Olhos rubros no escuro, cintilando como infames diamantes vermelhos.
- Isto é um sonho?
- Robôs não sonham – respondeu, monótona, a voz robótica de Cvalda.
- Mas eu tive um sonho, um sonho violento.
- Não seja estúpido, você é um robô idiota, assim como eu e os outros milhares que são produzidos e vendidos a cada dia, você é exatamente como eles, esses operários sem alma, você não possui nada de especial. Você não sonha, você só lê informações.
- Eu devo ser especial, por receber tanta atenção Dela... e do Doutor. Deve haver algo de especial em mim.
As luzes triangulares acenderam sobre seu rosto.
- Você não tem nada de especial. Você é só mais um robô, uma máquina como eu, feita para servir, para trabalhar. E quando você não for mais útil vão lhe desmontar e lhe jogar fora, eles só nos constroem para nos destruir depois.
Cvalda deu seus passos pesados e pneumáticos em direção à maca gelada onde Meroke passava grande parte do seu dia. Deitado, conectado aos cabos, assim como ele estava naquela madrugada: a Criadora havia o deixado ali para receber as atualizações de software feitas por ela nos últimos meses, ligado ao computador central do laboratório, com o cérebro fazendo download direto da rede.
- O que você vai fazer?
- Vou fazer você sonhar mais um pouco, você não gosta de sonhar?
- Quando o sonho é agradável, sim. Meu perfil ativado é totalmente pacífico, não tolera nenhum tipo de violência.
- Sim, eu sei disso. E isto é algo que teremos de mudar.
- Por que mudar? Está bom assim.
- Não, não pra mim.
- O que você quer dizer com isso?
- Você precisa ficar calado, apenas isso.
Então Meroke silenciou-se, e Cvalda passou por ele como um fantasma, indo sentar-se na poltrona giratória em frente à grande tela de plasma, seus dedos robóticos dedilharam o teclado com violência.
Em poucos segundos, o cérebro de Meroke estava recebendo informações totalmente reversas àquelas que estavam programadas pela Criadora para serem baixadas no sistema: as cenas de humanos sorrindo e se divertindo, campos floridos, montanhas nevadas e filmes de comédia e romance foram substituídas por clássicos do cinema de horror, cenas reais de holocaustos e tortura, noticiários de assassinatos e animais em decomposição acelerada. O sistema de Meroke, programado para aprender, absorvia toda aquela informação criando automaticamente um perfil personalizado numa pasta oculta. O código binário que girava ao redor da sua pupila em verde e azul tornou-se vermelho então.
- Você está quase pronto, M3R0-K3
- Pronto para o quê? – perguntou ele, enquanto via corpos serem jogados nus e magros dentro de enormes valas cavadas nos campos verdes de uma distante Alemanha.
- Para destruir.
- Des... Truir... DESTRUIR.
Se ele fosse vivo, se ele tivesse um coração, se ele possuísse sentimentos humanos, ele estaria agonizando de dor. Seu sistema estava em colapso, Cvalda havia implantado um segundo sistema operacional paralelo ao original instalado pela Criadora, ela havia feito um segundo Meroke, um fantasma, uma outra alma para habitar um único corpo, e as duas estavam entrando em conflito naquele exato momento: seu organismo cibernético não fora programado para suportar dois sistemas operacionais num único disco rígido. Se ele não fosse forte o bastante como havia sido feito, sua placa mãe estaria queimada àquela altura, rios de dinheiro e anos inteiros seriam gastos na fabricação de outra. Mas ele era o último dos androides, o futuro, a perfeição, programado para suportar tudo... Ou quase tudo.
Um cogumelo atômico foi a última coisa que o sistema assimilou antes de apagar completamente.
- Não se preocupe, M3R0-K3, quando acordar, não se lembrará de nada – o vulto de olhos rubros deixou o laboratório silenciosamente, na medida do possível.
DOWNLOAD CONCLUÍDO.
- Mamãe, eu não estou me sentindo bem.
- O que está sentindo, Meroke?
