Por um tempo, Dimitri tentou entender o que havia acontecido. Ali, caído, logo abaixo da primeira janela da casa, a janela do quarto da frente, ele tentava organizar as ideias de modo a não enlouquecer ou fazer alguma besteira. Sua vista estava turva, tudo era borrão de luz e cor. Ele ainda sentia o bico do corvo gigante envolvendo sua cabeça e lançando-o para o lado como se seu corpo fosse feito de palha, um nada, um boneco de vento. Um brinquedo no bico do corvo. No bico de Geraldine. Era esse o nome da garota, não era? Ele podia sentir a dor lancinante atravessar suas têmporas para furar seu cérebro, isso causava pequenos choques ao mascar, respirar, falar. Teria ele quebrado a cabeça? O barulho do ruflar das asas da criatura ainda ventava em seu ouvido, aquele som pesado de cartas de baralho se espalhando sobre a mesa. E Frederico! Frederico, onde estava?
Levantou-se com dificuldade e lutou contra o escurecimento repentino da vista, que foi seguido por explosões de cores psicodélicas atrás das pálpebras, ele caiu de joelhos e tateou, procurando onde se apoiar. Encontrou pés, e subindo um pouco mais, pernas. Era Amélia.
- Ela o levou – disse Amélia, apática. – a coisa levou ele, voando. – sua voz começava a distorcer. Ela ia cair em prantos outra vez. Mas ela não estava desmaiada há pouco tempo atrás? Como ela se levantou tão depressa? A não ser que as horas passaram e ele nem percebera. Por certo, o dia já ia amanhecendo. O céu perdia sua escuridão aos poucos no raiar de uma nova aurora silenciosa e calada, uma aurora fria como tudo o mais naquele lugar o era. Até a luz do sol era fria como gelo. Os raios solares não tinham nenhum efeito naquelas montanhas verdes, azuis, cinzentas em seus topos, brancas no cume. Cordilheiras cortando um enorme vazio de névoa e nada, como um caminho, uma travessia de um mundo a outro.
- Precisamos... Segui-la... – balbuciou o pai, pondo-se de joelhos. – precisamos... encontrá-la...
- Eu falei que estávamos mortos. Ninguém me ouviu. Ninguém deu à mínima. – gaguejou a moça. Um movimento no céu fosco do amanhecer chamou sua atenção. Era um pássaro. Amélia gritou e se abaixou. Pássaros agora lhe causavam pavor. Vultos pretos nos céus mais ainda. Depois da experiência traumatizante da garota-corvo, Amélia nunca mais seria a mesma. Mas aquele pássaro era bem menor que o corvo gigante, antes Geraldine. Era uma espécie de pintassilgo ou algo parecido. Um pardal ou qualquer coisa com a pele na cor da madeira, ele descia em círculos, e conforme se aproximava do pátio destelhado, ficava maior, maior e maior, até se tornar tão grande a ponto de apavorá-la por completo e fazê-la soltar guinchos altos e estridentes de pavor. Arrastando o pai para dentro de casa com violência. As mãos geladas forçavam movimentos limitados pelo medo, e as pernas doloridas bambeavam tanto pela fraqueza quanto pelo temor. Aquela coisa não ia levar mais ninguém da família! Ninguém!
E então o pássaro pousou, com um rasante, foi parar do outro lado da clareira, perto da saída para a estrada. Ele tinha o tamanho de um pônei, tinha o bico fino e os olhinhos pretos como duas pérolas, as pernas finas como gravetos e seu corpo tão bem desenhado! Era uma graça em tamanho família!
- O que você quer?! – gritou Amélia para a criatura, há metros de distância dela. – Vocês já levaram o Fred, não levaram?! Não estão satisfeitos?!
- Esse... – balbuciou o pai, em sua agonia. A cabeça realmente havia rachado, ele botava sangue pelos olhos e pelo nariz e pelas orelhas. – é o pássaro que te salvou... filha... – e cuspiu uma bola de sangue.
