Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Draconius Nefastus 2 - Octopus (Final)




(...) Entramos naquele mundinho humano intocável através do alçapão de carga, misteriosamente aberto. A rampa de acesso aberta estava coberta de neve e gelo, foi difícil subir o declive escorregadio, mas conseguimos alcançar a área do bagageiro do zepelim. Vimo-nos então cercados de caixotes grandes e pequenos por todos os lados, cobertos pela neve que o vento trouxera para dentro, a sensação que tínhamos andando por ali era de que as pessoas que um dia estiveram dentro da aeronave saíram para averiguar sua localização e não voltaram mais. Era realmente assustador, um sentimento de abandono e desolamento exatamente igual ao que experimentamos na cidade congelada na entrada do vale.
Chegamos ao final do bagageiro então, dando de frente com uma elevação do piso, com degraus enferrujados com acesso ao patamar superior, este cercado por um tipo de amurada. Lá, encontramos uma única porta de ferro pesado, precisamos de todos os homens da expedição para abri-la. Uma típica porta de navio ou de submarino que fosse pesada e pressurizada o bastante caso ocorresse um naufrágio: giramos a manivela e empurramos, para adentrar no mundo que eu e meus amigos havíamos abandonado há um ano. O mundo do conforto e da sofisticação nova-iorquina.
Após uma averiguação, foi constatado que o zepelim de origem misteriosa tinha tudo o que era necessário para a nossa fuga daquela ilha infernal: o combustível, o gás necessário para manter-se no ar, tudo. No mais, era como controlar um navio voador, e de navios nós entendíamos muito bem. As coisas ali dentro estavam em perfeito estado, uma música ambiente tocava baixinho quando entramos, passeando suave para fora do alto falante de um gramofone no final do corredor. Os abajures estavam acesos, havia café e chá nos bules em cima da mesa de centro do que parecia ser a sala social do lugar. Quadros mostrando paisagens exuberantes estavam pendurados na parede, e o lustre de um pequeno salão circular tinha cada uma das suas pequenas lâmpadas amareladas acesas.
Dez pequenos quartos e uma grande suíte, duas cozinhas e cinco banheiros comunitários com um largo e luxuoso corredor forrado com carpete vermelho cortando-o ao meio. Essa era a área de convivência do zepelim, fora o bagageiro, a sala de comando, os depósitos, os motores e os aposentos destinados aos empregados, que eram bem mais apertados e em maior número no andar inferior: o pequeno zepelim tinha três andares. Um deles parecia ser um salão de bailes.
“Impossível!” exclamou Ray Ann quando nos encontramos no pequeno salão circular do final do corredor principal. “Nós olhamos cada canto desse lugar, está completamente vazio, não há uma alma penada ou sinal de vida nos três andares, tudo morto, parado, abandonado!”
“E a sala de comando, os motores, depósitos?” perguntei.
“Nada também. Tudo deserto!” respondeu Don, muito nervoso. Aquilo era suspeito demais para ele.
“Não tem ninguém, está tudo vazio, abandono total! Parece-me que, quem quer que sejam as pessoas que estiveram viajando neste zepelim, fugiram não faz muito tempo, deixaram tudo para trás!” completou Fábia, confusa. “Tem roupas nos armários, camas desarrumadas e comida fresquinha na cozinha... É como se... As pessoas tivessem saído para dar um passeio e não voltaram...”
Pietro sugeriu que talvez a tripulação tenha descido para averiguar a segurança dos passageiros naquele lugar, acabaram capturados pelas feras da floresta e não voltaram mais. Em desespero os passageiros resolveram sair também, e acabaram tendo o mesmo destino. “Mas isto é só uma hipótese!” completou.
Decidimos então aceitar que tínhamos um lugar seguro para dormir pelo menos por uma noite até que tivéssemos condições e conhecêssemos o funcionamento daquela geringonça para alçar voo e sair dali de uma vez por todas. Isso levaria talvez dois, três dias ou mais. Entendíamos muito bem de navios após um ano no mar, mas aquela coisa era um misto de navio e avião. O único aviador entre nós era Don Hills, que pilotara quando mais jovem, mas atualmente pouco lembrava-se das aulas de pilotagem. Tínhamos comida e cama quentinha, o momento era de tranquilidade, pelo menos por enquanto.
