Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Capítulo XI – O Casamento Lunar


Puseram-no dentro de uma espécie de ninho, num luxuoso salão paralelo ao salão principal, onde os dervixes dançavam em círculos, levitando no ar, girando como peões. Arrancaram-lhe as roupas à força, entoando cânticos, orando, batendo palmas, rindo ou até mesmo chorando. Deram banho em seu corpo por inteiro, em águas quentes e perfumadas, cheias de sais de banho e ervas aromáticas das montanhas. Enquanto alguns monges lhe esfregavam dos pés à cabeça com folhas roxas e vermelhas, outros dois andavam em círculos ao redor da banheira, com incensários dourados sendo balançados pra lá e pra cá em suas mãos, purificando o ambiente.


Após isto, lhe esfregaram óleos na pele, e todo aquele aroma agridoce agressivo em excesso o fez espirrar muito, e a cada espirro que ele dava, os monges respondiam com “etek ruhu!”, batendo palmas acima da cabeça. Alguma crença particular, pensou. Então lhe vestiram, lhe puseram dentro de uma mortalha branca feita de fiapos e retalhos, muito lembrava as túnicas usadas pelas feiticeiras das montanhas, por fim coroaram o topo da sua cabeça com uma coroa de louros, o enfiaram numa liteira e iniciaram uma verdadeira passeata pelos corredores dourados do castelo, batendo palmas, gritando e cantando ao som dos tambores ritmados e dos sinos e das harpas, um verdadeiro cortejo que levaria a oferenda ao salão do sacrifício, no último andar do templo dourado, casa de Ousama. Frederico queria ter visto o restante do castelo, mas não pode porque sua liteira era completamente vedada, um único buraco no teto pontiagudo permitia que a luz entrasse de forma espectral, caindo sobre ele, seu cabelo escuro e suas vestes brancas de modo delicado, o transformando num pequeno imperador romano.

Enquanto isso, Amélia estava a caminho, cruzando os céus da cordilheira, cercada de montanhas por todos os lados, montada num pássaro cor de madeira, ela cortava os ares numa velocidade incrível, e por vezes batia o queixo de tanto frio. Lá embaixo, o único pedaço de terra visível era a fina estrada de seixo cinzento, o resto era mata fechada, cobrindo o pedregulho das montanhas, seu sopé e sua base. As últimas palavras de Kärla ribombavam em sua cabeça o tempo inteiro, a sua salvação, a salvação da sua família e do seu irmão.

“Apanhe as flores vermelhas que crescem na galhada cinzenta da Corça Magenta, a única raça de animais que ainda não foi devastada das montanhas, e que ainda vive no extremo norte das cordilheiras. Ousama é alérgico a elas, por isso não as devorou como fez com os outros animais que aqui habitavam. Faça-o engolir um único botão da flor, será o suficiente para ele contorcer-se em agonia. Será o momento da sua fuga”

Amélia soube que as grandes campinas se aproximavam quanta a mata foi tornando-se escassa, as árvores foram se tornando cada vez menores e mais separadas, revelando pequenos riachos e corredeiras que desciam dos picos gelados e cortavam a terra formando caminhos e até pequenas lagunas de águas cristalinas numa temperatura abaixo de zero. Mais ao longe, um campo enorme se abria entre duas grandes montanhas, e se estendia até o horizonte sendo fechado por dois picos escuros e íngremes levemente separados, quase gêmeos.

Naquele grande descampado cresciam ervas e flores de todos os aromas e sabores, salpicando o verde claro da relva aqui e ali, o vento batia delicado, acariciando a superfície frágil com cuidado, e as nuvens escuras nos céus tomavam forma e se contorciam, esbarrando umas nas outras. Perto daquele pequeno pedaço de paraíso, as montanhas que o cercavam pareciam mais ameaçadoras do que nunca. Amélia teve a impressão de já ter visto uma paisagem como aquela, e lembrou-se então dos livros de geografia: aquela era a aparência exata da tundra, a última zona antes dos polos terrestres. Começou a nevar fino. Pequenos flocos de neve caíam preguiçosos agora, dançando no ar ao sabor dos ventos, e não havia sinal algum de vida animal.