- PAPAI! PAPAI! – guinchou a garota, segurando a cabeça do homem entre as mãos enquanto aninhava-o no colo. – PAPAI! O QUE ESTÁ HAVENDO?! PAPAI!
- Eu... Eu estou morrendo, Amélia! – ele riu, como se isso fosse algo de muito bom. E realmente o era, perante aquele inferno em que sua vida se transformara nesses últimos dois anos. Primeiro todo aquele isolamento, agora seus filhos à mercê de coisas que ele nunca havia visto por ali. Exceto pela grande fera verde que o havia perseguido no meio do mato, logo nos primeiros meses de estadia... Era isso o que ele ia contar a Frederico antes dos gritos começarem... Pobre Fred, nunca saberia o que havia perseguido o pai naquela mata silenciosa.
- PAAAI! – gemeu a garota, beijando a testa do homem entre lágrimas e caretas, seu nariz escorria, seus olhos escorriam, ela estava suja e suada, arrasada.
O pássaro gigante pulou do outro lado da clareira até a entrada da casa, como os passarinhos fazem, espalhando o seixo reclamão para todos os lados. Amélia gritou e tentou enxotá-lo com apenas um braço, enquanto o outro acariciava as ventas amassadas do pai.
- VÁ EMBORA! VÁ EMBORA! ME DEIXE SÓ! – chorava a garota. – ME DEIXE EM PAAAZ! – guinchou, a voz cada vez mais rouca e mais fina, o nariz cada vez mais entupido. Abaixou sua cabeça sobre o rosto do pai, e seus cabelos escuros cobriram as faces do velho com delicadeza, enquanto as duas testas se encontravam dentro da oca capilar que havia se formado pelas madeixas de Amélia ao redor dos dois. Aquele era o universo particular deles. O último momento. O derradeiro momento.
O pássaro ignorou os pedidos da moça e aproximou-se mais ainda. Chiou baixinho e bicou a mão do homem semimorto com delicadeza. O corpo do homem começou a encolher, e isso espantou Amélia, ela gritou e tentou agarrar-se ao pai, que simplesmente desaparecia entre as roupas pesadas de frio. Ela puxou as roupas vazias para si, procurando vestígios do corpo que antes as habitava, ainda havia um pouco de gente lá dentro, um pouco de ser humano, mas ele encolhia cada vez mais e se perdia dentro dos tecidos da calça, da blusa, da camiseta, da jaqueta, ia ficando cada vez menor, encolhendo até desaparecer, e quando Amélia achava que seu pai havia evaporado para todo o sempre, quando seu choro ficou mais forte e mais doloroso porque não haviam mais lágrimas em seu estoque, algo piou dentro do gorro vermelho que o pai usava.
Havia um passarinho ali em seu colo agora, no meio do ninho de tecidos que ela havia formado ao redor de si. E a pequena criatura batia asas e cantava com tanta graça e felicidade que ela não se segurou e começou a rir, rir como se tivesse quatro anos de idade novamente. Enxugou as lágrimas, assoou o nariz e pegou a criaturinha entre os dedos, formando uma concha de mãos ao redor do pequenino com todo cuidado. Esse era o seu pai. Ela beijou a cabecinha do pequeno e ficou ali, a admirá-lo cantar em suas mãos. Ele ensaiou voos, e quando finalmente conseguiu, pairou ao redor do pássaro gigante, sua versão tamanho família.
- Me leve até meu irmão, por favor. – pediu Amélia ao grande pássaro. Ele inclinou a cabeça para o lado, se fazendo de confuso, mas havia entendido muito bem o recado.
•••
Houve um espaço de tempo curtíssimo entre a realidade e o delírio, mas este espaço de tempo se estendeu de tal forma a parecer eras, milênios entre devaneios e visões do mundo ao seu redor e do mundo interior. Frederico viu-se outra vez na clareira, ainda muito pequeno, admirando o grande sapo parado próximo ao amontoado de capim, seu papo lustroso e pegajoso subindo e descendo num ritmo lento e preguiçoso, a íris na horizontal fixa nele, em Frederico, no pequeno Frederico. E então o sapo começou a crescer, a inchar feito um balão, até atingir proporções assustadoras. Então o garoto gritou, e a língua viscosa e rosada da criatura escapou-lhe da boca com o som de um chicote, enrolando-se nele e engolindo-o por completo.