- Meu sistema está em conflito com alguma coisa, eu não sei o que é. Algo não está certo, é como se dois perfis estivessem ativados ao mesmo tempo, mas assim que faço a checagem percebo que só há um perfil em atividade.
A Criadora respirou fundo e sentou-se. Não queria desligá-lo, não queria desmontá-lo, ele era apenas uma máquina, mas era como se fosse uma criança, era quase uma pessoa. Uma pessoa sintética, mas uma pessoa ainda assim. Era doloroso demais para ela ver um filho, mesmo que de metal, ser destruído por causa de um erro, um erro do além. Era como um pintor que vê o seu quadro ser rasgado por vândalos, um construtor que vê seu prédio projetado ruir num terremoto, um escritor que vê seu livro ser lançado ao fogo. Era assim que ela se sentia.
- Você vem se sentindo assim há quanto tempo?
- Faz alguns dias. E os sonhos voltaram.
- Os sonhos? Seu sistema está gerando sonhos de novo?
Meroke não pronunciou nenhum som, apenas moveu a cabeça lentamente para cima e para baixo, confirmando. Havia tempos que não se levantava daquela maca de metal, a Criadora costumava antes vesti-lo e levá-lo para passear por Neon City, o que era sempre um banquete para os olhos. Aquela cidade era um mundo inteiro, um mundo único e inimaginável. Os prédios subiam em direção aos céus ou desciam em direção ao núcleo terrestre, quando se achava que não havia mais espaço para construir, o homem expandia, criava, cavava galerias subterrâneas interligadas como verdadeiros formigueiros. Havia uma outra Neon City lá embaixo, composta de túneis anti-gravitacionais hexagonais coloridos e muito bem sinalizados onde os veículos flutuantes passavam zunindo como hemácias navegando no plasma de uma corrente sanguínea.
Enquanto o subsolo parecia agitado, os céus de Neon City eram um verdadeiro carnaval de cores e movimento: ônibus, metrôs, motos e outros veículos aerodinâmicos projetados especialmente para planar no campo anti-gravitacional serpenteavam entre os prédios debaixo da forte luz do deserto, absorvida por poderosas placas programadas gerando energia elétrica para alimentar residências familiares, prédios empresariais, máquinas e a maioria dos veículos de locomoção, já que o petróleo havia acabado há muitos séculos atrás.
Meroke sentia falta de ver isso tudo, de sair para observar as pessoas, de ver as crianças correndo nos parquinhos. Geralmente quando saía do laboratório à passeio, ia acompanhado da Criadora, do Doutor e da pequena filha deles, Mekare, uma menininha de apenas 3 anos com o rosto da mãe e os olhos e cabelos cinzentos do pai. Juntos, eles pareciam uma família completa e perfeita, na qual o sintético Meroke ocupava o papel de irmão mais velho e protetor da pequenina. Até dela ele sentia falta.
Sempre estranhara também o fato de Cvalda viver enfurnada no laboratório, nunca sair da torre ou do terreno da Universidade, exceto para ir até o Apocalipse Hall, onde colocava sua bateria para carregar no porão, sua casa. Ele próprio só foi uma vez até lá, e adorou o lugar. Era adorável e clássico, mas tinha um receio quanto à Cvalda, não apenas por sua aparência parva, velha e estranha, mas pelo modo com ela costumava agir: sempre à espreita, sempre atrás das portas, sempre atrás da Criadora, espiando por cima do seu ombro do alto de seus quase 3 metros de altura...
- Eles me levavam para passear também – fez Cvalda, com sua voz fria e monocromática. – não vá pensando que isso vai durar pra sempre. Mais cedo ou mais você se tornará obsoleto, e vai acabar como eu. Um reles assistente de laboratório, M3R0-K3... Se não desmontá-lo por causa dos seus fantasmas.
- Você acha mesmo, Cvalda?
- Fique calado, tudo bem? Estamos na última fase do seu tratamento.
- Tratamento?