- Ali! – gritou para o pássaro, erguendo o dedo enluvado para um ponto mais ao longe, quase próximo dos picos gêmeos. Era uma manada, uma verdadeira manada de pequenos veadinhos de pelagem quase rosada, magenta, repletos de pintas brancas discretas que não tiravam o brilho de sua cor original. Alguns já possuíam seus chifres ramificados, verdadeiras galhadas imponentes retorcidas acima da cabeça, mãos abertas com cinco dedos contorcidos clamando para os céus. Outros ainda tinham a cabeça lisa, e a maioria já possuía botões daquela magnífica flor vermelha brotando das dobras e das extremidades de seus galhos, mas só o líder da manada possuía as flores completamente desabrochadas. Lindas, pensou Amélia, e arrepiou-se dos pés à cabeça com aquela visão divina. Aqueles seres não eram só animais, eram entidades místicas protetoras das florestas. Ela sentiu isso, e sentiu que se pedisse com a força de seu coração, eles lhe presenteariam com a flor vermelha que cresce em seus chifres com muita honra. E assim, a manada estancou seu galope e esperou que ela pousasse alguns metros mais ao longe.

A fêmea que guiava a manada observou cada movimento de Amélia e do pássaro cor de madeira que a transportava, desde o rasante até o pouso, parecia desconfiada e atenta ao mesmo tempo. Deu um saltinho para trás quando Mia pulou do pássaro para o chão, batendo com as botas no charco, ficando com aquela vegetação rasteira até a cintura. Ali naquele enorme descampado, o sol batia tímido por entre as nuvens enquanto a neve caía sonolenta, como se despertando, e aquilo coloria os céus de dourado, laranja e vermelho. Era mesmo um pedaço do paraíso.

A grande corça magenta líder do bando galopou até Amélia de modo magistral, quase cerimonial, parecia planar entre a relva e as pequenas flores que ali cresciam, o barulho de seus cascos no chão mal podiam ser ouvidos, eram como as cordas de uma harpa, cada salto seu era o dedilhar de uma bela harpa. Quanto mais próximo aquele ser ficava, mais o aroma doce de morango se intensificava, o sabor de frutas vermelhas encheu sua boca. E então a criatura estava tão próxima que a garota poderia tocá-la. E foi o que ela fez.

Um instante que pareceu horas passou-se enquanto ela admirava aquele ser emanando pureza diante dela, quando decidiu então estender o braço para tocá-lo com delicadeza, sentiu a textura de veludo do pescoço e a temperatura gelada de seu focinho. A criatura tinha olhos escuros e espertos, que a analisavam com muita atenção, como se olhassem lá no fundo da sua alma. Amélia acariciou cada centímetro da cabeça e do pescoço da corça, e por fim abraçou-a. Uma paz indescritível dominou-a por completo, acalmando sua alma e seu espírito em agonia pelo seu irmão, pelo seu pai, pela sua família. Por um instante ela sentiu que o mundo poderia parar de girar, que tudo estava bem e que nada mais importava se não aquele momento.

A corça afastou-se delicadamente e curvou-se para Amélia, deixando seus chifres prateados à altura da moça, numa reverência ao seu coração puro e à bondade contida nele, sentida através daquele abraço. Não houve um momento em que aquele ser parecesse tão lindo quanto naquele. Suas flores vermelhas reluziam como joias, e entre sua galhada fios cristalinos de teia entrelaçavam-se. Uma pequena aranha preta passeava por ali, gentil inquilina dos chifres da corça. Amélia estendeu a mão e apanhou um buquê, enfiou na bolsa de pano que levava à tiracolo e curvou-se também diante da criatura. O céu já escurecia e a neve já caía forte. As outras corças estavam agitadas, uma tempestade vinha por aí, mas Amélia jamais desistiria de salvar a vida de seu irmão.


