“Estamos diante do maior escândalo da história das celebridades” – The New York Times.
“O mundo da moda parou” – The Sun.
“O tão esperado do ressurgimento da diva das passarelas, Stella Vazjekovzka, termina de forma trágica com o assassinato do veterano Lucas Lustat” – O Globo.
- Foram encontrados no aposento exatamente seis objetos confirmadamente não pertencentes à vítima: uma fivela de sapato sob a marca de Coco Chanel, uma pulseira em ouro assinada por Christian Dior, um relógio de pulso Dolce&Gabbana, um vestido Versace, e um par de sapatos sociais Armani. Os dois restantes, uma carteira porta cédulas da Gucci e um aparelho celular touch-screen assinado pela marca Prada também foram recolhidos e caracterizados como as principais pistas para o começo da nossa investigação. A vítima foi executada com dois tiros, um deles acertou a porta cédulas e o outro, a jugular de forma transversal, atravessando a língua e acertando o cérebro em cheio, Lucas Lustat morreu instantaneamente.
Fez-se silêncio. As canetas arranhavam ferozes seus blocos de anotações, mãos e dedos nervosos escreviam firmes e apressados, quase furando as folhas de papel, os flashes vindos das câmeras fotográficas eram separados por longos intervalos de tempo, como se esperando mais um pronunciamento, cautelosos, com medo de atrapalhar a coletiva de imprensa. Os burburinhos aparentavam o barulho de milhares de moscas zumbindo ao mesmo tempo sobre a carniça. Óculos de grau sendo ajeitados por dedos secos para cima de narizes oleosos. E então a gritaria recomeçou. O lounge da delegacia central de polícia de Paris estava lotado naquela manhã
- Detetive Mimieux! Detetive Mimieux! Eu tenho uma pergunta! Detetive Mimieux! – uma repórter baixinha loira e de terno vermelho pulava feito uma saúva nervosa escondida por óculos gigantescos de fundo de garrafa.
- Sim, fique à vontade – fez o Detetive Mimieux, maneando a cabeça com delicadeza.
Ela sorriu nervosa, pigarreou duas vezes e tirou o cabelo da cara. Estava respirando com dificuldade, pois um fotógrafo e um câmera estavam praticamente prensando-a contra a bancada dos chefes de polícia.
- Quem é a principal suspeita do assassinato do veterano das passarelas, Lucas Lustat? – arregalou os olhos com esperança. Ela ouviria o nome que queria ouvir? Teria sua matéria de capa? O Escândalo dos escândalos, com E maiúsculo, é claro, o caso mais intrigante e instigante da história da moda na face da terra.
- Temos nossos palpites, querida, pessoas não autorizadas estavam dentro do prédio no momento do assassinato, foram presas e estão sob custódia policial... Porém, não podemos descartar a hipótese de que Stella Vazjekovzka seja a culpada, tendo em vista que a porta do quarto estava destrancada no momento em da batida ao apartamento, contrariando o único álibi que ela tinha: sua neta que afirmara ter trancado a porta antes de sair.
A gritaria recomeçou ainda mais forte, os flashes agora vieram com mais intensidade, sem intervalos, um atrás do outro, cegando a bancada, transformando tudo em luz, luz branca incandescente e desnorteante, perturbadora como aquele caso pesado e de grande renome mundial que o detetive Mimieux tinha em mãos naquele momento. Era muita responsabilidade acusar a rainha das passarelas. E muita audácia também.
- Mas testemunhas afirmam que ela foi encontrada dormindo! – gritou um homem que estava ao fundo, pulando, tentando sobressair-se da multidão.
