Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

sábado, 23 de outubro de 2010

Sangue na Louis Vuitton


- Lucas – sussurrou Stella por entre seus lábios, repentinamente secos, formando um verdadeiro buraco escuro de espanto e nervosismo.
- Stella – sua voz rouca era embalada pelo ópio macio e vicioso de uma espécie de nostalgia melódica que soava como música para os ouvidos da velha senhora que lhe estendeu sua mão.
Por um minuto, iluminados pelo lustre dourado e cheio de cristais em forma de gota, entre os móveis elegantes do hall do hotel, em meio à veludo vermelho, arabescos e sofisticação, um conto de fadas se realizou de forma metafórica ali mesmo, em meio a homens carregando cenários e mulheres arrastando araras cheias de roupas, fotógrafos e iluminadores cuidando da ambientação e diretores de fotografia gritando ordens por entre os holofotes, como nos bastidores de um cinema. A princesa havia encontrado seu príncipe, e a sua espera de longos anos havia terminado ali naquele hall, em meio ao caos.
Ele levantou Stella com muito cuidado, os dois estavam muito próximos então, olhares invasivos para dentro, para as cachoeiras dos olhos que levavam para o âmago da alma. Respirações e batimentos cardíacos sincronizados, braços e pernas bambas, e as mãos, as duas mãos idosas, masculino e feminino unidos. Ainda surpresa, tentou esboçar um sorriso. Um misto memórias e lembranças, momentos e recordações, brotavam em erupção de dentro do mais profundo de Stella para fora, se espalhando pelo chão. Ela era um verdadeiro vulcão de sentimentos naquele instante. Eles formavam uma pasta disforme que aos poucos se espalhava pelo carpete abaixo dos seus pés.
- Você continua a mesma, é uma aparição onde quer que esteja, é deslumbrante! – ele ria. Ela continuava muda, séria, tentando esboçar sorriso ou cólera. Não sabia como reagir. Sabia que o encontraria, mas não sabia como reagir, não tinha ensaiado sua reação, aquilo não era o cinema, era a vida real, aquele momento não seria registrado em fotografia. Não ficaria congelado para ser revivido. Ela tinha que dizer alguma coisa.
- Vovó quem é esse homem? – Aline surgiu, como se das sombras, surpreendendo aos dois. Stella quase caiu de volta à poltrona, tirada à força de seu sonho enquanto acordada, trazida de volta a realidade pela voz aguda da neta, que tinha um toque de dúvida e reprovação como tempero salpicado por cima. Era o tom de voz que um filho usaria com a mãe ao descobri-la em intimidade com algum outro homem que não era o pai. Era o tom dos ciúmes.
- Oh, meu Deus... Querida, este é Lucas... Seu tio Lucas, de quem tanto ouviu falar, mas nunca viu de perto... – ela sequer tirou os olhos do velho.
Aline olhou de um para o outro com sua fina testa franzida em desconfiança. O velho sorria para ela de um modo encantador, mas isto não foi o suficiente para quebrar seu escudo.
- Vamos vovó – tomou a mão dela das mãos do homem de forma brusca e repentina – o camarim já está pronto para recebê-la – fez um gesto com a cabeça para o velho e saiu levando a avó a tiracolo.
- Está é Lucas, querida – continuou repetindo Stella, com o olhar vazio e a boca ainda entreaberta – este é Lucas. – o som dela se perdendo a cada vez que o repetia. Como se desperta pela segunda vez, procurou por algo a tiracolo – espere um instante! Minha bolsa! Minha bolsa ficou na poltrona!
- Depois eu peço a Veronica que a traga até o camarim – Aline tinha a voz dura e inflexível, parecia um robô falando. Ou um soldado.
- Mas é uma Louis Vuitton! Eu...
Tarde demais, já haviam entrado no elevador.
Enquanto subiam, o papel se invertia: Stella agora era a neta e Aline mais parecia a avó. Com a expressão marmórea e dura por trás dos óculos escuros redondos gigantescos que escondiam seu rosto, Aline permanecia parada feito uma estátua com as mãos cruzadas sobre a saia enquanto Stella, a rainha da noite tinha o rosto espremido contra o vidro, com todas as palavras prontas, saída direto do forno de seu cérebro para serem despejadas sobre Lucas em alta temperatura. Porém agora os dois estavam distantes, separados por metros de altitude, comunicando-se pelo olhar. Stella com os olhos esbugalhados e cintilantes. Lucas com um sorriso encantador, o seu sorriso encantador por trás dos óculos meia-lua que agora usava. Parecia um príncipe. Ele era o seu príncipe.
