha, mas eu agora eu acho que não, é algo muito mais grandioso que isso, é uma experiência única. Em imaginar que morei durante tantos anos ali e não vi nada disso... Posso até ter visto, mas eu tinha três anos de idade apenas e não lembro de mais nada.
Exceto da vez em que a maré estava braba e a nossa voadeira quase virou nas águas barrentas de outro rio desses... Nem me lembro onde foi isso, mas lembro que paramos o barco num casebre ribeirinho, e foi a primeira vez que eu vi camarões vivos =D. Mas isso foi há muito tempo atrás... Voltemos ao presente!
Eis que chegamos á cachoeira, e nossa, como tudo ali é belo. Pedras negras colossais descansam na beira do rio, a mata verde e espessa sussurra para a água nervosa que desce do alto em cascatas brancas e cristalinas de bolhas e espuma. A água ali é quente, pois desce das planícies pedregosas do alto rio, e escorre para a grande via das águas escuras em riachos e corredeiras incontroláveis. A primeira coisa que fiz quando a lancha “estacionou” foi escalar um monte de pedras [quentes por causa do sol] que levava até uma pequena, mas poderosa cascata lá no alto, cercada de árvores e pura mata. Aquilo ali me lembrou exatamente, sem tirar nada, o talvez mais popular filme de todos os tempos “A Lagoa Azul”, onde tem aquelas cachoeiras no interior da ilha e etc.
No começo eu só ia entrar na água pela cintura, nem tirar a minha blusa eu quis, mas acabou que eu não resisti à água e fui com tudo, pouco me importando se meu cabelo iria dar muito trabalho depois [e como deu...]. No final das contas, tive de tirar a blusa mesmo porque ela estava ficando amarelada por causa da tonalidade da água, e acabei ficando só de sunga! [que mico...], olha que eu admiro a Beth Ditto e todo aquele negócio revolucionário dela de posar pelada e não ter vergonha de mostrar as suas curvas volumosas e tal, mas eu ainda não sou tão desinibido quanto ela, apesar de admirar muito toda a sua coragem.
Pois bem, eu só de sunga é uma coisa bem parecida com ela na capa da revista LOVE se vocês querem saber, e após a chegada dos barcos turísticos de passeio que sempre fazem visita lá [e que chegaram logo depois da gente], o povo não fugiu à regra e ficou me encarando mesmo. É claro, quem ia perder essa oportunidade de ver um hipopótamo albino ao vivo e a cores? ;O;
De fato, eu as meninas brincamos muito naquele dia, mergulhamos, nadamos contra a correnteza, nos aventuramos nos montes de pedra abaixo da cachoeira, disputamos para ver quem era mais forte contra a força das águas na parte mais rasa. [Detalhe, distendi o músculo da batata da minha perna nessa hora e pensei que nunca mais fosse me mexer, quase morri de dor, mas nem gritei nem fiz nada, por incrível que pareça. Pobre de mim! Chamei por Deus e mundo dizendo que não conseguia mexer minha perna, mas ninguém ligou mesmo! Que horror!] Depois que recuperei metade dos movimentos da minha perna direita, vesti minha calça com muito esforço, depois minha blusa e dei um tempinho dentro da lancha. [o tempinho que houve para todos os piuns do mundo me ferrarem, coisa que eu só vim sentir ontem de manhã, vê se pode? Jurava que tinha voltado da Cachoeira de Santo Antônio sem nenhuma ferrada dos malignos piuns, mas no dia seguinte, haja coçar!].
Antes de tudo isso acontecer, vocês acreditam que eu perdi meus óculos naquelas águas profundas e escuras feito breu? Também, só ideia minha tomar banho de rio usando óculos! E culpa da Iêda também, que ia quase me afogando! É que a Yara nos convidou para atravessar o canal com ela até a queda d’água que ficava do outro lado, mas após constatar que era fundo demais, gritei para Iêda voltar. Porém a débil mental resolve se agarrar em mim, e mesmo depois de eu tentar empurrá-la mil vezes para a parte mais rasa, ela voltava e me levava pro fundo! Ai, que raiva que me dá de gente burra!