- Ela não estava dormindo, parecia estar em uma espécie de transe, surto, estava delirando até mais ou menos às oito da noite do mesmo dia. – ele riu para si mesmo, baixinho, como se sádico, um tanto sarcástico, levantou seu queixo outra vez para os repórteres que esperavam ansiosos pela continuação da réplica. Eles se inclinavam cada vez mais sobre a bancada, quase escalavam-na – os mais veteranos que aqui estão, acredito eu, acompanharam a vida de Stella Vazjekovzka no auge da sua juventude, também no auge da sua carreira, quando sua estrela mais brilhou, por tanto com certeza possuem ao menos uma pequena noção da relação amorosa complicada que os dois viviam e como pararam de se encontrar bruscamente alguns meses após se conhecerem, ou se reencontrarem, como dizem as más línguas. O fato é que ela tinha todos os motivos para matá-lo, para se vingar de uma possível traição sugerida pelas revistas sensacionalistas da época... Não posso ir além do que já disse aqui, sinto muito, tenham uma boa manhã.
Levantou-se da cadeira em meio aos flashes e aos gritos da multidão, pedindo para que ficasse, que explicasse, que lhes contasse, que desse mais detalhes, estavam famintos pelo caso, representantes das revistas mais sérias do mundo estavam ali, assim como também das principais revistas criadoras de caso de toda a Europa e das Américas também, os sensacionalistas, aqueles que aumentavam, que criavam, que repuxavam e distorciam as histórias até elas se tornarem verdadeiros “Godzillas” dos casos de polícia envolvendo celebridades. Mesmo assim, o Detetive Mimieux deu as costas para eles, ainda com o sorriso sarcástico no rosto. Faria de tudo para descobrir a verdade sobre Stella Vazjekovzka.
- Aline, você está sendo injusta com a sua avó, e sendo desrespeitosa para comigo! Cale-se, ou vou ser forçado a levantar a mão para você! Coisa que eu jamais fiz alguma vez! – o tom de voz de Stefan estava ficando cada vez mais alto. A Mansão Vazjekovzka estava em completa penumbra, escuridão total, até as luzes da propriedade foram apagadas para despistar os paparazzi inconvenientes, para enganar os repórteres que se esparramavam aos montes nos pés do portão da chácara, montando guarda, acampamento, como um exército esperando a hora certa de atacar.
O mar francês abaixo do penhasco lá fora estava calmo, sereno, e a lua cheia com a eterna luz azul, nervosa. A propriedade sob o nome de Vazjekovzka era gigantesca para ser uma chácara, era mais uma fazenda, porém raramente era chamada assim. Ao norte da França, próxima a uma cidadezinha calma e serena, era compreendida por campos verdes intermináveis onde os cavalos da família corriam livres e pastavam, um pomar de maçãs e outro de uvas, uma pequena granja onde Stefan criava aves raras, uma pocilga para os porcos e um curral para algumas vacas leiteiras.
- Mas a porta do apartamento estava destrancada! – Aline aumentou uma oitava na voz, mas logo corrigiu o erro e diminui a voz, chegando a ponto de rosnar bem baixinho – Deixei-a trancada e quando a polícia foi fazer a vistoria e a evacuação, estava simplesmente aberta, encostada! Ninguém mais tinha a chave exceto...
- Veronica – Stefan pronunciou o nome com acidez.
Iluminados apenas pela luz do abajur noturno voltaram seus rostos pálidos para uma velha senhora de 87 anos deitada numa luxuosa e suntuosa cama, embrulhada por dezenas de cobertas, com sua cabeça cinzenta perdida entre almofadas, travesseiros e algumas pelúcias. Um gato persa branco de cara cinza dormia sob o peito da figura semi-morta. Era Alejandro, o velho gato tataraneto de Mariella, estava quase para morrer também, como a sua dona, suas noites de sono costumavam durar muito mais que o normal, ambas as animações estavam se suspendendo pouco a pouco. O leve subir e baixar do peito rijo e liso da velha, levantando e baixando o gato, dava a certeza de que ela estava viva.
- Está preparada para o seu depoimento, Aline? – a voz de Stefan cortou a madrugada de novo – porque a polícia está interessadíssima em saber como a fivela do seu sapato foi parar no camarim de Lucas Lustat... Duvido que vocês só tenham discutido! Duvido muito!