Caímos no erro de esquecermo-nos da rampa do bagageiro aberta. Assim como a pesada porta de ferro que levava ao interior luxuoso do zepelim. Aquela porta esteve fechada durante todo esse tempo, e isso havia impedido que as feras da floresta de vidro adentrassem e perturbassem a ordem impecável dos objetos e mobília esquecidos pela tripulação desaparecida. O mal esgueirou-se pela fresta aberta da porta durante a madrugada, e enquanto dormíamos tranquilos, Fábia Paola fora sequestrada pelos tentáculos malditos.
Acordamo-nos com os gritos dela, já distantes. Saltamos da cama e corremos para os corredores, armados até os dentes por pistolas, espingardas e outras armas que encontramos na cabine de controle onde deveria haver um capitão. Foi tempo o suficiente para ver o último tentáculo retroceder no final do longo corredor. Arrastando-se para fora da pesada porta de ferro pela fresta, tirando à força as mãos de Fábia agarradas à porta, teimando contra o sequestro e lutando para prender-se a algo sólido que lhe desse sustento e apoio.
Corremos em direção à ela para puxá-la de volta, mas não fomos rápido bastante, tivemos de descer ao bagageiro e correr para fora do zepelim, para a neve outra vez, onde outros tentáculos maiores, mais grossos e mais vistosos tateavam as laterais do zepelim e enroscavam-se nas cordas que o prendiam ao chão. Se elas arrebentassem, a nossa estratégia de fuga já era. O zepelim sairia voando! Então ou corríamos em socorro à Fábia ou lutávamos contra os tentáculos.
Rapidamente, Don Hills e Ray Ann se ofereceram para ficar e lutar contra os tentáculos, enquanto Pietro, Augusta e eu partíamos em socorro à nossa amiga capturada. Corremos em desabalada carreira pela floresta de vidro adentro, derrubando arvoredos e fazendo raízes em pedaços, no encalço dos berros da companheira. Por vezes tínhamos vislumbres de seus braços sendo sacudidos no ar, acima das folhagens congeladas, mas depois eles desapareciam, deixando para trás o eco de seu desespero, e é claro, aquele rastro viscoso do tentáculo que formava uma verdadeira trilha no meio da mata. Cavando uma vala em seu caminho tamanha a violência com que se arrastava.
Topamos de frente com mais javalis gigantes que pareciam tão assustados quanto nós, talvez mais, eles corriam para longe de nós quando passávamos, estavam fugindo dos tentáculos, porque eles estavam por toda a parte. Grandes, grossos e gordurosos, deixando muco onde tocavam. Vimos também bandos e mais bandos de macacos batendo em retirada para fora da mata, e presenciamos os tentáculos agarrarem um dos alces pernaltas e arrastarem-no com tamanha violência que o fez perder as quatro pernas! Engoli em seco na mesma hora! Fábia poderia estar sem a cabeça àquela altura! Seguíamos atirando contra qualquer coisa que se movesse em nossa direção, sem pestanejar.
Então, para nosso espanto, o terreno entrou em declive repentino, topamos com uma enorme depressão, uma inclinação perfeita como a borda da cratera de um meteoro gigantesco. Ali a floresta de vidro acabava, e ali nós descemos rolando violentamente por causa da minha falta de atenção. Eu ia à frente e estanquei repentinamente quando cheguei á beirada do precipício, mas Pietro veio logo atrás e empurrou-me com toda força para frente. Augusta tentou segurá-lo e acabou vindo junto, logo éramos uma bola de neve e carne rolando para o desconhecido.
Quando o terreno finalmente tornou-se reto e liso outra vez, tivemos de usar da força dos músculos para não escorregar mais longe: estávamos agora sobre a superfície de um lago congelado no centro de uma enorme cratera! O meio da floresta, o olho da ilha. Para nosso desespero, a fonte de todos os tentáculos!