E dentro do sapo havia um mundo, um mundo em forma de serpente cortando um vazio escuro e cinzento, nebuloso. Havia acima de sua cabeça várias estrelas e planetas tão próximos que ele poderia tocá-los, gigantes anelados ou gasosos dançando juntos a uma valsa milenar. E então ele estava caindo em direção àquele mundo, atravessando os planetas, as nuvens de poeira cósmica, as galáxias espiraladas e os aglomerados de pedras congeladas do espaço, as nebulosas coloridas espalhadas no veludo negro como areia preciosa feita de diamante em pó. E conforme ele se aproximava daquela serpente cinzenta que cortava o vazio, ele discernia cores e formas.
Aquilo ali abaixo era uma cadeia de montanhas. Uma cadeia de montanhas de pontiagudos picos brancos e gelados, cobertas por um denso manto verde que seguia em sua extensão até certo ponto, onde a mata começava a ficar escassa e a neve se fazia cada vez mais presente. Onde o ambiente começava a ficar mais escarpado e consequentemente mais perigoso. Frederico estava cada vez mais próximo da cordilheira, caindo no vazio cada vez mais rápido, feito um meteoro pego na armadilha da atmosfera terrestre, e quanto mais próximo ficava, melhor discernia o que havia ali embaixo. E ele percebeu que cortando caminho entre as montanhas havia uma estrada, ladeada pela floresta, uma estrada cinzenta que seguia até o infinito, desaparecendo logo após os montes mais escarpados e cinzentos da cordilheira, no horizonte distante de onde o sol nascia. Era uma paisagem surreal e delirante, completamente indescritível.
Ele entendeu instantaneamente o que era aquilo, era uma ponte entre dois mundos, um caminho cortando o vazio nebuloso abaixo dele, cortando o vácuo cinzento feito de fumaça e nada, a morada dos Espectros. Espectros de corpo disforme e olhos amarelos. Ele sabia que se virasse para trás veria o seu mundo girando no vazio, o planeta terra, o mundo humano, a origem da densa floresta mista que permeava a base e o corpo das montanhas, um eco da natureza real repetido várias vezes e reverberando ao longo da serpente cinzenta da cordilheira. E quanto mais distante as montanhas ficavam do mundo humano, mais escassa a mata ficava. O eco se tornava findo com a proximidade de outro mundo, um mundo distante habitado por seres estranhos, governado por feiticeiros tiranos e bruxas perversas, repleto de criaturas inimagináveis fruto de alguma mente doentia, em constante guerra pelo trono, pelo poder. O mundo de Oráculo.
E então ele alcançou o chão com um baque surdo, acordando do sonho.
Frederico gemeu. Sentia cada centímetro do seu corpo doer e latejar, pulsando como um enorme coração. Sentia muito frio, um frio que ele jamais imaginara sentir em toda a sua vida. Ele não sentia nem as pernas e nem os braços, suas extremidades estavam mortas, desconectadas do corpo, formigando como se milhares de cupins corressem por entre as suas veias, abrindo caminhos paralelos a elas. Espasmos e cãibras dolorosas foram despertando seus membros adormecidos aos poucos, mas a dor era tão lancinante, tão tortuosa, que o fazia ansiar pela morte como um doente em estado terminal. Sentia-se como um frango tirado do congelador, deitado na pia, descongelando para a refeição.