- Maldita hora em que entrei naquele quarto... – cruzou os braços e fechou os olhos, franzindo a testa. Era puro estresse.
Mas Stella estava ali, deitada na cama, perdida entre lençóis, realidade e sonho. Suas noites de sono eram assim, perdidas; enquanto ouvia as vozes de filho e neta, a realidade se misturava com o mundo onírico e a deixava desnorteada, entre o sono e o despertar, sempre perdida. A palavra Gucci ecoava dentro de sua cabeça, martelando sem parar, lembranças incontáveis. Lembranças. Lembranças do dia em que Ivan Vazjekovzka e sua mulher sofreram o acidente de carro. O dia em que seu filho morreu. Seu neto era muito jovem ainda, muito pequenino, de modo que passou a tratá-la como “mãe” em menos de três anos.
A perda do filho único daquela mulher fora uma grande tragédia. Mas porque ela estava sonhando com aquilo? Porque ela estava vendo o rosto fino e andrógino de seu único filho enrijecido, duro, petrificado e inexpressivo pela morte outra vez, dentro daquele maldito caixão? Stefan estava no colo da mulher de 54 anos. Ah, como Stefan estava sorridente naquele dia. Dois aninhos ainda, pensou. Nem sabe se está no mundo. Brincava com as flores do véu negro que Armani desenhara exclusivamente para ela, um anjinho, o Cupido em carne e osso. O deus Eros recém-nascido.
E então os olhos. Sempre aqueles olhos, fixamente presos a ela, um olhar profundo e piedoso, ao mesmo tempo em que implorava, necessitava do perdão dela, do abraço dela. Mas não, aquele olhar jamais teria coragem de trazer seu dono até sua amada. Ela estava num momento difícil, jamais a abordaria daquela maneira, jamais se aproveitaria daquela fragilidade. Lucas, sempre Lucas. Nos eventos de moda, nas comitivas de imprensa, nos coquetéis de cortesia, nos lançamentos de livros, de CDs, DVDs, nas grandes estréias de cinema. Lá estava Lucas, sempre tão bonito e charmoso, a admirá-la de longe. Ela fingia que não o via, e ele, tolo, acreditava que estava sendo o mais discreto possível. Acreditava realmente que ela não o percebia, não o via planando feito uma pomba inoportuna por todo o lugar, batendo suas asas. Idiota, pensava Stella. Grande idiota. Nunca, nunca voltarei atrás. Você me feriu, não esperou por mim, você se entregou para o primeiro que lhe sorriu e lhe ofereceu a cama, você nunca valeu nada. Você é volúvel, não serve para mim. Não serve.
E Gucci. Aquela porta cédulas maldita. Stella havia perdido aquilo no teatro. Na verdade, fora roubada. Roubada descaradamente, de cima da pia do luxuoso banheiro do prédio centenário em São Paulo. E o mais engraçado de tudo: fora esvaziada! Seus pertences estavam espalhados pelo mármore; cartões de crédito, dinheiro, documentos, tudo. Aquilo a deixou indignada, mas ela calou-se. Calou-se diante daquilo porque ela sabia quem o fizera, sabia quem o fizera com certeza porque o vira de relance, passeando por lá com cara de paisagem. Lucas pensa que me engana, pensa que é invisível. Eu o reconheceria até em Marte!
Mas não, ela não o denunciaria, não daria queixa à polícia. Não era necessário. Não agora, que ele havia sumido, para ressurgir agora, tanto tempo depois, e morrer desse jeito, com a porta cédulas da Gucci que lhe fora roubada há anos atrás, agora baleada.
- Está pronta, Senhora Stella Vazjekovzka, para dizer a verdade, somente a verdade e nada mais que a verdade? – perguntou o detetive Mimieux.
Ela tirou seu véu preto. Armani de novo. O mesmo vestido, o mesmo véu, o mesmo pássaro preto empalhado no alto da cabeça, exatamente como estava vestida no dia em que Ivan morreu. Os olhos marejados, inchados e pesadamente maquiados.
