Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Draconius Nefastus - Parte 3

Christopher Umbrella,
Ex-Repórter e Antropólogo da Universidade Real Franco-Italiana em 16 de Novembro de 1996.

Aquele porto mais parecia um pântano. Campânulas se enroscavam nas pilastras das palafitas e capim crescia no telhado capenga da maioria das casas. Sapos coachavam alto, era quase impossível ouvir o som da voz da falante Fábia, que não parava quieta um minuto, gargalhava alto a cada piadinha nervosa que fazia, e todos os marinheiros mal-encarados a olhavam feio quando isso acontecia, e por várias vezes vi o nosso capitão Maurice repreender dois ou três moços que puxavam os facões da bainha da calça. A cada sinal de que eles levavam a mão à cintura, eu me preparava para pular na ressaca e afundar na lama negra e barrenta se fosse necessário. Eles eram temerosos e ficavam muito nervosos com as risadas histéricas de Fábia que poderiam atrair qualquer coisa vinda da mata ou mesmo um nativo local com os ânimos mais agitados.Pietro ia à frente, registrando tudo com a sua parca câmera da época, que gravava filmes em preto e branco capturados com a ajuda de uma manivela. Haviam casas com teto de palha, casas pendendo para cair no lago, casas quase cobertas pelo mato e muitos animais selvagens. Uma família de javalis passeava abaixo da ponte aos nossos pés, e uma arara vermelha grasnava palavras estranhas e disconexas como "hort", "crapatu" e "horest". Aquilo me deixou muito mais nervoso que Fábia Paola, e eu estava pensando seriamente em me lançar na lama escura junto aos javalis, mas mudei de ideia ao ver uma enorme sucuri enroscada numa pernamanca que sustentava uma das casas. Algumas crianças e um velho cutucavam a cobra para que ela desenroscasse. Quanto mais andávamos adiante, mais coisas estranhas víamos, e cada vez mais o tempo fechava e escurecia. Anunciava chuva e o ar estava parado demais. Eram aproximadamente sete da noite quando chegamos a mais uma cabana simples onde morava uma velha curandeira.
O teto da cabana estava repleto de itens bizarros e peculiares, até assustadores pendurados por fios de cipó ou barbantes. Tudo lá dentro era uma bagunça só. Lixo se misturava a pertences pessoais e se espalhava por cima de velhas mesas de pau improvisadas e estantes raríssimas de ébano, mas que agora estavam puídas e velhas, pois pertenceram a gerações passadas de colonizadores daquela região. Haviam cabeças encolhidas, havia sapos mortos dentro de jarros, cabeças de macaco, cobras, patas de animais, olhos, asas, penas, lagartos, pássaros empalhados e outras coisas inóspitas e esquisitas, de causar repulsa e medo. A velha era branca, contrário da população local, e fumava tranquila seu cachimbo. Seus olhos eram quase fechados pelas rugas, e sua boca já era quase só um buraco escuro. Alguns mais velhos diziam que ela tinha mais de 300 anos, e que seus avós já a conheciam quando eram pequeninos. Aquilo me deixou deslumbrado, e fiz questão de anotar cada detalhe do que se passou na casa dela.
A velha era conhecida do capitão Maurice, sábia e conhecedora da floresta e das forças ocultas, conversou com ele em particular durante aproximadamente meia hora, e após isso nos mandou entrar para ter com ela. A velha deu um trago no cachimbo, bateu a cinza, olhou o pôr-do-sol pela janela, colocou a dentadura, botou a chaleira no fogo a lenha e disse a nós que atenderia pelo nome de Vó Darcy, apelido dado pelos moradores ao seu nome de batismo Dariana Cyvalda. Muito simpática e carinhosa, contou a nós um pouco da história da vila e um pouco da sua própria história enquanto misturava as ervas noturnas, acendia as velas, fazia as oferendas para os seus estranhos deuses da floresta e enchia alguns potes com água para colocar na janela. Disse a nós que isso era para dar de beber às almas, e o que ela me disse causou arrepio