No final das contas, uma mão bateu no meu rosto e levou meus óculos para o fundo, mão que a Iêda jura que não foi a dela. E a Yara também jura que nem chegou perto de mim nessa hora. É claro que quando se perde algo no meio da correnteza de um rio pedregoso, escuro e fundo, é certeza de que nunca mais se verá o objeto perdido. O próprio papai disse que àquela altura os meus óculos já estavam no fundo do canal lá ao longe. Mas outra de coisa de sobrenatural aconteceu naquela manhã. Os garotos que trabalham no barco do pai da Yara ficaram sabendo da história dos óculos perdidos, e eles passaram praticamente a manhã toda no fundo do rio, vasculhando. E no final das contas, quando eu já planejava o que eu faria para copiar assuntos do quadro e pegar ônibus, um dos garotos boiou para fora d’água com meus óculos na mão!
Meus óculos são um tesouro enorme para mim, porque é com eles que eu enxergo, e com eles presenciei muita coisa na minha vida. Sem contar que o aro dele é do Rio Grande do Sul, terra que nunca esqueço e que sempre faço questão de relembrar. Enfim, estes óculos são uma parte importante de mim [como meu pen drive] sem eles eu não sou nada. Papai pagou doze reais para os caras e mais três coca-colas do nosso isopor. Enfim, após isso tirei meus anéis, guardei tudo o que tinha de valor na bolsa e terminei de curtir a manhã ensolarada... Até o momento que distendi o músculo e fui comer tucunaré assado na brasa [e na braba], sem tempero nenhum numa fogueirinha no meio das pedras...
Acabei foi mascando meu cabelo, não levo jeito para essa vida selvagem.
Vocês podem até achar uma bobagem da minha parte, mas eu acredito em todas essas lendas de interior, em todas essas encantarias de mata, em toda essa sabedoria antiga das nossas terras, e tenho certeza de que no momento em que pedi ao rio que devolvesse meus óculos, ele viu que meu pedido era sincero e percebeu o quanto eu necessitava deles. Quando se perde algo num rio, algo pequeno como óculos ou um anel, jamais se acha. Mas o rio foi generoso comigo e me devolveu o que era meu. È a prova concreta do que eu disse na primeira postagem dessa série; tudo na mata tem dono, tudo no rio tem dono. As entidades que cuidam das águas dos rios e das árvores e das plantas são muitas, e cabe à elas a decisão de serem generosas conosco ou não. Seja lá que entidade devolveu meus óculos, muito obrigado ;D.
Na volta do passeio paramos no cemitério onde foi enterrado o corpo de Joseph Greiner, alemão que morreu de malária tentando levar o nazismo à Amazônia. Gente ruim morre assim mesmo, das piores doenças possíveis. Vimos uma casa caindo aos pedaços, construída há mais de 100 anos, na época da extração da borracha e do ouro, com janelas antigas de vidro quebrado, sustentada por pernamancas feito palafitas normais, mas de arquitetura puramente europeia. Sinistro...
Ah, e na volta, cada vez que o barco parava eu levava um susto e entrava em desespero, imaginando o que estaria por vir ou o que estaria acontecendo! Que horror, morro de pavor de encalhar no meio de um rio, ainda mais um rio de águas escuras como o Jarí, onde a gente nunca sabe o que tem no fundo... Me arrepio todinho só de imaginar. O problema era que a maré estava seca e corríamos o risco de encalhar a qualquer momento. Yara ia atrás, do ladinho do motor, cuidando da posição da hélice e reparando o momento em que água saísse suja de barro, que significaria que encostamos no fundo do rio. Lorenice vinha quieta o caminho todo, estava morta de cansada. E Yara me surpreendeu por saber tudo sobre pilotagem, motor de lancha, rio e maré, uma verdadeira nata da navegação fluvial! Palmas pra ela! ;D~
Foi então que a hélice bateu contra alguma coisa no fundo do rio, e fomos todos lançados para frente. Nossas cabeças viraram para trás todas ao mesmo tempo. O barco parou. Foi então que ergueu-se da água uma tartaruga enorme, do tamanho de uma ilha! Sua boca era escura e mais profunda que o maior dos fossos, era uma besta monstruosa que... brincadeira gente, não aconteceu nada disso, to viajando aqui... O que aconteceu foi que realmente batemos em algo, mas não sabemos o que. Talvez fosse um tronco, ou uma pedra... Ou realmente uma tartaruga gigante! ;O
Chegamos sãos e salvos ao cais, e para casa todos fomos, tomar banho e descansar. Após o descanso, à noite fomos à pizzaria, não sem antes, é claro, nos reunirmos todos no quarto das meninas para “tricotar”. Camilla é quem sabe dos podres de todo mundo. Adoro essa garota. Nosso santo bateu certinho! Sem comentários mais, fomos andando até o Maré Mansa, e lá papai mandou pedir uma mesa gigantesca pra todo mundo sentar, pois além do pessoal de costume estava a irmã mais nova da namorada do papai.
