Amélia observou à cena estarrecida. Já sem voz – o resultado de tantos gritos – ela gemia roufenha enquanto a serpente negra ultrapassava o corpo do irmão como um turbilhão. Amarrada, ela ainda insistia nessa luta perdida contra as suas cordas nos braços e nas pernas, procurou ajuda no grande pássaro que se ferira profundamente por causa do choque contra o vidro da claraboia. Porém, ao girar sua cabeça dificultosamente para o lado, percebeu que no lugar do grande corpo coberto por penas macias num tom amadeirado de seu companheiro de viagem agora havia o corpo pálido de uma mulher de cabelos curtos e escuros.
- MAMÃE! – ela ainda teve forças nas cordas vocais ferradas para gritar por sua mãe, tentando acordá-la. A mulher estava desmaiada numa poça feita de sangue e penas de um pássaro, mas os cortes profundos eram em suas pernas e peito, talvez ela nem estivesse mais viva. Tinha o rosto tão calmo e pacífico, tão tranquilo, como se estivesse descansando após uma missão cumprida com muito orgulho, e isso desesperou Amélia ainda mais, ela se debateu feito um peixe na rede, gritando pela mãe enquanto chorava. Houve um momento em que a única coisa que se podia ouvir naquele lugar eram os gritos de Amélia. O som dos tambores e das harpas havia parado, os monges dervixes estavam espalhados pelo salão, todos desmaiados, gastaram todos os seus poderes mágicos atraindo a lua para perto do topo da montanha. Agora o astro, já em sua cor normal, reluzia alto no céu, distante de onde antes estivera.
A serpente negra, após atravessar o corpo de Frederico, penetrou no olho incrustrado na mão espalmada pintada no chão e simplesmente desapareceu após aquilo. Todos no salão estavam desmaiados, e os que não o estavam, faziam um silêncio profundo, aguardando. Enquanto isso, nas profundezas do palácio, uma tumba úmida que ocultava aquele velho sarcófago de granito vermelho por muitas eras finalmente sentia o poder entrar em atividade, agitando os átomos do lugar e fazendo vibrar o ar. A serpente desceu o fosso oculto pelo olho incrustrado e caiu leve mais uma vez, agora contra o chão daquela câmara secreta no ventre da montanha, podendo contemplar tudo aquilo que deixara para trás antes de partir.
Uma arte alienígena adornava todo o lugar, esculpida em sulcos nas paredes e em blocos de granito ocupando posições estratégicas ali dentro daquele lugar lúgubre. Porém, de todos aqueles estranhos símbolos em uma escrita antiga irreconhecível e indecifrável, o que mais chamava atenção era o enorme emblema escavado no chão. Como os círculos nas plantações de milho, aquele símbolo gigantesco que ocupava 80% da câmara desde o centro era composto de dois círculos, um menor dentro de um maior, entrecortados e unidos por um triângulo invertido possuindo três esferas em seus três extremos. No centro do triângulo, o enorme sarcófago jazia, com o mesmo símbolo milenar da mão espalmada com o olho no centro em alto relevo desenhado na tampa.
A serpente arrastou-se até aquele baú transcendental, esticando sua língua bifurcada e silvando para o símbolo incrustrado em ouro ali. Aquilo era mais do que um símbolo de boa sorte para a cultura árabe, era muito mais do que o “figree hamsa” dos habitantes dos desertos, aquele era o portal, o portal da serpente negra para o seu mundo, o portal por onde ela deve passar para alcançar seu corpo físico. Mais uma vez, o enorme vulto longo mergulhou contra o olho no centro da palma, atravessando-o para dentro do caixão de pedra, para dentro do baú de granito, para dentro do recipiente que guardava o seu corpo durante todas essas eras. E a sua passagem completa causou um grande tremor de terra que sacudiu a montanha e arrancou grandes pedaços de pedra de seu corpo.
A tampa do sarcófago rachou de cima abaixo, e as duas abas de granito que juntas pesavam quase uma tonelada foram lançadas para cima como meros pedaços de isopor, se esfacelando contra as paredes da câmara com um estrondo ensurdecedor de trovão, de pedra se partindo. Uma estranha voz esgueirou-se para fora da escuridão que ainda era total dentro do caixão de pedra. Uma voz que de tão antiga se tornou inaudível aos ouvidos humanos: apenas os animais e alguns aparelhos eletrônicos poderiam captá-la, mas os ouvidos daqueles que possuem o sangue do dono da voz podem escutá-la como um eco em sua mente, como se o próprio ar falasse quando a língua milenar articulasse as palavras.