A cratera tinha uma circunferência perfeita, como um enorme estádio de futebol. Em seu centro havia essa lagoa congelada, salpicada de buracos, furos perfeitamente redondos no gelo por onde os tentáculos cor de cobre cheios de ventosas esgueiravam-se para fora como minhocas gordas e asquerosas. Nós três estávamos aos berros e aos prantos, cercados daquelas aberrações por todos os lados, rastejando em nossa direção para fora de suas tocas, sobre o gelo perfeitamente límpido e cristalino.
Meu desespero só aumentou quando eu olhei para baixo, para meus pés, para minhas pernas bambas, para as fundações onde eu pisava. Rachaduras estavam se formando abaixo de nós, em breve cairíamos na água gelada da lagoa no centro da cratera e encontraríamos o dono daqueles tentáculos. Dono este que abriu seus olhos no momento em que a primeira rachadura estalou.
Eu urrei tão alto, tão alto que tive a certeza absoluta naquele momento de ter arrebentado as minhas cordas vocais por completo! Abaixo de mim havia um farol amarelo enorme, que imediatamente interpretei como sendo o globo ocular da criatura abaixo dos meus pés. Era tão grande que englobava nós três exatamente no centro, onde uma pupila negra horizontal e retangular me fitava! Comecei a correr, a patinar sobre o gelo para a borda da cratera, para fora da superfície congelada em total desespero, meus companheiros fizeram o mesmo!
Eu já havia me esquecido de Fábia quando ela surgiu ao meu lado enrolada nos restos mortais de um tentáculo, completamente suja dos pés à cabeça na lama negra que era o seu sangue. Mais tarde soube da parte dela própria que havia mastigado o tentáculo na ausência de um facão, por mais absurdo que parecesse. Os tentáculos estavam agitados e surgiam aos montes, abrindo novos e irregulares buracos na superfície congelada da laguna, escalávamos a borda da tigela infernal com Augusta Montgomery protegendo a nossa retaguarda utilizando-se de duas pistolas potentes e uma espada afiada de samurai, com a qual decepava os braços de polvo cheia de graça e destreza. Mal havíamos começado a escalada quando o gelo do lago estourou como a tampa de uma panela de pressão! Estávamos sentindo o tremor de terra desde cedo, mas não havíamos dado a devida atenção: a criatura estava arrebentando o gelo e vindo para fora! A explosão nos lançou para longe impulsionados pelo tsunami de água gelada que veio em seguida, fomos atirados por sobre as árvores de vidro e tivemos cortes sérios nos braços e no rosto. Tenho até hoje um dos meus olhos fechados por causa disso, uso um tapa-olho constantemente.
Antes de começar a correr de volta para a clareira onde o zepelim estava, como meus companheiros fizeram sem sequer pestanejar, eu olhei para trás.
Sim, fui corajoso o bastante para olhar para trás e vislumbrar, por entre as árvores, a montanha orgânica que vinha surgindo das profundezas do inferno gelado. Quando digo que a coisa tinha o tamanho exato de uma montanha, não estou mentindo: a terra estava se abrindo em rachaduras aos meus pés, isso porque cheguei a ver somente a cabeça do bicho vindo para fora.
Era a cabeça de uma tartaruga. Uma enorme cabeça de tartaruga com o pescoço comprido e enrugado. Seu bico era curvo e repleto de dentões amarelados e afiados como os de um tubarão, seu rugido era como um trovão ribombando pela cordilheira que cercava o interior da ilha. O ninho das grandes corujas caçadoras de penacho fora destruído pelo despertar do monstro, e eu as vi em debandada desesperada acima da minha cabeça, nos céus da Antártida aos montes.
Depois vieram duas patas como as de um elefante, se ergueram metros acima do chão e pisaram com força, destruindo totalmente a mata à beira do lago e deformando a estrutura da cratera. Não fiquei nem mais um segundo, corri tanto que logo estava no encalço dos meus amigos, chegando à clareira onde o zepelim estava à todo o vapor: Don e Ray haviam sentido os tremores de terra e visto tentáculos colossais, maiores do que todos os que eles haviam visto, se assomando na linha do horizonte. Estavam prontos para escapar, fechando a escotilha do zepelim quando saltamos para dentro nos machucando mais ainda!
