Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Capítulo VIII – A Família Mimieux e a Visita de Geraldine


- Espera aí, do que vocês estão falando? – o pai cortou o silêncio que se abateu após as duas declarações feitas por seus filhos. Declarações chocantes para uma tarde chocante como aquela. Fez-se mais silêncio.

- Eu não me lembrava, e duvido que você também se lembre. – Frederico fixou seu olhar profundo nos olhos escuros do pai. – quando eu era criança, e falei do buraco na sebe, e falei sobre o que havia do outro lado, e ninguém me ouviu. Foi aqui que eu estive naquele dia.

- Eu também não lembrava, mas no dia em que eu rolei a encosta, quando morávamos no Paraná, eu vi uma trilha que levava até esse lugar... – disse Amélia, os cabelos lisos e escuros completamente desgrenhados, os olhos eram duas luas vazias olhando para o nada, ela estava em transe pelo pânico – E depois quando eu olhei não estava mais lá...

Dimitri não podia ralhar com os dois àquela altura do campeonato, ele sequer lembrava-se do episódio do buraco na sebe, não fazia ideia de onde ficava essa sebe, para falar a verdade. Crianças falam pelos cotovelos quando são pequenas, e muitas vezes inventam coisas para chamar atenção, procuram atrair o olhar atencioso dos pais e prendê-los ali com histórias fantásticas de todo tipo. O fato é que os adultos ignoram as crianças, não dão o mínimo de confiança para o que elas falam. No caso de Amélia, ela não falara nada, sequer comentara o que tinha visto posteriormente, no hospital só balbuciava coisas desconexas a respeito de uma grande borboleta amarela, “a minha borboleta”, ela dizia. Disso seu pai jamais havia esquecido. Acidentes sofridos por crianças nunca são esquecidos por seus pais, eles sempre se lembram.

A floresta estava calada como sempre estivera. Nenhum pássaro piava, nenhum roedor chiava, a brisa não batia, as folhas não farfalhavam. Era um quadro vivo de natureza morta. Intocável na linha temporal. As trepadeiras cresciam silenciosas enroscando-se nas araucárias, nos pinheiros, nas sumaúmas e nos carvalhos, árvores de diferentes regiões, de diferentes países, de diferentes estados, cresciam tão juntas e tão unidas que passavam a falsa impressão de floresta Amazônica. Arbustos carregados de frutinhas e moitas cheias de espinhos jaziam gelados, um ao lado do outro, as folhas lustrosas brilhando sob a luz da tardinha, debaixo do céu nublado, clima gostoso. Havia muitos troncos caídos no meio da mata, e pedras colossais se erguendo do solo através do tapete de matéria orgânica morta, folhas, galhos, sementes e frutas, talvez animais também. Nestes monumentos naturais, o musgo, o limo, e nas áreas mais úmidas, o lodo, cresciam deliberadamente, cobrindo tudo de verde limão, deixando poucos pontos marrons e pretos aqui e ali. Flores gordas e pesadas escapavam de seus ramos pendendo para fora das moitas, das árvores, dos troncos. Papoulas, Orquídeas, Violetas e Margaridas silvestres no meio do mato alto. Selva mista insondável. O crepúsculo se aproximava.

- Papai, me abraça... – Amélia enfim saiu do transe, seus olhos já marejados, seu lábio inferior se pronunciando num biquinho rosado e molhado, a boca já torta, o choro ia começar. Ela uivou com o rosto escondido no ombro do pai, junto ao tecido do casaco. Chorou como há muito tempo não chorava, se lembrando das mãos negras, dos olhos, das bocas na escuridão, cheias de dentes afiados ou não.

Frederico era uma estátua inexpressiva ainda, parado, olhando para o mundo calado ao redor, tentando captar o mínimo ruído, o menor movimento no mato, ao redor da casa, no céu ou na terra, entre os cascalhos. Seu coração batia violentamente contra as costelas, o ar gelado da montanha entrava e saía dos seus pulmões como farpas afiadas de gelo. Ele suava frio. Estava entrando em desespero. Aquilo era a loucura. A loucura humana. Um pássaro gigante havia salvo sua irmã da morte e sumido entre as nuvens. Que diabos aquilo queria dizer? Que diabos de lugar era aquele?