- PORQUE ALINE, POR QUÊ? – berrava Stella. – PORQUE EU MESMA ME PRIVEI DE SER FELIZ? PORQUE EU TIVE DE DISPENSÁ-LO QUANDO EU MAIS PRECISAVA DELE? PORQUE FUI TÃO ORGULHOSA E PURITANA? E DAÍ SE ELE ANDOU SE ESFREGANDO COM O VIADO DO BLACK CHERRY?! ELE AINDA ERA O MEU LUCAS E PERTENCIA SÓ A MIM!
- Acalme-se vovó, por favor, o hotel inteiro deve estar ouvindo você a esta altura. – Aline havia retirado seus óculos escuros, revelando uma maquiagem preta pesada por detrás deles. Parecia mais séria e mais adulta do que nunca.
- EU SOU A MAIOR PUTA DA HISTÓRIA DAS CELEBRIDADES, MEU PASSADO É PODRE COMO UM RATO MORTO, E EU TIVE A HIPOCRISIA AUDACIOSA DE MANDAR PASTAR O AMOR DA MINHA VIDA PORQUE ELE TEVE UM ROMANCE HOMOSSEXUAL?! EU FUI UMA GRANDE IDIOTA!
- Pare de gritar vovó! Pare de gritar! – rosnou Aline por entre seus dentes de tubarão, afiados e pontiagudos, tão brancos quanto pérolas – o hotel está cheio de assistentes de fotografia e jornalistas autorizados! Eles vão ouvir tudo o que você está dizendo!
- QUE OUÇAM! QUE OUÇAM! – retirou o casaco e lançou-o com violência por sobre a neta, quase a atingindo. Retirou seus sapatos e atirou contra a parede do quarto com muita força, derrubando um quadro, puxou a barra do vestido e amarrou na altura dos joelhos, caminhando a passos firmes e decididos em direção à porta. Aline meteu-se em sua frente, impedindo a passagem.
- Aonde você vai?!
- Vou buscar a minha bolsa!
- Não, nada disso! Fique aqui! Eu mando Veronica buscar! – fez Aline, empurrando sua avó para trás com delicadeza, tentando afastá-la da porta.
- Mas EU quero ir lá! A bolsa é minha! – rugiu a velha.
- Você não quer a bolsa! Você quer falar com o Lucas! Eu sei que quer! Você não vai falar com ele! Você o odiava até alguns dias atrás! – ela trancou a porta e escorou-se nela.
- Porque ele havia se entregado sem pensar duas vezes para aquele maldito Black Cherry! – rosnou a velha avançando para cima da neta tentando alcançar as chaves nas suas costas.
- Então! Ora vejam só! Ele lhe traiu, ele não esperou por você! Ele não lhe ama de verdade!
- É, mas EU o amo e não tenho tempo a perder! Não importa o que ele tenha feito! – fez Stella, iniciando um choro doloroso e soluçado, agudo e intenso, poderoso, como se toda a sua tristeza estivesse escorrendo para fora com toda a força. Caiu sentada no chão, feito uma velha de asilo, desamparada, sozinha, sem família. Aline imediatamente a abraçou, mas foi empurrada para trás – saia de perto de mim! Sua ingrata! Você não sabe o que esse homem representa para mim! Eu passei anos e anos tentando digeri-lo, ruminando a existência dele, o que ele tinha representado para mim e o que ele fizera, como ele havia me traído! Mas só agora, vendo-o de perto percebi que estou velha! Praticamente morta! Meu brilho todo está se apagando, eu preciso de muita maquiagem para sair em público, antes eu não precisava nem de lápis de olho, meus cílios sempre foram grossos! Não posso mais me privar de ser feliz, não posso! Eu me recuso!
Ela se debateu feito uma criança no chão, privada de seu brinquedo.
- Vovó! A sua coluna! A sua coluna! Pare com isso! – Aline tentava segurar os pés da velha. Levantou-se. – fique aqui! Você não está em condições de ver ninguém, sequer de sair daqui! Vou buscar seu remédio para o coração. – puxou o celular e discou – Veronica, me encontre no elevador com a bolsa em mãos. – e desligou. Saiu do quarto às pressas e trancou a porta atrás de si, deixando sua velha e frágil avó, ferida emocionalmente, jogada no chão, afogando-se nas próprias lágrimas enquanto chamava por Lucas e chutava a porta. Não, ela não ligava para as dores agudas da sua hérnia, sua coluna gritando, seu coração oscilando, ela poderia morrer ali naquele chão, jogada e sem amparo. Mas naquele momento ela teve forças para levantar-se e deitar-se. Seu amor por Lucas a manteria viva até Aline voltar com os remédios.