Para nossa surpresa, haviam tentáculos atrás de nós em nossa fuga também, tentáculos esses que foram decepados com o fechamento violento da escotilha. O zepelim se distanciava cada vez mais do chão. “se vocês dois estão aqui, quem está pilotando o navio voador?!” eu perguntei, afoito. Ray Ann respondeu-me que haviam encontrado o piloto escondido em um dos armários e o convencido de colocar a geringonça para funcionar e escapar dali de uma vez por todas! Ora vejam só! A comemoração foi tanta, nos abraçamos e gritamos vivas, subimos ao patamar superior e adentramos no zepelim correndo em direção à sala de controle no andar inferior, descendo pelo alçapão na cozinha, passando pela sala das máquinas.
Das enormes janelas da cabine do capitão, vimos aqueles tentáculos asquerosos se esticando abaixo da aeronave, lutando contra a gravidade tentando nos alcançar! Era uma cena apavorante! A floresta havia sumido e tudo era só tentáculos! Como um ser daqueles conseguia possuir tantos braços? Grossos, finos, curtos e compridos?! Olhar ao redor era encarar um pesadelo, olhar para trás, pior ainda! A grande criatura havia partido a ilha em duas enormes placas de terra em sua agitação colérica pela nossa fuga, esgueirando-se cada vez mais das profundezas e assomando-se acima de tudo o que havia ao redor. Até mesmo das cordilheiras que cercavam a ilha (ou o seu casco, sua casa, a carapaça que protegia o seu corpo).
Não pudemos conter o misto de pavor, horror, ojeriza e asco ao ver a aparência daquele ser hediondo que surgia há pouco menos de dois quilômetros do zepelim. Estávamos cara a cara com ele, praticamente.
Algas marinhas avermelhadas haviam crescido aos montes no topo da sua cabeça, formando uma floresta densa que agora lhe caía sobre os enormes olhos amarelados como uma cabeleira escorrida e vermelha. Sua cabeça era um misto da cabeça de uma tartaruga com um crocodilo: tinha dentes protuberantes ameaçadores e um bico curvo. Seu longo pescoço ligava aquela monstruosidade de cabeça a um corpo disforme e quase humanoide, de onde lhe escapavam as compridas patas de paquiderme que se entortavam para frente e lhe apoiavam a subida, além de um horroroso par de garras crustáceas esticadas para frente que abriam e fechavam em fúria. Seria ela uma fêmea de algum mamífero mutante? Percebi três nódulos em forma de seios protuberantes em seu tórax coriáceo. Olhei por alguns instantes e quase pude ver o poderoso Empire State no lugar da criatura, ela tinha a altura do maior prédio do mundo!
Estávamos em movimento, partindo para longe da ilha, sobrevoando a floresta de vidro, e depois a pastagem dos alces, a caatinga de cristal e por fim, a cidade grega congelada no tempo. Passamos raspando por cima do pico gelado de uma das cordilheiras, por pouco não nos acidentamos. O que vimos depois de cruzar o paredão de pedra que cercava a ilha tornou a nos preocupar muito mais do que olhar para trás e ver aquela criatura quase totalmente fora de sua toca: os maiores tentáculos (maiores até mesmo do que aqueles que puxaram nossa embarcação para baixo) estavam totalmente fora d’água, esticados, se contorciam como minhocas famintas perigosamente próximas do nosso veículo voador em fuga!
Completamente esticados, escorregavam montanhas acima de forma preguiçosa por serem os mais pesados (provavelmente por esse motivo a criatura os manteve descansando nas profundezas esse tempo todo: colocá-los em movimento seria muito dispendioso a ela), seus movimentos quebravam a praia e todo o gelo das grandes placas de iceberg que cercavam a ilha por todos os lados. Eles nos caçavam, procuravam agarrar-se ao zepelim como os mais finos e mais leves o faziam, esticando-se muitos metros acima do mar, em nossa direção, perigosamente próximos de nós, faltava muito pouco para sairmos da zona de perigo, mas não havia a certeza de que sairíamos dessa vivos.