Frederico começou com lágrimas, escorrendo pelos cantos dos olhos e descendo pelo seu pescoço branquelo cheio de sardas. E então uma careta se formou, sua boca entortou, e algum tipo de monstro se revirou em seu peito, se contorceu pela sua garganta e lutou para sair na forma de um som. Suas cordas vocais vibraram furiosas à passagem da criatura. Era um urro. Ele tinha um urro preso no coração, e precisava soltar aquilo com toda a sua força. Abriu bem a boca, escancarou sua garganta pra cima e gritou o mais alto que podia.

- AAAAAAAAAAAAAAAAAAAARRRRRRRRRRRRRRRRRRRGHHHHHHHHHHHHHHHH! – suas veias azuis saltaram da testa, das laterais do pescoço. Seus bíceps brancos e duros como pedra dobrando de tamanho pela força do ódio pela incompreensão. Suas pernas arquearam e retesaram, seus ombros recurvaram pra frente, e ele pareceu bestial. Um homem louco. Era isso o que ele era.

Em resposta ao seu urro, algo rugiu além das montanhas, e o som ecoou feito um trovão pela floresta, fazendo as árvores encolherem de pavor e os galhos vibrarem. Pela primeira vez, os olhos humanos dos três Mimieux viram a floresta se mexer. Uma ventania atravessou a clareira com uma força avassaladora, sacudindo os galhos com ferocidade e arrancando suas folhas mais velhas. As árvores gemeram de pavor, e Frederico poderia jurar que ouviu vozes no vento, lamentos e choros, pedidos por clemência e misericórdia. Ele não duvidaria da origem daqueles lamentos. Jamais duvidaria da existência deles.

Após isto, eles entraram.

Tomaram banho

Vestiram-se

Sentaram à mesa da cozinha.

E ao primeiro gole do café preparado de emergência por Dimitri, a ventania lá fora recomeçou, audível naquele silêncio mortal.

- Como você sabia que nada podia entrar? – Fred cortou o silêncio. Amélia levantou seus olhos vermelhos e inchados para o irmão, sua mandíbula pendia. Ela parecia retardada pelo efeito de alguma droga. Nunca vira a irmã tão mal.

Dimitri continuava com os olhos fixos no líquido preto do café, soltando fumaça.

- Como você sabia que nada podia entrar? – Fred repetiu a pergunta. O pai levantou a cabeça vagarosamente.

- Eu fui perseguido.

Fez-se mais silêncio. Um silêncio de espanto.

- Perseguido? – indagou Fred, duvidoso.

- Alguma coisa me perseguiu... Eu estava caçando...

- Caçando?! Mas aqui não tem animais! – Fred aumentou sua voz em algumas oitavas.

- Sim, mas antes eu não sabia disso, isso foi logo nos primeiros dias, à tarde... Eu fui um pouco mais longe do que o comum... E algo começou a me perseguir... – as pausas dramáticas que Dimitri fazia irritavam os nervos já aflorados de Fred de uma maneira louca, ele queria socar tudo, destruir, pisar, esmagar, correr como nunca havia corrido. Ele estava furioso.

- Que... – começou ele, entredentes, controlando a raiva. – algo?!

Amélia recomeçou a chorar, suas lágrimas salgadas e pesadas caíam no café como pingos de adoçante melancólico. Foi quando os gritos começaram, guturais, na noite escura, do lado de fora, vindos do topo das árvores, do meio das moitas, de trás das pedras, de dentro das trevas. Amélia escorregou para debaixo da mesa e tapou os ouvidos com toda a força e chorou alto. O pai desceu para junto da filha e abraçou-a forte, tentando acalmá-la com palavras meigas e doces, chiados entredentes e beijinhos. Frederico continuou lá em cima, sentado, olhando para a parede, olhar frio como gelo e duro como mármore. Os gritos eram como os pios noturnos das aves de rapina, intercalavam-se por espaços cada vez mais curtos de silêncio, algumas vozes queriam dizer alguma coisa, outras eram apenas sons rasgados na noite, urros de pavor, tortura, feito pessoas sangrando nas masmorras, homens morrendo em cadeiras elétricas, mulheres sendo violentadas. As vozes eram grossas, finas e por vezes agudas, algumas tão grossas que pareciam leões ou ursos rugindo, mas quando o balbuciar gutural e alto começava a formar palavras, aí o desespero de quem estava dentro da casa aumentava.