- Eu sempre digo a verdade, Detetive Mimieux, sempre.
“O mundo da moda parou” – The Sun.
“O tão esperado do ressurgimento da diva das passarelas, Stella Vazjekovzka, termina de forma trágica com o assassinato do veterano Lucas Lustat” – O Globo.
- Foram encontrados no aposento exatamente seis objetos confirmadamente não pertencentes à vítima: uma fivela de sapato sob a marca de Coco Chanel, uma pulseira em ouro assinada por Christian Dior, um relógio de pulso Dolce&Gabbana, um vestido Versace, e um par de sapatos sociais Armani. Os dois restantes, uma carteira porta cédulas da Gucci e um aparelho celular touch-screen assinado pela marca Prada também foram recolhidos e caracterizados como as principais pistas para o começo da nossa investigação. A vítima foi executada com dois tiros, um deles acertou a porta cédulas e o outro, a jugular de forma transversal, atravessando a língua e acertando o cérebro em cheio, Lucas Lustat morreu instantaneamente.
Fez-se silêncio. As canetas arranhavam ferozes seus blocos de anotações, mãos e dedos nervosos escreviam firmes e apressados, quase furando as folhas de papel, os flashes vindos das câmeras fotográficas eram separados por longos intervalos de tempo, como se esperando mais um pronunciamento, cautelosos, com medo de atrapalhar a coletiva de imprensa. Os burburinhos aparentavam o barulho de milhares de moscas zumbindo ao mesmo tempo sobre a carniça. Óculos de grau sendo ajeitados por dedos secos para cima de narizes oleosos. E então a gritaria recomeçou. O lounge da delegacia central de polícia de Paris estava lotado naquela manhã
- Detetive Mimieux! Detetive Mimieux! Eu tenho uma pergunta! Detetive Mimieux! – uma repórter baixinha loira e de terno vermelho pulava feito uma saúva nervosa escondida por óculos gigantescos de fundo de garrafa.
- Sim, fique à vontade – fez o Detetive Mimieux, maneando a cabeça com delicadeza.
Ela sorriu nervosa, pigarreou duas vezes e tirou o cabelo da cara. Estava respirando com dificuldade, pois um fotógrafo e um câmera estavam praticamente prensando-a contra a bancada dos chefes de polícia.
- Quem é a principal suspeita do assassinato do veterano das passarelas, Lucas Lustat? – arregalou os olhos com esperança. Ela ouviria o nome que queria ouvir? Teria sua matéria de capa? O Escândalo dos escândalos, com E maiúsculo, é claro, o caso mais intrigante e instigante da história da moda na face da terra.
- Temos nossos palpites, querida, pessoas não autorizadas estavam dentro do prédio no momento do assassinato, foram presas e estão sob custódia policial... Porém, não podemos descartar a hipótese de que Stella Vazjekovzka seja a culpada, tendo em vista que a porta do quarto estava destrancada no momento em da batida ao apartamento, contrariando o único álibi que ela tinha: sua neta que afirmara ter trancado a porta antes de sair.
A gritaria recomeçou ainda mais forte, os flashes agora vieram com mais intensidade, sem intervalos, um atrás do outro, cegando a bancada, transformando tudo em luz, luz branca incandescente e desnorteante, perturbadora como aquele caso pesado e de grande renome mundial que o detetive Mimieux tinha em mãos naquele momento. Era muita responsabilidade acusar a rainha das passarelas. E muita audácia também.
- Mas testemunhas afirmam que ela foi encontrada dormindo! – gritou um homem que estava ao fundo, pulando, tentando sobressair-se da multidão.