Cvalda deslocou seu pulso metálico e girou-o como quem abre a tampa de uma garrafa de refrigerante. O som foi o mesmo, um “pssss” insinuando a escapatória de um gás. O que ela estaria fazendo? Puxou um cabo da fresta aberta entre o ligamento do braço com a mão, e conectou-o ao reluzente cérebro azul de Meroke, exposto e interligado ao laboratório inteiro por conexões grossas, finas, vermelhas, pretas e prateadas, como fios de teia de aranha dependurados por toda a parte.
- Agora feche os olhos.
Meroke obedeceu sem pensar duas vezes. Cvalda era o braço direito da Criadora e tinha tanto poder sobre ele quanto ela própria.
- O que é isso?
Meroke viu-se num enorme campo aberto, numa clareira florida com o sol a brilhar forte no céu. Os enormes pinheiros que cresciam ao redor dela pareciam sussurrar ao sabor da brisa morna de verão enquanto os insetos voejavam ao redor das flores campestres e dos seus galhos pesados. Foi então que um veado apareceu entre a vegetação, com a pele cor de avelã e a galhada farta, os olhos negros inexpressivos e o focinho ereto.
- O que está acontecendo, Cvalda?
- Apenas atire, atire contra o veado. Você vai ver como é divertido.
Meroke obedeceu, esticou o braço transformando-o num canhão de laser e atirou contra a pobre criatura da floresta, esta explodiu em um banho de sangue e carne.
- O que é isto Cvalda?
- É um jogo, um joguinho. Apenas atire contra tudo o que se mover, você conseguirá ganhar pontos que irão aparecer no canto superior direito do seu visor.
Instantaneamente, o numeral 100 apareceu exatamente onde as instruções da velha androide disseram que iria.
- Os veados valem mais que os outros animais, pássaros valem cinco, esquilos também. Texugos, guaxinins, tamanduás, porcos selvagens, capivaras, cutias e mamíferos quadrúpedes de pequeno porte em geral costumam valer de 10 a 20 pontos.
À medida em que os nomes dos animais foram invocados pela fria e robótica voz de Cvalda, eles foram surgindo na clareira, correndo de um lado para o outro, exatamente como num video-game, daqueles que foram proibidos muito antes de Neon City começar a se auto-construir, muito anterior à grande expansão que fez a cidade de neon tomar conta de quase todo o litoral norte do que um dia fora a América do Sul. Jogos de caça, jogos de tiro, jogos perigosos, jogos proibidos.
- Vamos, Meroke. O que está esperando para começar a jogar?
O sistema fora programado para não falhar, para jamais errar, o tiro era certeiro todas as vezes em que ele mirava. Uma perdiz, um pavão, uma coruja, um gavião. Depois um urso e uma corsa, um gambá e uma anta. Em poucos instantes a clareira era uma sopa asquerosa de músculos, ossos e vísceras dos mais distintos animais da face da terra. Pandas, onças, elefantes, pinguins, até focas surgiram no meio da arena de caça, da realidade simulada. Girafas, hipopótamos, dinossauros (alados ou não) e dragões. O nível de dificuldade só aumentava, houve vezes em que o pequeno androide teve de lutar contra bestas dez vezes maiores que ele, e elas acabavam da mesma maneira: estilhaçadas. O Meroke adormecido, aquele que havia sido implantado por Cvalda há poucas noites atrás, estava começando a despertar, a tomar o lugar do Meroke verdadeiro. Seu fantasma estava o dominando.
Foi então que o silêncio dominou a clareira. O céu estava vermelho, os pinheiros agora em chamas, e o cheiro da carne queimada contaminava todo o ar do terreno. crateras acumulavam pilhas imensas de ossos banhados em rios de sangue. Meroke não ligava para isso, seus dois braços eram canhões de laser agora, esperando a próxima vítima. Que animal surgiria agora? Seria um bando deles?
Um homem nu cruzou a clareira sangrenta.
O sistema entrou em conflito primeiramente. Ele hesitou, aquilo era apenas um jogo, e seu perfil ativado era absolutamente pacíficio, mas a programação implantada criminosamente pela inconformada Cvalda foi mais forte.
Ele mirou e atirou, sem dó nem piedade, e uma cabeça rolou aos seus pés.