na espinha, o que me fez aproximar mais de Ray Ann, que estava tão vislumbrada e espantada quanto eu. Nossos corações batiam sincronizados, em ritmo de pavor e aventura. Após contar que havia vindo parar ali de barco ainda aos seis anos, quando fora capturada por piratas em um porto na Escandinávia e rodara o mundo na embarcação deles, contou para nós que ali só haviam duas ou três casas na época, e tudo por ali era muito calmo. Mas já, desde aqueles tempos, o além das águas turvas, para lá das bandas do nevoeiro, foi sempre inspiração de temor e atenção. Disse que na sua juventude, fora criada por uma velha enrugada que nem ela, e que quando o nevoeiro de além-águas alcançava a vila, todo mundo apagava o lampião, para não atrair a atenção das criaturas malignas que vinham junto dele.
Quando o nevoeiro vem, ouvem-se gritos, ouvem-se assovios, cochichos nas sombras bem ao pé do nosso ouvido, ouvem-se gargalhadas, grasnados e conversas macabras de vozes corrompidas, grossas de mais ou finas de mais que parecem amaldiçoar a alma daquele que estiver escutando, por isso é necessário que se tape os ouvidos e que se feche as portas. Aquilo me arrepiou mais ainda, eu já tremia dos pés à cabeça e procurava apoio para minha sanidade, certificando-me de que estava cercado pelos meus amigos e por fortes marinheiros que estavam à espreita no segundo cômodo e na entrada. Já era noite quando essa parte assombrosa da história começou, e quando pus-me a imaginar aquelas situações apavorantes de gelar a espinha e enlouquecer a sanidade. Era terrificante.
A velha contou que só atravessou para além do nevoeiro uma única vez, mas lá não seu ouve voz de espírito algum, porque ali eles descansam de barriga cheia. Porém, mais adiante, vê-se vultos brancos redondos na água e vultos negros voando pelo céu. Para mais além há uma cidade em ruínas, na costa do continente. Esta cidade está sempre coberta pelo nevoeiro, e há casas e prédios e templos e ruas e praças e postes e avenidas e hotéis, tudo coberto por mato e musgo e limo, mas ninguém mora lá, porque é amaldiçoado.
Os nativos da tribo kahaphatu vivem no cais, em cabanas improvisadas de lona, folhas e peles de animais, e são um povo muito hostil e amedrontado, por viver à mercê dos espíritos e das criaturas malignas da floresta às suas costas. A chefe da tribo de refugiados atende pelo nome de Rose Nilde, e vou já avisando. Disse a velha. Ela gosta de cantar de galo e se vangloriar por tudo, mas nem nativa é, pois foi abandonada por um grupo de exploradores franceses que não tiveram coragem de ir mais adiante e entregaram-na de oferenda quando fugiram... Pena, disse Vó Darcy, que o barco deles foi engolido metros antes de sair do nevoeiro. Pelo quê, não se sabe.
Aquela declaração fez meu coração saltar feito um touro brabo de testículos amarrados. Eu estava desesperado para voltar ao barco e esperar até a hora da próxima partida, mas Fábia Paola levantou-se e disse que estava disposta a enfrentar o que fosse para descobrir o que há escondido na cidade secreta. A velha Vó Darcy fez uma cara séria e repreensiva antes de dar um sorrisinho sarcástico e sacudir o cachimbo indígena para Fábia dizendo "vá em frente então, menina bonitona, vá! Mas eu já avisei". Assim a chaleira apitou, e a nossa hora acabou. Quando dei por mim já estava caminhando pelas pontes bambas e apodrecidas mais uma vez, correndo risco de escorregar para o negrume abaixo dos meus pés ou fazer desabar toda a estrutura frágil de madeira podre abaixo de mim. Não podíamos mais ver as casas, só os lampiões e os rostos ao lado deles, olhos escuros nos encarando. Dormimos no barco naquela noite. E foi uma noite repleta de pesadelos apavorantes e capciosos que me deixaram tão nervoso a ponto de ter disenteria. Foi uma noite difícil...

Fim da Terceira Parte!

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