Ele tentou abrir os olhos, mas tudo o que via era um misto asqueroso e irritante de cor e luz que agredia a sua retina de uma forma que o impelia a gritar e se esconder nas trevas, se ele tivesse forças para se mover ao mínimo. Era terrível, terrível demais para suportar. Lágrimas começaram a escorrer do canto de seus olhos e a molhar o tapete vermelho onde ele jazia torto, do jeito que havia caído de encontro às montanhas que cortam o vazio. Ele uivava baixinho, babando, arfando, chamando pelo nome da mãe, do pai, da irmã... Do amor. E isso lhe deu forças para mexer os dedos e forçar a sensação da existência das extremidades pelo cérebro. Ao abrir os olhos de novo, a vista já estava mais clara e mais organizada, e ele pode distinguir cor de forma e se localizar.
Frederico encontrava-se no centro de um amplo salão, com o teto alto, tão alto e tão distante, sustentado por grossas colunas douradas e peroladas. Tudo ali tinha um brilho sobrenatural, um ar de inexistência onírica inacreditável, aquele lugar sequer parecia palpável. O chão era muito bem polido e lustrado, de uma madeira escura e forte, cheirava como recém-cortada. Ele podia sentir as árvores da mata rodeando-o naquele momento. O salão era extenso e retangular, como um corredor para gigantes, foi o que Frederico constatou ao forçar sentar-se e olhar para trás. Intercalando as colunas douradas havia vasos gigantescos, colossais, contando a história da humanidade em belas pinturas: os egípcios, os japoneses, os chineses, os assírios, os persas, os babilônios, os maias, os astecas, os russos, os mongóis, os gregos, os troianos, as tribos solitárias da Oceania. Tudo registrado com uma perfeição impecável. As paredes daquele local eram estranhas, pareciam feitas de papel arroz e bambu como as portas das casas do Japão, tiras de bambu na vertical e na horizontal formavam um gradeado que era coberto com o fino papel arroz.
E o teto? Havia teto? Havia sim, e era um grande espelho que refletia e repetia com perfeição tudo o que havia no chão.
O rapaz deu uma boa olhada ao redor. Aquele lugar tinha um quê de palácio oriental, mas havia também um ar russo na arquitetura e nas cores que dançavam numa sincronia perfeita entre o frio e o quente. Euroasiático, era essa a palavra para aquele salão, para aqueles enormes vasos intercalando as colunas, onde xoguns dividiam espaço com faraós e caciques, dinossauros, aves, florestas e cidades. Atlântida também estava retratada em um dos enormes vasos. E a origem da vida também. Os grandes mistérios explícitos, o delírio dos cientistas, o tesouro dos antropólogos, a loucura dos arqueólogos. Aquele lugar lembrava samurais, gueixas, bambu e incensos, seda, e mariposas de asas felpudas e pesadas.
Mais à sua frente, não muito longe, o salão terminava, a grande caixa de ouro retangular tinha fim em uma enorme porta dupla de correr, onde o luar havia sido perfeitamente representado em seu apogeu. O círculo lunar alvo aparecia completo semicoberto pelas nuvens, parecia iluminar de forma fantasmagórica os degraus de ouro que levavam até ele, um painel dividido no meio pelo limite das duas portas. Havia duas piras em forma de cuia sustentadas por correntes que pendiam do teto, nelas queimavam incensos de várias cores, de todos os sabores, exalando um perfume sobrenatural pelo lugar, uma mistura de aromas inebriante que deixou Frederico um pouco tonto.
As portas se abriram. Frederico sobressaltou-se e ficou a admirar o escuro com pavor. Do outro lado não havia nada se não trevas. E das trevas dois olhos amarelos brotaram, e ao redor deles formaram-se dois corpos opacos e disformes, sombras, cópias mal feitas da humanidade, com pernas, braços, mãos e troncos, mas sem feições ou vida alguma, eram só sombras e nada mais, poderiam ser transpassadas por espadas ou martelos e jamais seriam atingidas. Espectros. Eles deram um passo à frente, um passo para a luz, sincronizados, e a iluminação do local não fez com que os dois vultos desaparecessem, muito pelo contrário, eles afastaram para a esquerda e para a direita, abrindo espaço para a passagem de algo muito grande, algo que só aquele lugar poderia comportar, algo que só poderia passar por uma passagem daquela magnitude.