- Vivo! Enfim! – longas garras douradas brotaram da escuridão do sarcófago aberto, e acompanhando-as, vieram as grandes mãos de dedos longos e brancos, seguindo-se dos braços, que se apoiaram nas bordas do caixão e trouxeram para fora o corpo empoeirado da criatura mais antiga que já existiu. Aquele que não possui um começo nem um fim, aquele que está na história desde antes de ela começar a ser escrita, aquele cujos olhos nunca foram vistos por ser humano vivente para descrevê-los, aquele que possui o longo manto branco onde os astros dançam, e os cabelos escuros como uma noite sem luar. Lilith, O Sanguinário.
•••
Ousama permaneceu parado, no mesmo lugar em que estivera o tempo todo. Nu, em sua forma humana, cópia idêntica de Frederico, de pé, olhando fixamente para frente, para o vazio. Um olhar anfíbio, o olhar sem sentimentos ou emoções, o olhar de uma criatura rastejante dos brejos lamacentos. A visão de seu estrabismo dava a falsa impressão de que ele estava distraído, perdido em pensamentos, absorto dentro de si mesmo, mas ele era um predador por natureza, estava atento a cada pequeno movimento naquele salão e abaixo dele. E seu peito retumbou ao ouvir o rachar e o explodir da tumba de mármore na câmara secreta, quase um quilômetro abaixo dele, no ventre da montanha. Lilith despertara, enfim! Lágrimas escorreram dos seus olhos dourados como dois faróis iluminando uma noite escura. Se não houvesse a luz das estrelas e da grande lua, agora alva, seus olhos seriam o único foco de iluminação daquele lugar. Dois grandes astros macabros tão distraídos e ao mesmo tempo tão atentos.
- Ele está vivo... – balbuciou o sapo-homem, limpando as lágrimas que escorriam pelo seu rosto, usando os dedos para aparar gota por gota daquele líquido salgado, levando-o à boca para sentir seu gosto agudo. – Mas o que é isso? – ele se referia ao seu pranto. – o que? Eu estou chorando? Eu estou em prantos? – isso o fazia chorar mais ainda, com um enorme sorriso de orelha a orelha, seria uma cena emocionante se uma energia macabra não emanasse de seu corpo falso e tomasse conta do lugar como uma nuvem negra de ambição por poder.
Amélia havia desistido de gritar pela mãe. Ao invés disso, havia se limitado a abaixar a cabeça na poça de sangue e apenas chorar, enquanto os lábios daquela jovem senhora iam se tornando roxos e as suas pálpebras cada vez mais brancas e fundas, um rosto tão cheio de brilho que ia perdendo a vida. De todas as coisas que ela presenciara naqueles últimos e terríveis dias, aquela era a pior e mais perturbadora de todas. Sua mãe havia se tornado um pássaro para salvar sua vida, e ela se sacrificara pelos filhos daquela maneira estranha e sem explicação lógica alguma. Porque ela foi parar ali? Como ela se transformara naquilo? O que havia ocorrido afinal? Tantas eram as perguntas e poucas eram as respostas, Amélia se limitava a arrastar-se em meio a sangue e penas para perto do corpo já gelado de sua mãe. O frio naquele lugar agora era intenso, como no interior de um grande frigorífico, a respiração de cada ser vivo formava nuvens brancas expelidas como fumaça pelas bocas de homens e demônios, como locomotivas a todo vapor.
- Venha – a voz chamou. Uma voz que vinha de dentro, mas que estava em todo lugar, como uma grande consciência voadora, pairando no local. Não foi só Amélia quem ouvira o chamado, Ousama também ouvira, e ficara esperto, levantara a cabeça procurando, esperando. – Venha até mim. – aquele chamado não era para Amélia, ou muito menos para o demônio-sapo, aquela voz chamava por Frederico – Acorde e venha até mim.