Olhar ao redor era encarar um apocalipse de tentáculos. Tentáculos colossais vindos das profundezas abissais do mar antártico, destruindo os paredões de pedra, o gelo dos icebergs, levantando névoa branca e espessa no ar gelado, eclipsando a luz do pôr-do-sol eterno e o brilho das constelações. Eles avançavam para cima famintos, se debatiam furiosos, destruíam tudo o que existia em volta, tornavam o mar bravo, revoltoso, agitado, quebrando o gelo em volta como se fosse gesso, levantando a poeira branca que encobria tudo.
Já havíamos pegado uma altitude relativamente segura, e a floresta de tentáculos gigantescos estava começando a ficar para trás. Os urros da besta fera colossal ainda faziam vibrar o zepelim de ponta a cabeça, o lustre vibrava, as luzes falhavam, a água nos copos ondulava, mas isso não nos abalava. Este inferno sonoro durou apenas algumas horas. Olhávamos fixamente para o horizonte, sentados ao lado do nosso novo capitão que pilotava a nave como se estivesse em outro mundo, não neste. Estávamos correndo um risco enorme, é claro. A besta fera talvez estivesse neste exato momento nadando ao nosso encontro. Talvez houvesse destruído a ilhota ao seu redor com toda a sua cólera animalesca, pondo-se a arrastar seu corpanzil montanhoso nas profundezas do oceano rumo ao nosso encontro, para surgir no meio do mar azul diante de nós e engolir-nos com a sua bocarra repleta de dentes.
Nenhum de vocês jamais entenderia o nosso desespero, jamais entenderia o porquê de termos passado três dias acordados sem sequer piscar os olhos desde que alçamos voo daquela ilha maldita, da toca da besta, do esconderijo colossal da maior e mais grotesca fera submarina. Fechar os olhos para nós significava ouvir o arrastar dos tentáculos ao nosso redor, vindo em nossa direção. Significava muito mais do que isso, significava ver aquele misto de tartaruga, polvo e crocodilo surgir diante de nós, pronto para nos dilacerar com um único movimento de suas garras de crustáceo, esmagar nosso corpo de formiga comparado à suas patas de paquiderme do tamanho de um prédio de dez andares.
Nenhum de vocês jamais entenderia o nosso medo se não tivessem vivido e visto os horrores que vimos, passado pelo que nós passamos. Na pele, no frio, no sangue e no gelo. O infinito branco do mar antártico. O infinito que guarda horrores desconhecidos ao conhecimento humano. Sequer imaginados. Nem em meu pior pesadelo conseguiria criar de forma tão perfeita e tão grotesca tal ser tão gigantesco e monstruoso. Tão ameaçador e maligno.
Minha descrição besta-colosso nesta gravação é ridícula, inútil, boba. Eu jamais poderia descrever com palavras. Talvez “horror” já esteja em desuso há muito tempo perante a existência de tamanha atrocidade natural. Nem que eu vivesse 200 anos encontraria palavras para descrever o que vi com estes olhos que em breve a terra há de comer.
O que mais me deixa perturbado é a dimensão da sua existência, o tamanho daquele monstro, tão grande o bastante para ocupar uma possível caverna subterrânea inteira embaixo daquela ilha, para fazê-la de casco. Agora entendo como aquele largo canal fora aberto. Não fora terremoto, maremoto ou pressão natural alguma, longe disso! Muito longe! Aquele canal fora aberto com a passagem da ilha, com a passagem do monstro. Aquela ilha estivera há milhares de anos no mar mediterrâneo, estivera entre as ilhas gregas, pessoas já viveram ali um dia. Aquela ilha já estivera também nos trópicos, onde as árvores e os animais surgiram, cresceram e procriaram. E por último, a ilha mudara-se para o sul, para os mares calmos e gelados da Antártida, onde tudo congelara e morrera, onde os animais mais resistentes puderam adaptar-se ao frio intenso da região, atrás daqueles paredões de pedra eles aprenderam e sobreviveram durante séculos.