Ela não soube exatamente o tempo em que passou jogada na cama, em um estado profundo de letargia, entre a realidade e o sonho, as dores agudas dando pontadas ferinas de cima abaixo por toda a extensão da sua coluna, fazendo-a tremer, estremecer de dentro pra fora. Enquanto as agulhadas a faziam gemer, enquanto seu coração descompassava e depois entrava em ritmo de novo, a visão de seu Lucas, eternamente jovem em sua memória lhe voltava, o passado e o presente se misturavam, ela o via como há anos atrás, deitado nu sobre a cama.
Mas não era a cama do hotel vagabundo onde eles passaram sua primeira noite, não, era a cama do hotel de luxo onde ela se encontrava agora, em um dos majestosos quartos assinados por Christian Lacroix, no Petit Moulin. Hotel onde a Vogue Paris estava organizando o seu ensaio fotográfico, talvez o mais comentado da história da revista. As curvas delicadas do corpo jovem de Lucas se misturavam às curvas desenhadas nos papéis de parede antigos, aos brocados, a textura da pele deliciosa e jovial se misturava ao toque do couro e do veludo ali utilizado, com um dedo lúgubre do barroco. Visões de um Lucas novo e um Lucas velho, lado a lado no hall, de braços dados, esperando por duas Stellas, uma nova e uma velha, que vinham feito rainha e princesa para o encontro. Uma dança. E depois a cama, e então vozes.
Ela abriu os olhos devagarzinho, ainda entre o sonho e a realidade. Viu uma Veronica chorosa e nervosa, viu uma Aline desesperada cheia de lágrimas nos olhos, viu homens de capa preta com lanternas em punho, viu cães invadindo seu camarim, mas não podia se mexer, não queria se mexer mesmo que pudesse, não queria acordar.
“Encontramos uma bolsa Louis Vuitton ensangüentada no local, chefe” gritou um aparelho na cintura de um dos homens. “Policiais”, pensou Stella. “Sangue na Louis Vuitton”, pensou ela de novo. “Não toquem em nada! Os detetives já estão subindo!” respondeu o homem, após tirar o aparelho da cintura e apertar no botão que fez a luz vermelha de transmissão acender.
- Não toquem nela! Ela precisa tomar os remédios! Ela estava passando mal há meia hora atrás! – berrava Aline, se debatendo feito um animal no braço de um policial gigantesco.
Um homem abaixou-se ao lado da cama, abriu um dos olhos da velha com o auxilio de uma luva e iluminou a pupila com uma pequena lanterna de pulso. Ela retraiu-se, e tudo voltou com um choque agudo para o mundo real. O baque. Stella levantou-se sobressaltada.
- O QUE É ISSO? O QUE ESTÁ ACONTECENDO? – a dor na hérnia voltou mais forte. Ela gritou.
- Senhora Stella Vazjekovzka, sou o Detetive Mimieux, da Polícia Francesa – apertou sua mão – estamos esvaziando o prédio e precisamos que venha conosco.
- Por quê? O que aconteceu?! O que está acontecendo?! – ela ainda gritava nervosa, atordoada pela surpresa, pelas dores.
- Houve um assassinato, Senhora. Infelizmente devo informar que Lucas Lustat está morto, e precisamos do seu depoimento, assim como o da sua neta e o da sua empregada.
Os olhos da velha percorreram o quarto em um milésimo de segundo, dando de encontro com o rosto de porcelana de Gabriela estático do outro lado da porta aberta onde outros policiais esperavam.
- Mas o que você está fazendo aqui?! O que vocês estão fazendo no meu quarto?! – ela ainda não estava entendendo, era uma informação difícil de ser processada – não toquem no meu casaco! Não toquem! Tirem as mãos das minhas coisas! Tirem as mãos de mim! – ela estava sendo carregada para fora de seus aposentos, não sentia mais as pernas, mal se sentia viva. A inconsciência veio muito rápido, as coisas foram sumindo na velocidade da luz até que Lucas ressurgiu, e o baile do passado e do presente recomeçou, outra vez.

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