O olho na palma gigante pintada no chão rachou ao meio, despedaçando-se. Seus pedaços desceram o fosso esbarrando nas paredes com estardalhaço. Frederico, que estivera desmaiado até então, dava sinais de vida, procurava se apoiar nos cotovelos, nos joelhos, impulsionando-se para cima, tentava se levantar, mesmo que zonzo. Precisava atender àquele chamado, não sabia o porquê, mas sua vida dependia daquilo, e mesmo que o matasse, ele iria até o fim. Mas para a surpresa de Amélia, Ousama saiu de seu estado de letargia, correu até Frederico e o chutou, pressionou sua cabeça com força no chão e cuspiu nele.
- Ele não está chamando por você! Ele quer a mim! Só a mim! – sibilou o demônio, e empurrou o corpo de Fred para o lado. – Estou indo, pai. – fez ele, caminhando até o fosso aberto na palma da mão, lançando-se na escuridão profunda logo em seguida. O que aconteceu a seguir, nem Amélia e nem Frederico presenciaram, mas foi crucial para que aquele pesadelo tivesse seu merecido e tão aguardado fim.
•••
Ousama desceu o fosso com leveza e graça, pousou na profunda escuridão com a sutileza de um gato, seus olhos eram dois faróis nas trevas. Sua chegada foi recepcionada pelo acender repentino das piras que há anos não queimavam no alto das oito colunas gregas que circundavam o grande símbolo escavado no chão, no centro do qual o sarcófago estivera durante tanto tempo.
- Não foi por você que chamei, Ousama – o sorriso no rosto demoníaco do falso Frederico desfez-se imediatamente ao som daquelas palavras, pronunciada pela misteriosa voz vinda do além, ecoando pela paredes, subindo do chão, descendo do céu, rastejando dos lados.
- Mas, pai... – fez o demônio, choroso.
- Você tenta me enganar, Ousama, você tenta me fazer de bobo. – aqueles sons não pareciam pronunciados por uma só voz, mas sim por várias, era como se o canto das estrelas estivesse se sintetizando em fonemas.
- Eu jamais...
- Calado, Ousama. Sou seu pai e seu criador, a mim você deve respeito e obediência!
- Onde você está?! Onde?! – Ousama caminhou até a tumba aberta, tateou no escuro do sarcófago, não encontrou nada além de poeira. Olhou para os lados, girou a cabeça ao redor, deparando-se com a tampa de quase uma tonelada completamente destruída, partida em duas, separadas ao meio em lados opostos da câmara circular.
- Estou aqui, meu filho. – primeiro veio o toque gelado das mãos milenares em sua cintura, e quando elas se fecharam ao redor de seu corpo, Ousama sentiu o espetar de dez pontiagudas garras que cintilavam à luz da chama das piras que ardiam na escuridão. Aquelas mãos, aquelas mesmas mãos que juntas o criaram. Aquelas mãos que entraram em atrito, expulsando a pele morta, e da pele morta a existência fez-se consciente. Assim Ousama surgira. Aquelas mãos, aquelas mãos de dedos longos e de toque macio, percorrendo seu corpo, puxando-o para perto de seu dono, as longas garras douradas fazendo caminho, causando arrepios. A carícia de um leão. – meu filho...
- Eu te esperei por tanto tempo – ofegou Ousama, levantando a cabeça para cima enquanto seu criador beijava sua nuca. – queria tanto ver o seu rosto outra vez!
- Agora estou aqui, meu filho, agora estou aqui com você. – hálitos e toques.
Ousama forçou virar-se, para ficar frente a frente com aquele por quem ele tanto havia esperado, mas as garras douradas foram mais fortes e o mantiveram firme e fixo em sua posição, naquele abraço de serpente, mortal e enroscado.
Ousama forçou virar-se, para ficar frente a frente com aquele por quem ele tanto havia esperado, mas as garras douradas foram mais fortes e o mantiveram firme e fixo em sua posição, naquele abraço de serpente, mortal e enroscado.
- Porque não me deixa ver o seu rosto, meu pai?
- Porque eu não sou idiota e muito menos ingênuo, como você pensa – a voz aumentou algumas oitavas, era mais do que um sussurrar, era um canto tão distante e ao mesmo tempo tão próximo. – eu vivi muitos anos, grande parte deles foram pagos vagando pelo espaço sideral, pelo eterno vácuo, e nele eu meditei, e muitas coisas me foram reveladas; a sua existência me foi revelada, e a sua ambição também, o seu desejo por poder, o seu desejo pela humanidade.