•••


Houve um momento em que a liteira inclinou-se, e Frederico rolou para trás, batendo com a cabeça na parede traseira de seu transporte, esparramando-se entre as frutas e o vinho que lhe faziam companhia. A sensação era de estar subindo a escada mais longa do mundo, o declive nunca terminava. Por um instante, Fred lembrou-se de dias atrás, quando a subida e a descida do ônibus em ladeiras e colinas desconhecidas fizera o mesmo com ele e sua irmã, dois jovens com tanta vida pela frente, e em sua cabeça, cada mínimo detalhe daquele dia passou-se como um filme... Que vida simples e bela ele levava, uma vida humana tranquila como qualquer outra, e agora ali estava, vivendo tal pesadelo. Teve vontade de chorar, mas se segurou, o beiço inferior se pronunciou e ele tapou os olhos com o antebraço. Foi então que a liteira voltou à horizontal, e a porta foi aberta.

O rapaz lutou bravamente contra as mãos que o puxavam dali, chutou, socou, mordeu e estapeou cada um daqueles monges estranhos e vendados que tentavam tirá-lo de dentro do seu último esconderijo. Havia decidido, não sairia dali por nada nesse mundo, nem no céu nem na terra, não para morrer, jamais! Tentem me arrancar daqui de dentro, seus miseráveis, ele pensou. E manteve-se fixo àquela ideia enquanto o número de mãos dobrava e a força que ele fazia para prender-se a liteira ia se acabando, não era o suficiente. Agarrado à porta, ele já estava com metade do corpo pra fora. Chutou mais alguns monges, se debatendo como um peixe fora d’água, e caiu de barriga no chão. Era a chance, pensou.

Pôs-se de pé num salto e desceu o infinito lance dourado de escadas em desabalada carreira, tropeçando, escorregando, caindo e se levantando, estava quase nu por causa da luta, aquele seu manto branco feito uma mortalha estava rasgado em vários pontos, não havia resistido aos puxões. Faltava pouco para o final dos degraus, faltava pouquíssimo para o piso, para o tapete vermelho, ele precisaria correr como nunca havia corrido, procurar um lugar para se esconder, pensar num modo de sair daquele castelo, se é que havia saída daquele lugar. Seus planos foram arrancados pela raiz como capim quando a língua rosada e asquerosa de Ousama enroscou-se em sua cintura e o puxou para trás com força. A coisa coaxou alto e fez estremecer as paredes do lugar, estava furioso pela tentativa de fuga do rapaz.

Enquanto ele estava imobilizado pela língua musculosa do sapo gigante, os monges lhe amarraram os pés e as mãos, e após isto, ele foi erguido no alto pela língua da criatura enquanto entoava-se um cântico de consagração e louvores, o começo da cerimônia de casamento. Dali do alto, ele teve uma visão panorâmica do lugar. Paredes de madeira escura, um piso perolado e muito bem polido feito de ouro. No centro do salão havia um círculo vermelho pintado no chão, e dentro do círculo vermelho havia uma mão amarela espalmada, exatamente no meio da palma aberta havia um enorme olho, de olhar frio e profundo. A íris fitava o teto eternamente, o que instigou Fred a levantar os olhos para cima. A cobertura era de vidro, toda e completamente feita de vidro, revelando um céu tão limpo e claro que era impossível acreditar estar tão nítido com toda a claridade daquele lugar, proveniente de chamas potentes que ardiam em piras nos quatro cantos do salão.

Lá em cima as estrelas reluziam de forma sobrenatural, brilhavam tão próximas! A sensação era o poder de esticar a mão e tocá-las quando quisesse, ou a possibilidade de elas caírem do céu como frutas maduras caem de uma árvore, bem no meio da cabeça. Pareciam gigantescos diamantes encrustados numa espécie de ônix gigantesco, e isso estava espalhado pelo céu como um manto, entre elas havia um tipo de poeira como açúcar cristalizado derramado no veludo, e cada pontinho minúsculo daquela poeira sideral cintilava como vidro moído, toda aquela luz parecia vir delas e não das quatro fogueiras que ardiam nos quatro cantos do salão.

