Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

domingo, 24 de outubro de 2010

Dame de Lotus


Certa sexta-feira dessas em minha vida, resolvi aceitar um convite para ir ao cinema, coisa que eu raramente faço em geral por falta de dinheiro. Costumo gastar meus vinte reais semanais com ônibus e almoço, já que passo o dia todo na escola, de modo que raramente tenho uns trocados sobrando sequer pra comprar um pirulito, tenho que juntar até o troco do ônibus, nunca se sabe o que será da minha carteira na semana que se segue, se estará cheia ou vazia... Mas aconteceu de eu estar com 20 reais sobrando, acredite se quiser. E eu aceitei o pedido. Fomos então eu, duas amigas e um amigo (seus nomes serão preservados por motivos ocultos). Minhas duas amigas são um pouco diferentes, tanto em personalidade quanto em atitude, começando pelo fato de elas serem um casal.

Tanto uma quanto a outra são muito especiais para mim, e eu costumo defender elas de tudo e de todos, não importa o que aconteça, sendo que uma eu posso lhes dizer, conheço não é de hoje.

Acontece que meu amigo comprou um milk shake colossal de ovomaltine, e eu não resisti e tomei um pouquinho... e mais um pouquinho depois... e mais um pouquinho... e depois a minha amiga de longa data também tomou mais um pouquinho, e mais um pouquinho, até que sobrou para o dito cujo três dedos de sua bebida.

Acredito que já se pode imaginar a reação dele.

Eu tive de subir as escadas em alta velocidade (e gargalhando), para a sala de cinema antes que ele me alcançasse e me matasse. Em conclusão, ele ficou furioso e foi sentar-se bem longe de nós, que o bajulamos um tempo até que ele aceitou que comprássemos um outro para reaver seus direitos. Fizemos a coleta e tiramos na sorte. Minha amiga então acabou tendo de se sacrificar um pouco mais, levantou-se e foi comprar o tal do milk shake.

Ficamos então eu e sua namorada numa ponta da fileira e meu amigo indignado na outra, mascando sua pipoca em alto e bom som, fazendo cara feia e resmungando enquanto nós ríamos horrores daquela situação.

O riso foi cessando aos poucos e eu me voltei para a tela gigante ainda escura. Ela virou-se para mim como sempre costumava fazer e pôs-se a me admirar, era um estranho costume que ela tinha, às vezes eu punha-me a encará-la também, mas aquilo de nada adiantava, terminávamos rindo um pro outro e virando o rostos. Outras vezes eu permitia que ela me admirasse até que cansasse e voltasse a beijar sua amada. Em geral ela não voltava a fazer o mesmo depois de não retribuído o olhar. Sempre perguntei a ela porque me olhava com aquela cara, e ela respondia "que cara?" e iniciava uma série de risos agudos como se sugados para dentro do pulmão, eu costumo dizer a ela que ri feito o Mutley do desenho do Dick Vigarista, e isso sempre a deixa muito irritada. Mas desta vez não, desta vez ela estava séria, um tanto etérea, esbanjando felicidade e tranquilidade, com uma áurea amena. Foi então que eu resolvi perguntar pela última vez.

"Porque me olhas com essa cara?"

"Que cara?" e voltou a rir.

"Essa de cara estranha, séria, como se me analisasse" ela entendeu que era sério. Finalmente.

"Ora, eu to te admirando!" respondeu.

"ME admirando?" me surpreendi.

"Sim, te admirando".

Fez-se silêncio. O indignado continuava a revirar o saco de pipocas furioso, levando punhados delas à boca e mascando com força.

"Mas porque?".

"Porque você é diferente".

Eu ri.

"É, eu sei, eu sou esquisito mesmo, depois tu se acostuma".

"Não, não esquisito... mas bonito." ela falava sério enquanto eu ria. Os papéis se inverteram?

"HA-HA, eu bonito? Só se for em outro mundo."

"Não se subestime" disse ela "Tu tens uma beleza diferente entendeu? Não parece uma beleza brasileira, não uma beleza amapaense... É uma beleza diferente, eu não sei te explicar"

"Como assim diferente? Se parece com o que?"

Ela virou-se para mim na cadeira e inclinou a cabeça para o lado.

"Uma beleza oriental talvez... Eu não sei explicar, não sei mesmo, mas não é uma beleza comum."

Sua namorada voltou. Não tinha trazido o milk shake do indignado porque a moça da entrada não permitiu que ela saísse, mas havia trazido um refrigerante e mais algumas coisas. Fizemos as pazes, assistimos o filme e quando saímos, já próximo da meia noite, o shopping estava completamente deserto e parcialmente apagado. Eu e meu amigo fizemos questão de correr por entre os brinquedos do parquinho mecânico Amazon Fantasy, na penumbra da escuridão, iluminado apenas por luzes de geladeiras de refrigerante, daquelas em que colocamos a moeda e escolhemos o sabor. Foi bem divertido, de braços pra cima, pulando entre as alegorias com caras de bichinhos, entre os brinquedos gigantes.

Mais tarde, em casa, lembrei-me da conversa que tive com ela, e então eis que pensei.


"Sou uma iguaria rara e cara, um prato para os gostos mais estranhos e refinados, de aparência chamativa e um tantinho repulsiva, porém provocante. Minha cobertura é doce, meu recheio é amargo, corajoso daquele que me provar."


E me senti a última bolacha do pacote.

Poucos seres humanos na face da terra terão coragem de chegar tão perto e falar a verdade assim como minha amiga fez. Em geral as pessoas temem a mim, minha aparência as assusta, as deixa confusas. "Aparência chamativa, um tanto repulsiva, porém provocante". Essa frase me define completamente, parando para analisar, de todas as maneiras.

Em geral as pessoas me olham com espanto, algumas com indignação, outras apenas com pura e simples curiosidade, algumas possuem olhares reprovadores, outras maliciosos, e até mesmo julgadores, debochantes. Sair às ruas para mim é um evento. Eu me sinto uma obra de arte ambulante, pronta para causar todo o tipo de sentimentos àquele que para para admirar. Não estou mentindo ou me exacerbando quando digo que causo furor quando saio de casa. É só me acompanhar num dia normal, de rotina, para ver a reação dos seres humanos na rua. No entanto, eles são tão diferentes entre si e estranhos quanto eu entre eles. Vai entender, não é mesmo?

No mais, eu utilizo os versos de Emilie Simon em sua deliciosa música, Dame de Lotus, para finalizar meu pensamento, já que a letra dela expressa meu sentimento interior da melhor forma.



Je suis enterrée vivante
Contente de moi
Au-dessus des eaux stagnantes
Contemple
Contemple-moi là

Dame de lotus

Je suis enterrée vivante


Contente de moi
Entre deux roseaux tu penches
Etanche
Regarde-moi là

Qu'importent les dames de lotus
J'effeuille les dames de lotus
Ni moins ni plus qu'une dame de lotus

Je suis enterrée vivante
Contente de moi
Au-dessus des eaux stagnantes
Contemple
Contemple-moi là


Dame de lotus sous les roseaux
Dame de lotus penche sur l'eau
Ni moins ni plus qu'une dame de lotus



Louie Mimieux

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