Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

O Vôo da Fênix


- Está pronta vovó?
- Espere, tenho de respirar um pouco – a respiração da velha estava acelerada demais.
- Se acalme vovó, olha a pressão, o coração...
- Não seja tola! Não vou morrer de nervosismo! – ela respirou fundo – abra a porta para mim, Veronica! Rápido! – a serviçal de uniforme preto desceu do carro pela porta da esquerda, voltada para a rua, deu um gritinho quando desviou de uma bicicleta e correu feito uma formiguinha para abrir a porta da limusine de “Madame” Stella.
Veronica era uma mulher baixinha, branca, de olhos muito grandes e cabelo preso num coque no alto da cabeça, sempre de vestido preto com gola, no inverno ou no verão, era seu uniforme diário. Vivia no encalço de sua chefa, era um quebra galho e tanto quando Aline não estava por perto, fazia de tudo um pouco, e eram raras as ocasiões em que Aline e Veronica se encontravam. A mansão era grande, mas cada uma tinha seus afazeres pessoais e viam Stella em momentos diferentes do dia. Nos finais de semana, Veronica desaparecia, era sua folga, naturalmente deveria sumir.
- Cuidado com o degrau, senhora – disse ela, com sua vozinha de camundongo, dando apoio à velha que saía do carro para encarar fotógrafos, repórteres, paparazzi e todo aquele tipo de gente intragável que vivia em seu encalço noite e dia em períodos remotos da sua vida. Era quase um dejà vu, viver aquilo outra vez, relembrar dos velhos tempos, o coração da velha Stella palpitava rápido e forte, ela estava começando a suar e isso a preocupava demais porque a maquiagem poderia escorrer por seu rosto. Aquele casaco de pele de urso polar era muito pesado, e seu vestido branco de vinil da Prada era abafado também. Era uma senhora de idade, deveria esquecer um pouco as extravagâncias e andar mais confortável. Sim, realmente deveria.
Seu salto branco Jimmy Choo, nem tão alto nem tão baixo, tocou o chão num estalo firme que ela nunca, jamais esqueceria até o momento em que fecharia os olhos pela última vez em seus aposentos no frio inverno europeu, aquecida pelos braços da sua neta. Mas isto iria demorar um pouco para acontecer. Esticou-se para fora do veículo como uma lesma que sai do casco porque ficou pequeno demais para comportar seu corpo, ou uma tartaruga centenária fantasiada de pavão que colocava seu pescoço para fora do casco numa manhã gelada de outono.
Na verdade, para todos os que estavam ali, a borboleta saía de seu casulo pela segunda vez: alongou sua coluna e espichou seu pescoço branco e enrugado, reclinou um pouco a cabeça, como se a abrir suas asas brancas. Fez-se silêncio.
Retirou os óculos escuros, respirou fundo e sorriu, revelando fileiras de dentes brancos bem tratados da dentadura, brilhavam feito estrelas polidas. Seus longos cílios postiços piscaram, fechando e abrindo, grudando e logo em seguida descolando, fazendo as pequenas bolinhas vermelhas nas pontas de cada um dos fios escuros cintilantes se chocarem e brilharem como morangos minúsculos. O pó e o blush estavam em excesso, era maquiagem pesada, tão pesada que seu rosto parecia ter sido recalcado milhares de vezes, estava pelo menos 5 anos mais jovem. “Uma borboleta pousada em cada olho, batendo asas sobre duas piscinas azuis”, diriam os colunistas das revistas de fofoca na manhã seguinte, homenageando esta mulher com um currículo de peso.
Uma pequena lágrima escorreu do canto do olho, tímida, reclusa, repreendida e quase teatral em meio a todo aquele show de artificialidade para esconder a idade. Sua boca velha e ressecada, oculta pelas camadas grossas de gloss labial se retorceu em um bico, parecia o começo de um choro. Naquele momento, tanto os fotógrafos, os jornalistas, os fãs e os curiosos que formavam a multidão atuante em frente ao prédio do hotel de luxo aplaudiram e gritaram seu nome em um verdadeiro coral de torcida por um time que há muito tempo não entrava em campo. “STELLA! STELLA! STELLA!” eles gritavam.