A coisa no escuro oscilou, e o som de um arrastar asqueroso invadiu os ouvidos de Frederico, que se arrepiou do dedão do pé até à nuca. O mínimo movimento da coisa fazia o chão tremer, era algo realmente muito grande, e parecia borbulhar, pois como plano de fundo ao barulho do arrastar vinha um gorgolejar gutural e o som do escorrer de algum tipo de gel. Ou gosma, pensou Fred, e a perspectiva daquilo o deixou enojado, os pelos de seus braços estavam completamente eriçados, ele era um verdadeiro porco espinho, arrepiado como nunca estivera antes. E ele nunca foi um menino de sentir nojo das coisas, exceto, é claro, de baratas.
Um odor fétido invadiu seu olfato através das narinas dilatadas, aquilo embrulhou seu estômago. Tinha cheiro de peixe e terra, ao mesmo tempo em que lembrava algo pantanoso. Metano ou butano? De qualquer modo, era um gás fétido de decomposição que deixou Frederico completamente tonto, e então aconteceu.
O som reverberou pelas paredes, rachou o espelho do teto e fez chover pequenas lascas sobre o tapete vermelho que levava aos degraus de ouro, Frederico abaixou a cara e cobriu o rosto para proteger do vidro procurando também tapar os ouvidos para aquele som infernal. Aquele som fez vibrar as colunas de ouro e tremer os grandes vasos, provocou forte farfalhar no papel arroz que protegia o interior do salão cobrindo o gradeado de bambu, como se atingido por uma forte ventania. Mas não, aquilo era o som, era o puro som de um coaxar.
E a coisa veio para fora das sombras com um pulinho, e o baque daquela massa de carne verrugosa e suja no chão fez tremer tudo ao redor. Frederico repreendeu o berro que ia dar, tapou a boca com as duas mãos geladas de pavor, estava suando frio, sua testa estava molhada e suas axilas escorriam, seu coração estava tão acelerado que os batimentos pareciam tê-lo dilatado, como se o mesmo tivesse vida própria e naquele exato momento estivesse se arrastando à força para fora do peito. Suas orelhas esquentaram de uma forma que ardiam como se pegassem fogo. Aquilo era o desespero.
Diante dele havia um sapo. Um enorme sapo verde, talvez maior do que um carro, muito maior do que um carro, grande e gordo, com uma coroa de ouro no topo da cabeça, tão mórbido que mal podia se mexer.
Seus olhos eram duas grandes bolas de basquete amarelas reluzentes como duas lâmpadas, entrecortados por uma pupila retangular horizontal negra como ônix, suas pernas grossas e tronchas terminavam em patas atarracadas de cinco dedos finos e desproporcionais ao seu tamanho, dedos longos que mais pareciam garras. Seu corpo parecia uma gelatina de terra, grama e estrume, era uma grande bola, uma massa disforme de verrugas e cistos que fora mal modelada por algum demônio sapeca e jogada à terra para trazer desgraça, aquela coisa fedia a morte e perigo, apesar de seus olhos apáticos e carentes de emoção, ele sequer olhava para alguma coisa, era estrábico, olhar para frente era o mesmo que olhar para duas direções diferentes. Sua pele era verde e muito úmida, viscosa, dava a impressão de aderência adesiva caso fosse tocada, e nela alguns pequenos parasitas se reproduziam. Aqui e ali, bolhas enchiam e estouravam, nas suas pernas, nas suas costas, na sua cara enorme. E seu papo era um grande atrativo: uma bolsa pulmonar gigantesca que inchava revelando filetes de veias roxas grossas e depois diminuía, virando uma massa flácida de pele asquerosa, subindo e descendo feito um balão, fazendo pingar o muco que o recobria por todo o lugar, sujando os degraus dourados e o tapete vermelho abaixo dele.