Frederico foi colocado gentilmente no centro do salão, exatamente em cima da íris do olho gigante. Um dos monges aproximou-se dele com uma adaga, lhe fez um rápido e superficial corte acima da clavícula, de onde o sangue jorrou acompanhado por um berro de dor. O sangue esguichou para dentro de uma taça dourada que foi consagrada pela fumaça do incenso e pelas orações dos monges, e em um cortejo, foi levada até Ousama, na outra extremidade do salão, com seu olhar estrábico sempre apático e amarelo, sem vida, monstruoso.

A ele a taça foi entregue com reverências, e para a surpresa do rapaz, o grande sapo gorduroso apanhou a taça com uma das suas patas dianteiras, exatamente como um ser humano apanha um copo de vinho oferecido por um companheiro de bebedeira. Sua boca em forma de caçapa abriu-se exalando um odor acre estonteante, e o sangue foi lançado lá dentro. O que aconteceu em seguida foi extremamente asqueroso.

Ousama estremeceu após alguns segundos, dos pés à cabeça, cada centímetro de seu corpo gelatinoso vibrou produzindo um estranho som de borbulho. A boca de caçapa abriu-se outra vez, e lá de dentro saiu algo horrendo. Frederico gritou outra vez, talvez pela dor na clavícula cortada, talvez pelo que estava presenciando, ele não sabia, mas aquilo ela extremamente asqueroso. O sapo havia vomitado suas entranhas, uma espécie de bolsa transparente coberta de veias pulsantes, enquanto seu corpo murchava aos poucos. O grande corpo esponjoso e coberto de verrugas estava encolhendo e diminuindo como uma bola furada, desaparecendo numa fumaça verde de odor forte enquanto aquela bolsa, aquela placenta, aquele útero vomitado se contorcia diante de todos. As orações iam mais e mais alto contra o teto de vidro, os monges já dançavam outra vez, girando em círculos pelo salão enquanto os tambores soavam e os mestres de cerimônia batiam palmas, era algo satânico e maligno.

Uma mão branca rasgou a placenta de dentro para fora, e um líquido verde jorrou de lá como muco fervente, caiu no chão com um chiado alto de ovo na frigideira, espalhando bolotas de gordura por todo o local. Mas que coisa horrorosa!

E então Frederico viu a si mesmo, rastejando nu na gosma na outra extremidade do salão, livrando-se da pelanca e do gel verde que o cobria. Ao erguer do rosto solene da criatura, viu-se um sorriso triunfante nele, e quando aqueles olhos fechados foram desobstruídos pelas mãos da cópia, eles abriram-se, revelando estranhas pupilas na horizontal, envoltas pela íris amarela. Os olhos de Ousama, os olhos do sapo. Sua boca abriu-se, e um ruído estranho veio de lá dentro, era a voz, ele podia falar. Ele ia falar.

- Eu... Eu... Eu sou humano!


•••


Houve momentos em que a jovem Amélia sentiu-se amortecer por completo, como se sua mente estivesse por um instante trancafiada num corpo sem vida, uma cápsula dura e congelada, se perdendo na escuridão. As asas marrons do pássaro lutavam bravamente contra o vento forte e o gelo afiado que caía do céu com violência, era uma tempestade dantesca, coisa que ela nunca havia visto na vida. Mas estava presa, estava segura, agarrada às suas últimas forças, presa contra o dorso do pássaro, segurando-se à vida, lutando para não se perder no mundo escuro que se formava ao redor dela. As montanhas ao seu redor haviam sumido, não havia céu e nem estrelas, muito menos chão, ela não poderia dizer o quão alto estava voando, mas podia sentir o beliscar incessante de seu pai em forma de pássaro, aninhado entre seus seios se aquecendo, bicando-a para mantê-la consciente, para que ela não desmaiasse ou mesmo morresse.

Tudo era um grande branco, um grande vazio branco de vento e gelo, vez ou outra, grandes pedras de gelo atingiam suas costas, seus braços, suas canelas, sua testa, com força, deixando o que restava de sua mente quase entorpecida. Ela se perguntava quando aquele inferno iria acabar, perguntava se iria congelar até morrer, perguntava-se se já estava morta. Perguntava-se quando o pesadelo teria fim com o despertar. E quem sabe ela estivesse pagando pelos seus pecados? Quem sabe ela estivesse no limbo? O gelo já cobria o seu corpo quase por completo, ela se sentia um boneco de neve, já nem conseguia abrir os olhos novamente, suas pálpebras estavam amortecidas.