Yara e Lorenice sentaram perto de mim, e enquanto a pizza não vinha [e até mesmo depois que chegou], eu e Yara ficamos falando sobre as piores coisas que já nos aconteceram, como os MAL-ENTENDIDOS da nossa vida nos prejudicaram. Contei pra ela a história da Garota Box e o surto dela depois que rimos da situação inusitada em que ela se encontrava. Yara disse que já havia lhe ocorrido o mesmo. Umas garotas pegaram-na cantando sozinha, e espalharam pela escola toda que ela era uma doida. O caso dela foi bem pior, porque as garotas fizeram de maldade e sujaram a reputação dela por aí. No meu caso, quem teve a reputação suja fui eu, pois além de a escandalosa ter dado um show todo por causa de uma brincadeira totalmente relevante ainda saiu pela escola inventando coisas sobre mim.
Mas nem por isso a Yara foi na coordenação inventar histórias que ouviu de terceiros. E olha que ela tem 13 aninhos, e já é muito mais adulta que qualquer garota de terceiro ano. Contei para ela que todo mundo em Macapá me odeia [fato~], até aqueles que nunca me viram já me odeiam antes de me conhecer. Papai diz que é tudo coisa da minha cabeça. Não é, todo mundo me odeia mesmo. O pessoal da escola me odeia. As pessoas nas ruas me odeiam. Meus vizinhos me odeiam. Até meu cabelo me odeia [fato2~].
Ela disse que também não é lá muito admirada pelo pessoal da escola...
De barriga cheia, fomos dar uma volta na praça, e fizemos todos a promessa do dedinho de amigos para sempre enquanto íamos de braços dados pela rua. Até fechamos a passagem do papai atrás da gente, fizemos uma corrente para ele não passar. Até porque lá no Jarí não é o que podemos chamar de “movimentado”... Só sei que após esse final de semana maravilhoso, ganhei quatro novas irmãs incríveis, amigas, companheiras, maravilhosas e bonitas.
Meninas, estou morrendo de saudade de vocês!
Nossa viagem de volta demorou muito para acontecer, íamos de manhã, mas o motorista que iria nos levar pela estrada resolveu que só vinha de tarde pela parte de uma e meia. Fiquei super triste de ter de voltar e confesso que chorei em casa antes de dormir.
Chorei por ter uma vida tão complicada, tão confusa, mas tão maravilhosa e cheia de pessoas incríveis com quem posso contar sempre.
Chorei pelo fim do grupo que eu, Brenda, Jamile, Marcus e Raíssa formávamos, e chorei simplesmente por uma confusão de sentimentos que me corrompiam por dentro naquele momento. Inclusive pelo fato de eu não ter visitado a Tia Adma e a Jamile nessa visita ao Jarí, e eu nunca deixo de visitar a família Casseb nem uma única vez. O que me deixou com um peso enorme na consciência e me faz imaginar o quanto a Jamile deve estar puta da vida comigo.
9 de novembro é aniversário dela, tenho de comprar um presentão pra ela... Para compensar essa minha maldade...
“Amo você, você me ama, somos uma família feliz... com um forte abraço e... ESQUECI O RESTO huhuhu’ – by Jamile.”
[as fotos eram muitas, naum deu pra por as melhores D: coloco outra vez!]
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