- Estão tentando nos fazer ir para fora. – disse Fred, frio e sem nenhuma sensibilidade. – estão tentando nos meter medo. – as lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto outra vez.

Os gritos mais grossos arrepiavam, e as vozes mais agudas agoniavam. Era como se uma cidade estivesse em chamas lá fora, e os habitantes dela estivessem presos em suas casas, morrendo lentamente, consumidos pelas chamas, queimando de fora pra dentro, tostando no inferno feito churrasco e gritando por socorro, por clemência. Um grito mais alto parecia ter vindo de uma das janelas, estava tão próximo que poderia ter vindo de dentro da casa. Este fez Fred oscilar em sua frieza e saltar de leve para o lado, de susto. Agora eram gritos e assobios, longos, curtos, de todos os tipos, intercalando os gritos das almas torturadas nas trevas.

E então tudo parou. O pai saiu do esconderijo de debaixo da mesa, mas Amélia continuou lá, ganindo como um animal espancado.

- SOCORRO! SOCORRO! – o gritou vinha da frente da casa, algo sacudia as grades com força. – SOCORRO! POR FAVOR ALGUÉM ME AJUDE!

Dentro da casa, silêncio.

- Malditos... – gemeu Dimitri. Fred estendeu a mão aberta para o pai, pedindo tempo, silenciando-o.

- Não, este está nítido demais. – sussurrou Fred, sério, o cenho franzido, toda a sua atenção voltada para o silêncio – os outros eram confusos, balbuciados, ou simplesmente gritos do além... Esse está nítido demais...

- POR FAVOR! – algo ou alguém chorava alto do lado de fora do gradeado do pátio, batia palmas, sacudia a grade, como uma macaco preso à força numa gaiola – ALGUÉM! ALGUÉM ME AJUDE! EU ESTOU SOZINHA NO ESCURO AQUI FORA! POR FAVOR! ALGUÉM!

Os olhos de Fred esbugalharam, seu queixo caiu, seus músculos retesaram.

- GERALDINE! – disse para o pai.

- Quem?! – indagou Dimitri, confuso, seguindo o filho para a porta da frente, tentando impedi-lo de abrir a passagem, de ir lá fora, tentando segurá-lo. Aquilo era um truque, ele tinha certeza, um truque das sombras tentando enganá-lo. – Não faça isso Fred! Não! Não!

Tarde demais, ele escancarou a porta para o pátio, deixando o ar frio da noite entrar com toda a força, capaz de arrepiar até mesmo os pelos da nuca de Amélia que ainda se escondia embaixo da mesa da cozinha, de ouvidos tapados. Ela cantava algo bem baixinho, para si mesma.

Do lado de fora, após os azulejos azuis, as cadeiras de balanço de ferro enroladas em macarrão colorido azul e roxo, atracada na grade, completamente nua e toda molhada, estava uma mulher. Uma jovem, uma moça, branca como leite, cabelos escuros e longos, muito longos, mistos, em parte ondulados, em parte lisos. Seu rosto era tão fino, seu nariz era arrebitado como o de uma boneca, e sua boca era um botão de rosa minúsculo e vermelhinho. Seus olhos eram duas pérolas negras arregaçadas pelo pavor, como uma deusa da noite que caíra de seu trono e estivera vagando no mundo mortal em busca da sua nova morada.

- GERALDINE! – gritou Fred, correndo para o portão, abrindo-o e deixando que a pobre moça caísse de bruços, seus seios fartos em forma de gota amorteceram a queda e se esparramaram no piso frio. Seus mamilos rosados engelharam pelo contato com a superfície gelada. Frederico abaixou-se e virou-a de peito para cima. Ela estava desacordada agora.

- Quem é ela? – perguntou o pai, desnorteado.

- Geraldine, uma garota da minha sala! – explicou, elétrico, medindo o pulso e ouvindo o coração da moça, sangue lhe sujou a orelha direita. Ela ainda estava molhada. – ela teve um ataque de histeria e atacou um professor com a lapiseira semana passada, e foi expulsa da escola!

- O que?! – exclamou o pai. – e que diabos ela está fazendo aqui?! Nua e molhada?!

- E eu lá sei! – guinchou o rapaz, dando tapinhas no rosto da garota. – vamos menina, acorda! Acorda!

- Olhe! Olhe! – o pai agachou-se e levantou as mãos da garota. Os pulsos estavam cortados. – ela se matou!

Frederico ficou estático.