E então a canção começou. Amélia não soube dizer se era fruto da sua imaginação ou se vinha de dentro da nevasca, mas entoava tão bela e doce, tão reconfortante! Por um minuto seu coração se aqueceu outra vez, e ela estava queimando de dentro pra fora, derretendo seu gelo interno, lutando contra a nevasca. Era algo indecifrável e inteligível, parecia estar sendo cantado debaixo d’água, como uma cantina de ninar das sereias, aquilo lhe impulsionava para fora do oceano da morte como uma catapulta de motivação, e em breve ela estaria sobrevoando a superfície. A superfície de seu próprio ser.

A neve parou de cair subitamente, e um enorme vale escarpado de grandes pedregulhos e montanhas pontiagudas abriu-se. Era o fim, o fim daquele mundo, um grande pedaço de terra flutuante, montanhosa, perdida no tempo e no espaço, um vale de rochas infinitas e gelo eterno. Aos fundos da paisagem, estrelas brilhavam tão gigantescas que assustavam a jovem Amélia, e os planetas estavam tão próximos que pareciam móbiles realistas pendurados no teto de um planetário. Cometas e estrelas cadentes cruzavam o horizonte o tempo inteiro, atravessando a névoa e as nuvens que ainda insistiam em vagar nos céus daquele lugar incompreensível e sem atmosfera, mas misteriosamente respirável. Olhar para cima era como observar uma colcha de retalhos toda rasgada, mostrando o colchão que estivera forrando, o colchão espacial do espaço sideral, a colcha de nuvens cinzentas e gordas que ainda expeliam pequenos flocos e cristais de neve.

Exatamente na outra extremidade daquele vale ficava uma montanha, uma montanha azul-perolada no meio daqueles picos cinzentos. Era envolta num brilho sobrenatural, e possuía tamanho e formato incomuns à natureza do planeta terra, era algo saído de algum filme antigo em preto e branco tendo como ambientação as paisagens do planeta Plutão, algo fruto de uma tela de Van Gogh ou coisa parecida, algo indescritivelmente grande. No topo daquela montanha havia um grande palácio, um palácio dourado que reluzia como uma joia coroando o monte, coroando a rainha das montanhas, Auriel.

- Kinkaku-ji! O Templo Dourado! – exclamou Amélia, lembrando-se do que havia visto em revistas, internet e panfletos sobre turismo no Japão. Aquela era uma versão do palácio de Kinkaku-ji em tamanho colossal, como se construído por ciclopes para abrigar monges gigantes. Aquela arquitetura japonesa fascinava Mia e a seduzia de um modo excepcional, ela sempre fora louca por tudo o que tinha origens no oriente, e o modo como casas, templos e palácios eram construídos não escapava a essa obsessão: o modo com as bordas dos telhados eram pontiagudas, o jeito como os dragões adornavam calhas e lajes, as paredes de papel arroz e bambu. Tudo aquilo despertava um fascínio tremendo na garota, e quanto mais o pássaro cor de madeira aproximava-se do templo, mais ela o via crescer diante dela e tornar-se algo de proporções Lovecraftianas.

Tudo aconteceu muito rápido, Mia ainda digeria a paisagem quando o pássaro deu uma guinada inesperada e lançou-se para cima como uma flecha, as asas juntas ao corpo e o bico esticado, pontiagudo, cortando o vendo como uma tesoura furiosa, ela teve de se segurar com força para não escorregar, ele estava subindo à encosta da montanha. E depois, quando deu por si, após à crise de histeria e berros que deu por causa do frio incômodo na barriga e o medo de cair e morrer esfacelada no escarpado do vale, estava praticamente dentro do templo, voando por entre as colunas do balcão de entrada, o pássaro estava dando a volta na construção gigantesca, indo de encontro ao último andar, ao teto de vidro do último andar, contra o qual se chocou com grande estardalhaço e lançou Amélia longe por cima dos pseudo-dervixes.