As duas sombras de olhos amarelos se recurvaram reverenciando-o, e tambores encheram os ouvidos de Frederico. Frederico nunca sentira tanto medo em toda a sua vida, enfim estava chorando, derramando rios de água salgada pelos olhos, cachoeiras que brotavam de dentro de seu coração, de trás da sua retina, fontes cristalinas de emoção eclodindo da montanha de pedra sem sentimentos que Frederico era. Que tipo de ser humano ele era afinal? Sempre dizia-se que a vida toda passa diante dos olhos antes de morrer, e era exatamente isto o que estava acontecendo ao rapaz naquele momento. E a pergunta sempre voltava, era a mesma: que tipo de ser humano ele era? Que tipo de criatura medíocre ele pensava que era?
Nunca acreditara em toda a sua vida no sobrenatural, nunca creu que tais coisas existissem, que tais atrocidades e aberrações povoassem lugares afora da mente doentia humana. E agora ele estava ali, diante da criatura mais feia e mais aterrorizante que ele já vira, dentro do que parecia ser um palácio imperial Euroasiático. E aí a pergunta voltava, sempre a mesma: que tipo de ser humano ele era? Que tipo de criatura medíocre e insignificante ele era? Um homem preso à rotina do dia a dia, preocupado com coisas mundanas, retido aos mínimos detalhes da futilidade, coisas efêmeras e passageiras, coisas totalmente relevantes, nunca teve a mente aberta, nenhuma ambição, nenhuma imaginação, sequer iniciativa ou forças para crer na existência de tais seres, de tais mundos. Como ele pode limitar-se tanto à vida mundana? Como ele pode prender-se dessa forma ao mundo humano? Porque ele não se permitiu viajar, viajar nas possibilidades, dar asas à imaginação, crer, acreditar?
E agora ali estava ele. Diante da última coisa que ele esperava ver em toda a sua vida. Lutando contra o seu raciocínio lógico, lutando contra o que via naquele momento e o que havia aprendido na sala de aula, vivendo a vida pacata do morador de uma cidade esquecida do resto do mundo, uma cidade como qualquer outra. E então Frederico percebeu que essa luta interna estava acontecendo há muito tempo, na verdade, desde o momento em que subiu naquele ônibus. Em que desceu na clareira, em que encontrou as feiticeiras. Aquela era a luta do ser humano, a luta diária da humanidade, dividida para sempre entre o crer e o ver. Mediocridade. Limitação. Era hora de abrir o coração.
E então a boca da criatura pavorosa abriu-se, e filetes de muco e gosma ligaram aquelas abas que eram seus lábios rachados e asquerosos enquanto eles se afastavam. De lá de dentro da sua caçapa bucal, um gás verde escapou, e língua rosada do monstro veio para fora como um verme, uma minhoca gigante. Ela dançou como uma naja ao som de uma flauta, ao redor da cara do sapo inexpressivo, e esticou-se até Frederico, pingando gosma no tapete vermelho impecável. Fred gritou e arrastou-se para trás, fugindo da língua extensível do monstro, ainda toda arrepiado, suado, suas roupas rasgadas, ainda sujas de piche e sangue proveniente das garras do corvo que o trouxera àquele lugar. Geraldine.
Que horror! Que pavor! Que horrenda era aquela língua cor de rosa, que parecia ter vida própria, alcançando-o, tocando-o. E então ele desistiu, jogou-se de costas para o chão, e a coisa entrou por debaixo da sua blusa, e rasgou-a com força. E então o sapo provou da sua pele branca, do seu suor, das suas bactérias humanas, brincou com os seus mamilos rosados, brincou com o seu pescoço, desceu para suas axilas e para os seus braços, lambendo-o, sujando-o de muco verde e fedorento. O rapaz não reagiu, permaneceu deitado enquanto o verme rosado que era a língua do sapo o analisava e o descobria. Para seu espanto repentino, a coisa retrocedeu e afastou-se. O sapo gigante coaxou outra vez.