- Ela não estava dormindo, parecia estar em uma espécie de transe, surto, estava delirando até mais ou menos às oito da noite do mesmo dia. – ele riu para si mesmo, baixinho, como se sádico, um tanto sarcástico, levantou seu queixo outra vez para os repórteres que esperavam ansiosos pela continuação da réplica. Eles se inclinavam cada vez mais sobre a bancada, quase escalavam-na – os mais veteranos que aqui estão, acredito eu, acompanharam a vida de Stella Vazjekovzka no auge da sua juventude, também no auge da sua carreira, quando sua estrela mais brilhou, por tanto com certeza possuem ao menos uma pequena noção da relação amorosa complicada que os dois viviam e como pararam de se encontrar bruscamente alguns meses após se conhecerem, ou se reencontrarem, como dizem as más línguas. O fato é que ela tinha todos os motivos para matá-lo, para se vingar de uma possível traição sugerida pelas revistas sensacionalistas da época... Não posso ir além do que já disse aqui, sinto muito, tenham uma boa manhã.
Levantou-se da cadeira em meio aos flashes e aos gritos da multidão, pedindo para que ficasse, que explicasse, que lhes contasse, que desse mais detalhes, estavam famintos pelo caso, representantes das revistas mais sérias do mundo estavam ali, assim como também das principais revistas criadoras de caso de toda a Europa e das Américas também, os sensacionalistas, aqueles que aumentavam, que criavam, que repuxavam e distorciam as histórias até elas se tornarem verdadeiros “Godzillas” dos casos de polícia envolvendo celebridades. Mesmo assim, o Detetive Mimieux deu as costas para eles, ainda com o sorriso sarcástico no rosto. Faria de tudo para descobrir a verdade sobre Stella Vazjekovzka.
- Aline, você está sendo injusta com a sua avó, e sendo desrespeitosa para comigo! Cale-se, ou vou ser forçado a levantar a mão para você! Coisa que eu jamais fiz alguma vez! – o tom de voz de Stefan estava ficando cada vez mais alto. A Mansão Vazjekovzka estava em completa penumbra, escuridão total, até as luzes da propriedade foram apagadas para despistar os paparazzi inconvenientes, para enganar os repórteres que se esparramavam aos montes nos pés do portão da chácara, montando guarda, acampamento, como um exército esperando a hora certa de atacar.
O mar francês abaixo do penhasco lá fora estava calmo, sereno, e a lua cheia com a eterna luz azul, nervosa. A propriedade sob o nome de Vazjekovzka era gigantesca para ser uma chácara, era mais uma fazenda, porém raramente era chamada assim. Ao norte da França, próxima a uma cidadezinha calma e serena, era compreendida por campos verdes intermináveis onde os cavalos da família corriam livres e pastavam, um pomar de maçãs e outro de uvas, uma pequena granja onde Stefan criava aves raras, uma pocilga para os porcos e um curral para algumas vacas leiteiras.
- Mas a porta do apartamento estava destrancada! – Aline aumentou uma oitava na voz, mas logo corrigiu o erro e diminui a voz, chegando a ponto de rosnar bem baixinho – Deixei-a trancada e quando a polícia foi fazer a vistoria e a evacuação, estava simplesmente aberta, encostada! Ninguém mais tinha a chave exceto...
- Veronica – Stefan pronunciou o nome com acidez.
Iluminados apenas pela luz do abajur noturno voltaram seus rostos pálidos para uma velha senhora de 87 anos deitada numa luxuosa e suntuosa cama, embrulhada por dezenas de cobertas, com sua cabeça cinzenta perdida entre almofadas, travesseiros e algumas pelúcias. Um gato persa branco de cara cinza dormia sob o peito da figura semi-morta. Era Alejandro, o velho gato tataraneto de Mariella, estava quase para morrer também, como a sua dona, suas noites de sono costumavam durar muito mais que o normal, ambas as animações estavam se suspendendo pouco a pouco. O leve subir e baixar do peito rijo e liso da velha, levantando e baixando o gato, dava a certeza de que ela estava viva.
- Está preparada para o seu depoimento, Aline? – a voz de Stefan cortou a madrugada de novo – porque a polícia está interessadíssima em saber como a fivela do seu sapato foi parar no camarim de Lucas Lustat... Duvido que vocês só tenham discutido! Duvido muito!
- Maldita hora em que entrei naquele quarto... – cruzou os braços e fechou os olhos, franzindo a testa. Era puro estresse.