A reação dos ocupantes do grande salão de cerimônia invadido repentinamente por uma garota voadora e seu pássaro também foi instantânea, eles voaram em cima da bela criatura e imobilizaram-na enquanto os outros providenciavam cordas e amarras fortíssimas para prender a pobre ave. Amélia estava louca, confusa, em surto, mal enxergava direito, não sabia sequer onde estava, não vida nada nem ninguém, seus olhos só procuravam por um alguém, e esse alguém era seu irmão. Suas roupas de frio estavam rasgadas, seu cabelo despenteado e seu rosto sujo de filetes de sangue pelo choque contra a vidraça, mas ela teve força de vontade o suficiente para correr até o rapaz nu que estava de pé no meio de toda aquela gosma verde, ainda um pouco sujo.

- Fred! Fred! – ela correu até ele e abraçou-o – o que fizeram contigo?! O que eles fizeram contigo?! Porque você está sem roupa?! – ela olhou ao redor, viu que pisava nos restos de algo como a placenta de uma cadela que havia acabado de parir uma ninhada de filhotes gigantes. Logo atrás daquele Frederico havia um monte de algo semelhante a estrume borbulhando, algo asqueroso. Ela não aguentou, vomitou por impulso, o voo havia causado esta sensibilidade repentina. Mas fora isso, que diabos estava acontecendo ali?

Os monges já partiam para cima dela, para imobilizá-la, ela agarrou-se ao irmão que gritou de dor. Estava segura aos ombros do rapaz, com as flores vermelho-sangue que cresciam nos chifres da Corça Magenta em mãos. E pela primeira vez desde que chegara ali, ela olhara nos olhos de Frederico. Aquele não era o seu irmão, de modo algum! A expressão não era a mesma, a aura não era a mesma, aquilo que ela abraçava e que se contorcia ao seu abraço tinha uma aura maligna, e estava reagindo ao seu abraço como se o amor fosse mortal, sua face estava retorcida numa careta de olhos fechados, e quando as pálpebras se abriram e as vistas se cruzaram, ela soltou-o de imediato e pulou para trás, apavorada. Os olhos de Fred estavam amarelo-ouro e suas pupilas escuras na horizontal, uma coisa hedionda. Ela gritou, e percebeu que o ombro esquerdo do rapaz – onde ela estivera segurando com força usando a mão direita, a mesma mão que portava o buquê de flores vermelhas – ardia e borbulhava. A queimadura se estendia pelas costas de Frederico, pelo braço, no peito e até no rosto, era alergia, alergia à flor, ele estava reagindo à toxina da flor, uma toxina que só afeta demônios. Aquele não era o seu irmão, definitivamente!

Eis a motivação que Amélia precisava. Ela franziu o cenho furiosa, cerrou os dentes e feito uma felina, voou na criatura que copiava a imagem de seu irmão, esfregando as flores vermelhas em seu rosto, em seu peito, em sua barriga, em seus braços, lavando-o no veneno. A criatura gritava de ódio, uma fumaça vermelha emanava das bolhas que a queimadura formava. Era uma cena assustadora. Os monges conseguiram pegá-la antes que ela o matasse, amarraram-na e amordaçaram-na, jogaram seu corpo junto ao do grande pássaro, e a cerimônia teve continuação, embora a cópia maligna de seu irmão gemesse de dor e a olhasse de modo cruel com aqueles olhos amarelos de pupilas horizontais demoníacas.

Enquanto o culto prosseguia no interior do palácio dourado, e Amélia contorcia-se como uma lagarta nas suas amarras, a lua vermelha surgia lá fora, vinda do vazio, um espectro sangrento que se erguia no horizonte estrelado inexistente. Era o olho maligno de um lobo albino nascendo, atravessando as nuvens, atravessando o espaço. A proximidade daquele enorme astro fez com que grandes pedaços de rocha presos ao chão e às montanhas pela gravidade desprendessem e começassem a flutuar, a levitar em direção aos céus. Os maiores pedregulhos soltavam-se da terra com um estrondo enorme que reverberava pelos cânions como trovão, o som de uma avalanche, um rasgar do que é indestrutível.