E os tambores recomeçaram mais altos, acompanhados de gritos e palmas, numa estranha língua desconhecida aos ouvidos de Frederico, que percebeu a origem dos sons: eles vinham de dentro dos vasos! Sim, os tambores, as palmas e os gritos de louvor vinham de dentro dos vasos, como se bruxas estivessem executando algum ritual macabro e proibido ali dentro. Algo lhe dizia que aquela linguagem provinha do árabe, não era o turco das feiticeiras das montanhas, lembrava algo muçulmano, algo do deserto, um misto de africâner e beduíno, ao mesmo tempo em que as entonações pendiam para o hindu. Que coisa bizarra e ao mesmo tempo curiosa! Os vasos cantavam como se tivessem vida!
Mas na verdade não eram os vasos, e sim o que havia dentro dos vasos.
Despontaram de seus gargalhos escuros e perfeitamente redondos chapéus cônicos, com suas pontas levemente arredondadas. Eram pretos, alguns baixos, quase toucas, outros tão compridos e altos que pareciam postes pendendo nas cabeças que se seguiram após o seu surgimento. E quando Frederico deu por sim, viu que homens estavam brotando dos vasos como flores crescem da terra, vestidos em mortalhas brancas, tinham as faces pintadas de branco e os lábios inferiores pintados de vermelho. Seus olhos estavam vendados por rendas vermelhas de onde pendiam sementinhas vermelhas presas delicadamente por fios nas bordas das vendas. Vinham fazendo estranhos movimentos e formando estranhos símbolos com os dedos, com as mãos: triângulos, círculos, estrelas e pássaros.
E viu-se então que eles estavam levitando para fora dos vasos, pousando delicadamente no piso do salão em seguida. Um a um, eles desceram como se por mágica, postando-se um ao lado do outro, de costas para os vasos de onde haviam saído, às margens do tapete onde Frederico jazia imóvel. Homens, de todos os tamanhos, vindos de vários mundos diferentes, sequestrados pelos espectros em noites tempestuosas para servirem ao seu deus misterioso dentro daquele templo, vestidos como os dervixes sufistas do oriente médio, eles começaram a bater palmas ritmadas enquanto os tambores recomeçavam. Um deles – aquele que possuía a mão com o olho no centro desenhada no chapéu. – deu um passo à frente, fez o estranho gesto com as mãos – um triângulo diante do peito, um círculo ao redor do olho direito e um pássaro entrelaçando os polegares – e falou, para espanto do rapaz, em português.
- Saudamos a nossa alteza real, Rei Ousama, O Poderoso, senhor das Terras Proibidas e das Montanhas Cinzentas, senhor dos Espectros e soberano das Cordilheiras, que ungiu e consagrou a oferenda em nome de Lilith, O Sanguinário!
Os outros homens produziram sons estridentes semelhantes aos sons que as muçulmanas fazem quando expressam alegria. Fez-se silêncio. O grande sapo desceu os degraus dourados de forma preguiçosa e sedentária, ofegando e produzindo ruídos de cansaço com a garganta, liberando no ar mais do seu gás verde, e então coaxou mais alto do que nunca, arrebentando as paredes do templo.
- Que comece o Matrimônio Lunar! – gritou o homem.
E as palmas recomeçaram, acompanhando os tambores. Um cântico assustador cheio de sons arrastados, agudos e arrepiantes iniciou-se naquela estranha língua árabe. E eis que eles, que pareciam dervixes, mas não o eram, começaram então a dançar, a girar em círculos no próprio eixo, de braços para o ar, cortando o salão enquanto outros batiam palmas e os tambores do além ribombavam furiosos. Girando como planetas brancos, seus saiões alçavam voo e formavam círculos perfeitos no ar ao redor das suas cinturas, acertando Frederico no rosto por diversas vezes.
O rapaz enfim viu-se perdido no meio daqueles dançarinos giratórios, estando tão tonto quanto eles em sua tentativa de se conectar ao divino, tão confuso, tão desamparado. Pétalas de flores estranhas o atingiram no rosto e óleos aromáticos ungiram a sua pele. Estavam temperando-o, preparando-o para o casamento, preparando o corpo para a oferenda.
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