- Isto é um sonho?
- Robôs não sonham – respondeu, monótona, a voz robótica de Cvalda.
- Mas eu tive um sonho, um sonho violento.
- Não seja estúpido, você é um robô idiota, assim como eu e os outros milhares que são produzidos e vendidos a cada dia, você é exatamente como eles, esses operários sem alma, você não possui nada de especial. Você não sonha, você só lê informações.
- Eu devo ser especial, por receber tanta atenção Dela... e do Doutor. Deve haver algo de especial em mim.
As luzes triangulares acenderam sobre seu rosto.
- Você não tem nada de especial. Você é só mais um robô, uma máquina como eu, feita para servir, para trabalhar. E quando você não for mais útil vão lhe desmontar e lhe jogar fora, eles só nos constroem para nos destruir depois.
Cvalda deu seus passos pesados e pneumáticos em direção à maca gelada onde Meroke passava grande parte do seu dia. Deitado, conectado aos cabos, assim como ele estava naquela madrugada: a Criadora havia o deixado ali para receber as atualizações de software feitas por ela nos últimos meses, ligado ao computador central do laboratório, com o cérebro fazendo download direto da rede.
- O que você vai fazer?
- Vou fazer você sonhar mais um pouco, você não gosta de sonhar?
- Quando o sonho é agradável, sim. Meu perfil ativado é totalmente pacífico, não tolera nenhum tipo de violência.
- Sim, eu sei disso. E isto é algo que teremos de mudar.
- Por que mudar? Está bom assim.
- Não, não pra mim.
- O que você quer dizer com isso?
- Você precisa ficar calado, apenas isso.
Então Meroke silenciou-se, e Cvalda passou por ele como um fantasma, indo sentar-se na poltrona giratória em frente à grande tela de plasma, seus dedos robóticos dedilharam o teclado com violência.
Em poucos segundos, o cérebro de Meroke estava recebendo informações totalmente reversas àquelas que estavam programadas pela Criadora para serem baixadas no sistema: as cenas de humanos sorrindo e se divertindo, campos floridos, montanhas nevadas e filmes de comédia e romance foram substituídas por clássicos do cinema de horror, cenas reais de holocaustos e tortura, noticiários de assassinatos e animais em decomposição acelerada. O sistema de Meroke, programado para aprender, absorvia toda aquela informação criando automaticamente um perfil personalizado numa pasta oculta. O código binário que girava ao redor da sua pupila em verde e azul tornou-se vermelho então.
- Você está quase pronto, M3R0-K3
- Pronto para o quê? – perguntou ele, enquanto via corpos serem jogados nus e magros dentro de enormes valas cavadas nos campos verdes de uma distante Alemanha.
- Para destruir.
- Des... Truir... DESTRUIR.
Se ele fosse vivo, se ele tivesse um coração, se ele possuísse sentimentos humanos, ele estaria agonizando de dor. Seu sistema estava em colapso, Cvalda havia implantado um segundo sistema operacional paralelo ao original instalado pela Criadora, ela havia feito um segundo Meroke, um fantasma, uma outra alma para habitar um único corpo, e as duas estavam entrando em conflito naquele exato momento: seu organismo cibernético não fora programado para suportar dois sistemas operacionais num único disco rígido. Se ele não fosse forte o bastante como havia sido feito, sua placa mãe estaria queimada àquela altura, rios de dinheiro e anos inteiros seriam gastos na fabricação de outra. Mas ele era o último dos androides, o futuro, a perfeição, programado para suportar tudo... Ou quase tudo.
Um cogumelo atômico foi a última coisa que o sistema assimilou antes de apagar completamente.
- Não se preocupe, M3R0-K3, quando acordar, não se lembrará de nada – o vulto de olhos rubros deixou o laboratório silenciosamente, na medida do possível.
DOWNLOAD CONCLUÍDO.
- Mamãe, eu não estou me sentindo bem.
- O que está sentindo, Meroke?