Uma leve brisa foi incapaz de agitar seus cabelos prateados duros de laquê, fixos em um coque caracol luxuoso realçando dois grandes diamantes, um em cada orelha. Ela abaixou o rosto para chorar.
Era o momento glorioso em que uma velha estrela apagada, mas nunca esquecida, voltava a brilhar, iluminada pelos flashes e pelos sorrisos dos admiradores e curiosos, teve seus ombros transpassados pelo braço fino e delicado de Aline, que a ajudou a subir os degraus da escadaria de mármore do hotel. Aplausos vinham de todas as direções. Era puro glamour.
Aline estava vestida para ser discreta, mas não conseguiu escapar dos flashes, e ouviu várias vezes seu nome sobressaltar de pontos remotos em meio ao coro de pessoas que gritavam pela sua avó. A jovem abaixou a cabeça, ajeitou a boina e escondeu-se atrás da franja cerrada sobre os olhos. Em um verdadeiro cortejo sobre um tapete vermelho, Stella Vazjekovzka cruzou a multidão como uma rainha, escoltada por Aline, Veronica e mais três enormes seguranças que tentavam conter as pessoas famintas pela Rainha das Passarelas.
- Calma vovó, não chore, não chore! Um infarto aqui não é viável! – Stella não sabia se sua neta brincava ou falava sério.
- Pare de me tratar como uma inválida à beira da morte, sua pirralha, meu público me ama! Veja só! – e do alto das escadarias, abriu seus braços para o povo que foi ao delírio. Ela gargalhou em alto e bom som.
Os assistentes de produção assumiram dali por diante, abriram para ela as portas do hotel e a carregaram para dentro com muita calma, ela não tinha mais todo aquele equilíbrio sobre seus saltos. Aline e Veronica vinham logo atrás, revelando serem as verdadeiras guarda-costas da velha Stella, a Fênix que renascia naquela manhã. Aline foi surpreendida por um repórter que a reconheceu e perguntou-lhe sobre a saída do seu próximo álbum. Ela lhe respondeu que aquele momento não era dela, e sim da sua brilhante avó, e que poderia contar-lhe um pouco sobre Stella e os sentimentos dela com relação àquela sua volta aos holofotes. O repórter concordou, e os dois entraram numa conversa longa e quase íntima. Veronica ficou um pouco avulsa.
- Como você mudou, Stella. – a voz rouca e um tanto melodiosa, arriscarei um talvez galante, invadiu seus ouvidos como um sopro do além, a voz de um anjo velho, pegando-a de surpresa, quase a afogando no copo de água que as assistentes lhe deram para que se acalmasse. Stella ergueu seus olhos. – está uma verdadeira deusa. – o homem esticou um sorriso de orelha a orelha.
Diante dela estava um velho, mas não um velho daqueles idosos rancorosos encardidos com cara de amargura, como se a chupar limões azedos todas as santas manhãs. Não. Aquele velho era um vovô. Sim, um vovô, daqueles delicados, de pele macia e cheirosa, de rugas finas e graciosas a traçar desenhos deliciosos e convidativos sobre a sua pele rosada pela idade. Seus cabelos não eram prateados. Não, não se tratavam de tufos de arame retorcidos sobre uma careca lustrosa e manchada, mas sim de flocos de neve, nuvens brancas delicadamente dispostas com carinho e sutileza sobre sua cabeça idosa, parecia lã da mais pura e mais limpa da toda a Europa, era como uma ovelha. Aquele homem lembrava uma ovelha! Em tudo! Nos pelos dos braços nas sobrancelhas, nos cílios, no bigode e no paletó branco com o lenço vermelho no bolso.
Stella abriu sua boca. Um sussurro rouco lhe escapou por entre os lábios idosos e já quase ressecados outra vez. O gloss havia sido diluído pela água, a marca do batom ficara no cristal da taça que escorreu de suas luvas de pelica para o carpete.
- Lucas.

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