- Se... Matou...

Tudo se ligou então. Os fatos se emendaram como os retalhos de uma colcha.

Geraldine se matou, provavelmente no banho, estava molhada e recendendo a sabonete.

Quem se mata vai para o inferno.

Logo aquele lugar era o inferno.

- Estamos mortos pai – constatou o garoto, mórbido, olhando para o rosto pálido da garota com os olhos vazios. – estamos mortos, estamos mortos, estamos mortos! – levantou os olhos para o velho homem e gritou – ESTAMOS MORTOS, PORRA! – saliva voou em todas as direções.

- Ela está acordando! – afirmou o pai, segurando o rosto da jovem entre as mãos. A garota tossia. E sua tosse foi ficando mais alta, mais forte e mais rouca, até que de seus lábios uma lama negra jorrou nos rostos do pai e do filho. Frederico deu um pulo para trás. A garota abriu os olhos e se inclinou para frente, apoiou-se no cotovelo e tossiu mais, cuspindo mais lama negra.

- Be agudem... – gemeu ela, com a boca cheia daquela coisa negra e viscosa, oleosa e grossa feito petróleo.

Ela postou-se de quatro feito um cachorro e começou a vomitar mais e mais daquilo, logo estava em tudo, em seus cabelos, no seu peito, escorrendo por entre seus seios, descendo por cima dos mamilos, escorrendo pela barriga e se acumulando no umbigo. O modo como a cabeça dela inclinava para frente quando vinha a ânsia era grotesco, parecia que ela iria quebrar-se ao meio a qualquer momento, e então parou. Ela se levantou e olhou para Frederico. Pai e filho estavam estáticos e apavorados, encarando a mulher misteriosa sem reação alguma.

Amélia surgiu na porta e gritou ao ver seu pai e seu irmão ajoelhados no chão encarando uma assombração branca de cabelos compridos, uma estátua de morte e luxúria parada no meio do pátio, entre as cadeiras de balanço coloridas, toda suja de piche.

A garota inclinou a cabeça para trás, algo embaixo da pele do seu pescoço se mexeu de forma grotesca. Amélia gritou de novo. Os cotovelos de Geraldine dobraram ao contrário, quebrando ao meio e estalando alto. Amélia gritou outra vez. O mesmo aconteceu com seus joelhos, dobraram para trás com um estalo alto, fazendo Frederico arrastar-se para trás na velocidade de uma aranha, indo se espremer na grade, observando apavorado à cena da sua ex-companheira de classe Geraldine se deformando ali na sua frente.

O movimento embaixo da pele do pescoço se intensificou, e algo brotou da sua boca aberta, a cabeça tombada para trás concebeu um grosso bico negro e lustroso, sujo de sangue. Amélia caiu desmaiada para trás após seu último berro da noite. O bico começou a grasnar, alto e ensurdecedor. Ao dar-se conta, Frederico percebeu que os braços da garota estavam tomados por longas penas negras e lustrosas que cresciam das suas axilas e da longa extensão da sua pele, e logo todo o seu corpo estava coberto por elas. Penas pretas e longas, uma plumagem havia lhe crescido sobre a pele.

Escamas brotaram da pele de suas pernas tortas, escamas amarelas. Cada pé abriu-se com um rasgão em três únicos dedos, e suas unhas formaram longas garras brancas de ave de rapina. Um rabo brotou-lhe do final da coluna vertebral. O misto de humana e ave caiu de costas e se debateu como se tivesse morrido, foi a deixa para que Dimitri se levantasse e corresse até o filho para puxá-lo para dentro de casa. Porém, quando estava à meio caminho do rapaz atirado ao chão, a ave gigantesca, agora já completamente transformada, em um pulo pôs-se de pé e grasnou furiosa, dando-lhe uma bicada que o lançou longe, contra a parede. O bater de asas da criatura arrebentou o portão, o gradeado, o telhado e tudo o mais que protegia o pátio. Era um corvo, um enorme corvo preto com olhinhos de piche e penas escuras lustrosas que à luz brilhavam num arco-íris tridimensional espetacular.

A coisa grasnou e mirou Frederico, bateu asas e carregou-lhe no bico, lançou-o no ar com força e voou ao seu encontro, pegando-o feito alimento na pata direita e voando para longe, para o escuro, para o além. Para onde Amélia e Dimitri jamais poderiam ir.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

E então? O que achou?