- Eu consegui! – riu ele, ainda com a cabeça erguida, apoiada no ombro da criatura extremamente alta que o abraçava por trás. – eu bebi o sangue da oferenda, pai, e agora sou humano!
- Não, Ousama, você não é humano. Você é um demônio. Você é a cópia mal feita de um homem, algo que anseia por uma forma fixa, mas que nunca passará de um nada...
- Não me diga palavras tão cruéis... – ele ofegava cada vez mais.
- Lhe digo, e lhe digo mais. – fez-se silêncio, e o prazer tornou-se uma dor profunda que dividiu-se em dez por dez pontos diferentes de seu corpo. As garras douradas o perfuravam. – você jamais passou da ampulheta que conferiu os dias para o meu retorno!
As dores o rasgaram de dentro para fora, as garras abriram caminhos profundos em sua carne e agora estavam cobertas de sangue.
- Jamais tente enganar a um deus, Ousama! Demônio-sapo! – a canção das estrelas tornou-se um grito, o guincho de uma enorme baleia azul. Lilith puxou da mão direita de sua criação a adaga que ele estivera ocultando, a adaga que ele usaria para matá-lo e coroar-se então rei dos monstros.
Da mesma maneira que ele tornou-se humano, assim ele tornou-se sapo outra vez, em meio a fluidos e chiados, seu corpo inchou e explodiu em gosma e muco que uniram-se a moldaram-se no que ele fora antes de beber o suco vermelho que corria nas veias de Frederico. Seu grito de ódio e revolta sacudiu a montanha e fez rachar as paredes da cripta, ele voltou-se de frente para o vulto que havia o seduzido e o apunhalado pelas costas, da mesma forma como ele havia planejado fazê-lo. O feitiço havia virado contra o feiticeiro.
- Acha que tenho medo do seu tamanho? – riu a voz. – já enfrentei coisas muito maiores que você!
A criatura pôs-se de quatro e rastejou pelas paredes da cripta na velocidade de uma aranha enquanto a língua voraz de Ousama chicoteava tudo ao redor, procurando pelo alvo para torcê-lo e matá-lo com sua força sobrenatural. Lilith alcançou imediatamente a saída do fosso, por onde havia descido na forma de uma grande serpente negra, e escalou suas paredes com habilidade e destreza. Ousama furioso destruía tudo lá embaixo, as piras viraram e atearam fogo ao chão com a destruição de seus pedestais, e em poucos segundos a cripta estava ardendo em chamas. Foi só aí então que ele percebeu a fuga de seu alvo, e iniciou sua cansativa escalada das paredes do fosso, usando toda a força de suas pernas anfíbias musculosas para saltar grandes distâncias acima, aproximando-se cada vez mais de Lilith, O Sanguinário. Aquele que o havia criado e que o havia traído, mas a quem ele havia intenção de trair.
Ao alcançar a superfície, Lilith flutuou de braços abertos, e seu manto branco ondulou como um tecido embaixo d’água. Do mesmo modo, seus cabelos espalharam-se em mechas ondulantes ao redor de seu rosto, seu corpo brilhou como uma estrela. Ele estava alimentando-se da luz da lua para reluzir, e isso quase cegou àqueles que ainda estavam acordados e aos que estavam acordando do desmaio após o culto demoníaco que o trouxera a este mundo. Abaixo de seus pés, Ousama surgiu logo em seguida, pintando um mural digno das paredes de um templo católico. Enquanto o santo flutuava de braços abertos em graça divina, o demônio asqueroso e verruguento arrastava-se para fora do inferno abaixo de seus pés.
- Chegou sua hora... – cantou a voz, e ela soava como um coral de cetáceos e aves do paraíso. – Ousama!
O sapo esticou sua língua, tentando alcançar seu criador, e coaxou uma última vez, antes de explodir em milhares de gordurosos e oleosos pedaços de carne rica em muco, que se espalharam por todo o salão e evaporaram com o som de ovos numa frigideira. Ousama estava morto. Morto pelas mãos de Lilith, O Sanguinário.
LINDO! ADOREI! (forever alone)
ResponderExcluirAI
ResponderExcluirAI
AI
NOSSA
QUE CAPÍTULO HEIN
TO TODO ARREPIADO AQUI
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LILITH ENDIVOU LOUCAMENTE LOL