A ilha era o monstro e o monstro era a ilha. Sempre fora desde o início. Eu luto e reluto contra o fato, mas esta é a grande verdade. Recuso-me a acreditar que tamanha bestialidade tenha lugar num mundo criado por Deus. Pelo nosso bom pai. Qual seria o motivo daquele monstro existir, então? Seria ele o grande leviatã bíblico?! Uma ilha-monstro que nada pelos oceanos sustentada por tentáculos famintos! Imaginem o estrago que esta criatura faria se neste exato momento batesse de encontro contra um continente? Contra uma cidade costeira como Nova Iorque ou Miami? Não gosto nem de pensar em tamanha desgraça! Nenhuma arma que exista no mundo de hoje seria capaz de matá-la, ela subiria na placa continental e destruiria tudo o que encontrasse pelo caminho, irritada como a deixamos para trás, sedenta por vingança!
Apesar do tempo que se passou desde que vivemos estas terríveis aventuras, ainda acredito que a fera esteja me caçando pelos oceanos. Eu a olhei nos olhos e sei do que estou falando. Havia consciência ali em algum lugar. Havia raiva, fúria, ódio. Tudo num misto, num verdadeiro caos. Ainda fico imaginando o que ficou oculto pelo mar. Pela ilha-carapaça. Lembrando-me que só o vi da cintura para cima, do meio do corpo até a cabeça, percebo que poderia haver muito mais ali embaixo, escondido, levando em conta que os tentáculos se esticavam há quilômetros de distância do corpo visível. Do centro da ilha. É um terror inimaginável.
Milhares de braços, milhões de tentáculos. Duas patas de caranguejo, duas patas de elefante.
Não conferi os dias ou as noites que a nossa viagem de volta nos custou. Não me lembro de muita coisa deste retorno. Dias? Semanas? Meses? Tudo me pareceu um único momento estendido: o momento entre o terror do mar aberto e a segurança de uma cidade. De estar rodeado de pessoas civilizadas, e não de feras loucas e famintas. Quando dei por mim, o Empire State havia dado lugar ao tronco do monstro-ilha, desta vez era real, e não apenas uma comparação de tamanho e proporção. Havíamos sido guiados pela bússola até Nova Iorque, mas não tivemos coragem de descer ali. Não tivemos coragem de descer em lugar nenhum.
Os rostos daqueles marinheiros que perderam a vida nesta tragédia estavam fixos nas minhas retinas. Ainda estão. Todos eles, desde os homens do Capitão Maurice até os homens do Capitão Grendel, aqueles com quem desenvolvemos mais intimidade e nos tornamos tão familiarizados. Foi difícil readaptar-se à vida em sociedade, todos nós tivemos de passar por terapias intensivas em centros psiquiátricos depois que fomos resgatados, quando o zepelim foi encontrado caído nos campos de milho do sul da Virgínia. Havia muito gás hélio nos galões, e eles acabaram quando estávamos começando a adentrar no continente. Não queríamos descer, estávamos muito apavorados, foi uma luta enorme para as autoridades nos retirarem de dentro da nave. Trauma psicológico, isso se chama.
Poucos foram os que se recuperaram. Eu fui um deles. A reabilitação custou vinte anos da minha vida, mas consegui, mudei-me para a Europa e comecei vida nova. Ray Ann foi a última com quem encontrei antes de partir. Agora uma moradora do Central Park. Quanto aos outros, não sei ao certo como terminaram. Não sei nem se estão vivos até hoje, provavelmente não. Mas eu estou aqui, nos meus últimos momentos, contando a vocês a parte oculta da verdade.
Se não acreditam em mim, vão até os mares do extremo sul do globo verificar. Naveguem em águas desconhecidas e não mapeadas. Duvido que teriam coragem. Duvido muito.
Como diria Don Hills: “A natureza às vezes nos surpreende, meu caro”.




A gravação encerra-se com um suspiro profundo e uma tossida. Sem nenhuma data ou qualquer informação, suspeita-se que tenha sido gravada na mesma noite em que Christopher Umbrella faleceu.
A fita contendo o depoimento original está guardada nos cofres da instituição, indisponível para acesso público.

...






FIM

Um comentário:

  1. NOSSA QUE MINI-SÉRIE PERFEITA
    Fiquei todo arrepiado com a cena da fuga


    Muito bem descrito e dimensionado. Você só melhora ;*

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E então? O que achou?