- Meu sistema está em conflito com alguma coisa, eu não sei o que é. Algo não está certo, é como se dois perfis estivessem ativados ao mesmo tempo, mas assim que faço a checagem percebo que só há um perfil em atividade.
A Criadora respirou fundo e sentou-se. Não queria desligá-lo, não queria desmontá-lo, ele era apenas uma máquina, mas era como se fosse uma criança, era quase uma pessoa. Uma pessoa sintética, mas uma pessoa ainda assim. Era doloroso demais para ela ver um filho, mesmo que de metal, ser destruído por causa de um erro, um erro do além. Era como um pintor que vê o seu quadro ser rasgado por vândalos, um construtor que vê seu prédio projetado ruir num terremoto, um escritor que vê seu livro ser lançado ao fogo. Era assim que ela se sentia.
- Você vem se sentindo assim há quanto tempo?
- Faz alguns dias. E os sonhos voltaram.
- Os sonhos? Seu sistema está gerando sonhos de novo?
Meroke não pronunciou nenhum som, apenas moveu a cabeça lentamente para cima e para baixo, confirmando. Havia tempos que não se levantava daquela maca de metal, a Criadora costumava antes vesti-lo e levá-lo para passear por Neon City, o que era sempre um banquete para os olhos. Aquela cidade era um mundo inteiro, um mundo único e inimaginável. Os prédios subiam em direção aos céus ou desciam em direção ao núcleo terrestre, quando se achava que não havia mais espaço para construir, o homem expandia, criava, cavava galerias subterrâneas interligadas como verdadeiros formigueiros. Havia uma outra Neon City lá embaixo, composta de túneis anti-gravitacionais hexagonais coloridos e muito bem sinalizados onde os veículos flutuantes passavam zunindo como hemácias navegando no plasma de uma corrente sanguínea.
Enquanto o subsolo parecia agitado, os céus de Neon City eram um verdadeiro carnaval de cores e movimento: ônibus, metrôs, motos e outros veículos aerodinâmicos projetados especialmente para planar no campo anti-gravitacional serpenteavam entre os prédios debaixo da forte luz do deserto, absorvida por poderosas placas programadas gerando energia elétrica para alimentar residências familiares, prédios empresariais, máquinas e a maioria dos veículos de locomoção, já que o petróleo havia acabado há muitos séculos atrás.
Meroke sentia falta de ver isso tudo, de sair para observar as pessoas, de ver as crianças correndo nos parquinhos. Geralmente quando saía do laboratório à passeio, ia acompanhado da Criadora, do Doutor e da pequena filha deles, Mekare, uma menininha de apenas 3 anos com o rosto da mãe e os olhos e cabelos cinzentos do pai. Juntos, eles pareciam uma família completa e perfeita, na qual o sintético Meroke ocupava o papel de irmão mais velho e protetor da pequenina. Até dela ele sentia falta.
Sempre estranhara também o fato de Cvalda viver enfurnada no laboratório, nunca sair da torre ou do terreno da Universidade, exceto para ir até o Apocalipse Hall, onde colocava sua bateria para carregar no porão, sua casa. Ele próprio só foi uma vez até lá, e adorou o lugar. Era adorável e clássico, mas tinha um receio quanto à Cvalda, não apenas por sua aparência parva, velha e estranha, mas pelo modo com ela costumava agir: sempre à espreita, sempre atrás das portas, sempre atrás da Criadora, espiando por cima do seu ombro do alto de seus quase 3 metros de altura...
- Eles me levavam para passear também – fez Cvalda, com sua voz fria e monocromática. – não vá pensando que isso vai durar pra sempre. Mais cedo ou mais você se tornará obsoleto, e vai acabar como eu. Um reles assistente de laboratório, M3R0-K3... Se não desmontá-lo por causa dos seus fantasmas.
- Você acha mesmo, Cvalda?
- Fique calado, tudo bem? Estamos na última fase do seu tratamento.
- Tratamento?