- Ela... Está... Surgindo! Ela está vindo! Ela está vindo! – a maligna cópia de olhos dourados balbuciava de braços abertos para o céu, completamente inexpressiva, mas sendo corroído pelo veneno da ansiedade aos poucos em seu interior. O verdadeiro Frederico estava prestes a perder a consciência, seu grito hipotético pelo nome de Amélia saía na forma de um fraco gemido, ele arrastava-se numa poça de sangue, o sangue que escorria do corte nas proximidades da sua clavícula, a mortalha branca agora estava tingida de rubi.

Foi então que uma farpa amadeirada escapou feito uma flecha de dentro do moletom da garota Amélia, voando em direção ao rosto da cópia maligna de Frederico, um tiro do além atingindo certeiro no olho da criatura. Era Dimitri em sua pequena forma de pássaro, lutando para salvar a vida de seus filhos. A criatura rugiu em agonia, e seu urro sobrenatural ecoou pelo templo fazendo tremer do telhado às bases, Fred reconheceu aquele urro, ele já o ouvira pelo menos duas vezes. Aquele era o ódio de Ousama manifestado num som grotesco e gutural. Porém o pequeno pássaro que um dia já fora homem sequer se intimidou, continuou ali voejando ao redor da cabeça de Ousama, bicando com força seu crânio, arranhando seu rosto com ferocidade, um pardal com o espírito e a bravura de uma harpia protegendo seu ninho, a sua cria. A cópia maligna de Frederico gritava, protegendo o rosto com uma mão enquanto usava a outra para espantar a pequena criatura que lhe agredia.

O décimo tapa foi certeiro, pegou o pássaro de mão cheia e lançou-o longe. Amélia gritou. A lua vermelha já estava surgindo através da claraboia destruída pela invasão da garota e da sua montaria marrom, e o aparecimento de seu espectro sangrento causou arrepios e espasmos nos corpos de todas as criaturas, homens, pássaros e demônios que ali estavam, cultuando ou lutando contra o culto demoníaco. A luz carmim da lua infernal banhou o salão dourado e transformou-o num mar vermelho. Um esboço de sorriso decompôs-se da inexpressão de Ousama em seu rosto recém-adquirido.

- VENHA! – gritou o mestre dos monges – VENHA A NÓS, LILITH, O SANGRENTO! DERRAMA SOBRE NÓS O TEU PODER TRANSCENDENTAL! VINDE A NÓS, CRIATURA MILENAR! VINDE A NÓS, SER SEM COMEÇO E NEM FIM, VINDE!


A lua vermelha agora ocupava totalmente o espaço da claraboia, tingiu o céu de vermelho, cada cratera do astro era tão visível e tão próxima quanto o foco de um telescópio em seu corpo antes pálido, agora da cor de um rubi. Um ponto negro surgiu exatamente no centro do astral olho de lobo albino, um grande tremor de terra fez rachar todas as paredes do templo. Os monges estavam em transe, em um êxtase incontrolável, gritando e entoando seus cânticos mais e mais alto, girando com mais velocidade, formando tornados pálidos no salão, peões girados por vontade própria. Os tambores retumbavam mais alto, as harpas estavam enlouquecidas, os gemidos tornavam-se berros.

Frederico já mal enxergava no momento, a sua visão estava tão baça que ele sequer distinguia formas, tudo era um mar tingido de vermelho ao seu redor, não havia rostos, só vozes, vozes que gritavam, riam, choravam e cantavam tão alto que seus tímpanos furiosos se retorciam de agonia dentro dos ouvidos. Fred sentia seu corpo arder em fogo, era o inferno o consumindo de dentro para fora, de fora para dentro. Dois monges aproximaram-se do rapaz agonizante e o ergueram à lua vermelha, consagrando-o e orando em cima dele. O mestre dos monges postou-se à sua frente e em seu rosto e seu peito esfregou o óleo para ungi-lo.

- Eu te declaro, o consorte lunar, pequena criança humana!