Mas Stella estava ali, deitada na cama, perdida entre lençóis, realidade e sonho. Suas noites de sono eram assim, perdidas; enquanto ouvia as vozes de filho e neta, a realidade se misturava com o mundo onírico e a deixava desnorteada, entre o sono e o despertar, sempre perdida. A palavra Gucci ecoava dentro de sua cabeça, martelando sem parar, lembranças incontáveis. Lembranças. Lembranças do dia em que Ivan Vazjekovzka e sua mulher sofreram o acidente de carro. O dia em que seu filho morreu. Seu neto era muito jovem ainda, muito pequenino, de modo que passou a tratá-la como “mãe” em menos de três anos.
A perda do filho único daquela mulher fora uma grande tragédia. Mas porque ela estava sonhando com aquilo? Porque ela estava vendo o rosto fino e andrógino de seu único filho enrijecido, duro, petrificado e inexpressivo pela morte outra vez, dentro daquele maldito caixão? Stefan estava no colo da mulher de 54 anos. Ah, como Stefan estava sorridente naquele dia. Dois aninhos ainda, pensou. Nem sabe se está no mundo. Brincava com as flores do véu negro que Armani desenhara exclusivamente para ela, um anjinho, o Cupido em carne e osso. O deus Eros recém-nascido.
E então os olhos. Sempre aqueles olhos, fixamente presos a ela, um olhar profundo e piedoso, ao mesmo tempo em que implorava, necessitava do perdão dela, do abraço dela. Mas não, aquele olhar jamais teria coragem de trazer seu dono até sua amada. Ela estava num momento difícil, jamais a abordaria daquela maneira, jamais se aproveitaria daquela fragilidade. Lucas, sempre Lucas. Nos eventos de moda, nas comitivas de imprensa, nos coquetéis de cortesia, nos lançamentos de livros, de CDs, DVDs, nas grandes estréias de cinema. Lá estava Lucas, sempre tão bonito e charmoso, a admirá-la de longe. Ela fingia que não o via, e ele, tolo, acreditava que estava sendo o mais discreto possível. Acreditava realmente que ela não o percebia, não o via planando feito uma pomba inoportuna por todo o lugar, batendo suas asas. Idiota, pensava Stella. Grande idiota. Nunca, nunca voltarei atrás. Você me feriu, não esperou por mim, você se entregou para o primeiro que lhe sorriu e lhe ofereceu a cama, você nunca valeu nada. Você é volúvel, não serve para mim. Não serve.
E Gucci. Aquela porta cédulas maldita. Stella havia perdido aquilo no teatro. Na verdade, fora roubada. Roubada descaradamente, de cima da pia do luxuoso banheiro do prédio centenário em São Paulo. E o mais engraçado de tudo: fora esvaziada! Seus pertences estavam espalhados pelo mármore; cartões de crédito, dinheiro, documentos, tudo. Aquilo a deixou indignada, mas ela calou-se. Calou-se diante daquilo porque ela sabia quem o fizera, sabia quem o fizera com certeza porque o vira de relance, passeando por lá com cara de paisagem. Lucas pensa que me engana, pensa que é invisível. Eu o reconheceria até em Marte!
Mas não, ela não o denunciaria, não daria queixa à polícia. Não era necessário. Não agora, que ele havia sumido, para ressurgir agora, tanto tempo depois, e morrer desse jeito, com a porta cédulas da Gucci que lhe fora roubada há anos atrás, agora baleada.
- Está pronta, Senhora Stella Vazjekovzka, para dizer a verdade, somente a verdade e nada mais que a verdade? – perguntou o detetive Mimieux.
Ela tirou seu véu preto. Armani de novo. O mesmo vestido, o mesmo véu, o mesmo pássaro preto empalhado no alto da cabeça, exatamente como estava vestida no dia em que Ivan morreu. Os olhos marejados, inchados e pesadamente maquiados.
- Eu sempre digo a verdade, Detetive Mimieux, sempre.
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