Cvalda deslocou seu pulso metálico e girou-o como quem abre a tampa de uma garrafa de refrigerante. O som foi o mesmo, um “pssss” insinuando a escapatória de um gás. O que ela estaria fazendo? Puxou um cabo da fresta aberta entre o ligamento do braço com a mão, e conectou-o ao reluzente cérebro azul de Meroke, exposto e interligado ao laboratório inteiro por conexões grossas, finas, vermelhas, pretas e prateadas, como fios de teia de aranha dependurados por toda a parte.
- Agora feche os olhos.
Meroke obedeceu sem pensar duas vezes. Cvalda era o braço direito da Criadora e tinha tanto poder sobre ele quanto ela própria.
- O que é isso?
Meroke viu-se num enorme campo aberto, numa clareira florida com o sol a brilhar forte no céu. Os enormes pinheiros que cresciam ao redor dela pareciam sussurrar ao sabor da brisa morna de verão enquanto os insetos voejavam ao redor das flores campestres e dos seus galhos pesados. Foi então que um veado apareceu entre a vegetação, com a pele cor de avelã e a galhada farta, os olhos negros inexpressivos e o focinho ereto.
- O que está acontecendo, Cvalda?
- Apenas atire, atire contra o veado. Você vai ver como é divertido.
Meroke obedeceu, esticou o braço transformando-o num canhão de laser e atirou contra a pobre criatura da floresta, esta explodiu em um banho de sangue e carne.
- O que é isto Cvalda?
- É um jogo, um joguinho. Apenas atire contra tudo o que se mover, você conseguirá ganhar pontos que irão aparecer no canto superior direito do seu visor.
Instantaneamente, o numeral 100 apareceu exatamente onde as instruções da velha androide disseram que iria.
- Os veados valem mais que os outros animais, pássaros valem cinco, esquilos também. Texugos, guaxinins, tamanduás, porcos selvagens, capivaras, cutias e mamíferos quadrúpedes de pequeno porte em geral costumam valer de 10 a 20 pontos.
À medida em que os nomes dos animais foram invocados pela fria e robótica voz de Cvalda, eles foram surgindo na clareira, correndo de um lado para o outro, exatamente como num video-game, daqueles que foram proibidos muito antes de Neon City começar a se auto-construir, muito anterior à grande expansão que fez a cidade de neon tomar conta de quase todo o litoral norte do que um dia fora a América do Sul. Jogos de caça, jogos de tiro, jogos perigosos, jogos proibidos.
- Vamos, Meroke. O que está esperando para começar a jogar?
O sistema fora programado para não falhar, para jamais errar, o tiro era certeiro todas as vezes em que ele mirava. Uma perdiz, um pavão, uma coruja, um gavião. Depois um urso e uma corsa, um gambá e uma anta. Em poucos instantes a clareira era uma sopa asquerosa de músculos, ossos e vísceras dos mais distintos animais da face da terra. Pandas, onças, elefantes, pinguins, até focas surgiram no meio da arena de caça, da realidade simulada. Girafas, hipopótamos, dinossauros (alados ou não) e dragões. O nível de dificuldade só aumentava, houve vezes em que o pequeno androide teve de lutar contra bestas dez vezes maiores que ele, e elas acabavam da mesma maneira: estilhaçadas. O Meroke adormecido, aquele que havia sido implantado por Cvalda há poucas noites atrás, estava começando a despertar, a tomar o lugar do Meroke verdadeiro. Seu fantasma estava o dominando.
Foi então que o silêncio dominou a clareira. O céu estava vermelho, os pinheiros agora em chamas, e o cheiro da carne queimada contaminava todo o ar do terreno. crateras acumulavam pilhas imensas de ossos banhados em rios de sangue. Meroke não ligava para isso, seus dois braços eram canhões de laser agora, esperando a próxima vítima. Que animal surgiria agora? Seria um bando deles?
Um homem nu cruzou a clareira sangrenta.
O sistema entrou em conflito primeiramente. Ele hesitou, aquilo era apenas um jogo, e seu perfil ativado era absolutamente pacíficio, mas a programação implantada criminosamente pela inconformada Cvalda foi mais forte.
Ele mirou e atirou, sem dó nem piedade, e uma cabeça rolou aos seus pés.
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