Uma ventania poderosa arrebentou o que restava da claraboia, o círculo negro que se formou no centro da esfera lunar tornou-se maior, agora mais do que nunca lembrava um enorme olho vermelho, com sua pupila escura dilatando conforme a força dos ventos tornava-se mais arrasadora. O que aconteceria a seguir seria tão estranho e perturbador que Frederico jamais saberia descrever o que vira, talvez sequer lembraria, mas teria pesadelos com aquilo para o resto das noites de sua vida: uma enorme serpente negra desceu do olho no céu, silvando com sua língua bifurcada. Ela veio em espiral e caiu no chão com a leveza de uma pena, diante de Frederico que estava tão tonto, tão perdido entre a realidade e a fantasia que a esta altura não possuía noção nenhuma do perigo que corria; ele simplesmente ficou ali, parado, ajoelhado diante da serpente negra que o observava tão profunda e analiticamente com seus olhos vermelhos mortais, e em sua situação ele a via tanto como um demônio quanto como um anjo, vindo do céu ou do inferno, para sua salvação ou danação. Ela abriu sua bocarra para ele e avançou contra seu corpo, atravessando-o como uma força invisível, um espasmo esporádico, um fantasma tentando atingir a carne, a existência.

Enquanto o longo corpo da serpente negra o atravessava, Frederico teve o vislumbre dos últimos minutos da vida de um deus, um deus tão antigo e tão poderoso que a simples consciência de sua existência fazia vibrar cada átomo de seu corpo. Na visão, ele era o próprio deus, e sentia a sua dor e a sua alegria, sentia sua existência vazia e sua busca eterna pela compreensão da existência própria, sentia o peso das eras sobre as costas e todo o poder e conhecimento acumulado fluindo pelos seus neurônios como rios poderosos. De onde vim? Para onde irei? Porque estou aqui? Estas questões perturbavam aquela criatura como um carrasco impiedoso, perfurando a sua alma com lanças e adagas, torturando-o e fazendo-o chorar internamente enquanto seu branco rosto de porcelana permanecia impassível e impiedoso. Vendado pela renda vermelha.

Na visão de Frederico, havia muita fumaça e muitos incensos acesos, havia tochas e pessoas dançando vestidas em estranhas roupas alegóricas orientais, remetendo à antiga china, ao antigo Japão, à antiga Pérsia, maquiagem pesada e grandes coroas floridas, quimonos estampados e cheiro forte de mirra. Havia uma grande janela triangular para um mundo em guerra, um mundo fantástico, uma pintura de Bosch viva, com sereias aladas voando pelos céus e animais descomunais lutando entre si enquanto figuras brancas semelhantes a humanos – mas que não o eram – corriam por entre as árvores e as pedras. Aquele deus iria destruir este mundo fantástico! Aquele círculo mágico riscado no chão, aquelas pessoas dançando em círculos ao redor dele, aquilo era um ritual de destruição. Porque eles estavam em guerra, numa guerra que havia durado tempo demais, e estava chegando às portas do palácio dos deuses! Sua criação, seus filhos, tomados por uma sede de poder, queriam dominar Babel. A MINHA BABEL, rugiu a voz em sua mente.

- O que você pensa que está fazendo, irmão?! – uma nova criatura surgia das sombras, reluzindo como o sol, cachos de um anjo e olhos de um diabo.

Foi tudo rápido demais, a língua era estranha e desconhecida, o que aconteceu a seguir o atingiu em cheio, literalmente. Uma adaga atravessou-lhe o estômago, o estômago do deus, e seu corpo naquele mundo esfarelou-se, e seus restos tornaram-se aquela enorme serpente negra. O espírito de Lilith, O Rei dos Monstros.






2 comentários:

  1. AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHH
    AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHH
    AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH
    AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHH
    AI
    AI

    i.i
    CHOREI, GRITEI, ARREPIEI.
    Esse capítulo é um frenesi erótico do bizarro e do místico
    *----------------------------*


    +1 EI POVO, leiam a continuação em:

    http://www.soldeandrew.blogspot.com

    ResponderExcluir

E então? O que achou?