Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

domingo, 6 de novembro de 2011

PART 2: VIOLENT DREAMS



- Mamãe, hoje eu tive um sonho – ressonou Meroke, em sua voz grave, porém carregada de inocência e infantilidade.


A Criadora passou a mão delicadamente pela testa da Criatura. Cvalda olhou de soslaio enquanto acertava os circuitos de uma placa-mãe com os maçaricos embutidos nas pontas dos seus dedos.


- Como você sabe o que é um sonho, Meroke?


- O sonho que eu tive me explicou que ele era um sonho – ele sentou-se na mesa, a estrutura metálica interna da sua nuca totalmente à mostra, a parte traseira do seu crânio cromado havia sido retirada para conectar os cabos alimentadores de informação ao seu cérebro eletrônico.


- Você não sonhou, querido, eu apenas lhe conectei mais cedo aos computadores do laboratório para baixar algumas informações necessárias de aprimoramento dos programas. Não foram sonhos, só humanos sonham, robôs não – ela sorriu amável. Aquilo não era doloroso de se dizer, não mais. Já fora doloroso antes, com os protótipos antigos, mas ela estava tão acostumada a dizer isto para suas crias que não mais lhe perturbava. Nem um pouco.


- Então eu não posso sonhar?


- Não quando estiver desligado. Um dia, quando seu aprimoramento estiver completo, e os testes necessários todos feitos, você poderá fechar os olhos e sonhar se quiser.
Meroke calou-se enquanto a Criadora removia os cabos conectados à cabeça dele e embutia a placa retirada de volta ao lugar. Pronto, Meroke estava inteiro novamente.


- Eu vi coisas estranhas, mamãe.


- Você foi alimentado com uma aula de História e outra de Matemática, meu bem.


- Não, não é disso que estou falando, eu vi coisas estranhas.


A Criadora e Cvalda se entreolharam confusas. Pelo menos a Criadora estava confusa, Cvalda apenas permanecia impassível como sempre, e inexpressiva, mas aproximou-se para ouvir o que seu irmão mais novo tinha a dizer.


- Nos conte sobre seus sonhos, M3R0-K3 – ordenou Cvalda, automática.


Meroke olhou com desconfiança para ela. Nunca havia reparado naquela androide antes, embora os seus olhos rubros estivessem sempre frescos em sua memória.


- No meu sonho eu estava outra vez de volta ao palco – começou Meroke, seus olhos abriram mais que o comum, e uma imagem holográfica foi projetada em tamanho real no espaço vazio à frente. – e aquelas pessoas estavam ali, todas elas, com os olhos vermelhos, brilhando no escuro. Eu atirei em todas elas porque eu não era eu.


A Criadora gelou dos pés à cabeça vendo aquelas cenas sendo reproduzidas ali, diante dela. Aquilo não fazia parte do programa, ele não podia criar imagens, imaginar coisas, não havia sido programado para isso. Que diabos estava acontecendo? Meroke tinha apenas um mês de vida e ainda não havia visto o suficiente para gerar imagens, sequer tinha um programa criador instalado. Aprender e reproduzir, sim. Jamais criar.


- Você não era você?


- Sim, eu estava trabalhando, mas o perfil selecionado era outro. Um perfil que eu não conheço, que não está instalado.


A Criadora afastou-se receosa e procurou pelo telefone celular. Olhando através do meio-globo gigante de vidro que era a janela, discou o número para emergências do tipo.


- Querido? Preciso de você no laboratório, o quanto antes possível, ok?
Alguém respondeu de volta. A voz da pessoa do outro lado da linha soou como o zumbido de uma abelha.


- Sim, é o Meroke – ela ouviu por alguns segundos – acho que ele está com fantasmas.


- Esta é uma suspeita muito grave, querida, você tem de ter certeza absoluta do que você está falando? – disse a voz grave e máscula próxima ao seu ouvido. Agora Meroke sabia de onde sua voz havia vindo. O VOCALOID instalado simulava a voz daquele homem estranho que havia entrado no laboratório, um homem alto, tão alto quanto Cvalda, uma pessoa que ele nunca havia visto antes, tinha os olhos e os cabelos cinzentos com ele, Meroke parecia uma versão mais jovem do companheiro da criadora, seu marido, seu parceiro, seu sócio. Ele tinha barba no rosto e um nariz incrivelmente bem desenhado, e o robô não conseguira tirar os olhos dele desde que entrar no laboratório por nem um segundo sequer. Sua cabeça o acompanhava automaticamente onde quer que ele fosse, como se um ímã o puxasse.


- Ele está tendo sonhos, amor, sonhos, ele não deveria ter sonhos, eu sequer instalei um simulador de sonhos nele, tudo é experimental ainda! – ela estava muito nervosa – e o mais estranho é o tipo de sonho que ele teve. Um sonho mórbido, assustador, terrível! Ele não foi programado para isso!


- Se isto for verdade, bilhões em verbas estão sendo jogados no lixo neste exato momento, a ESFERA vai ordenar o desmanche dele no exato momento em que isso for dado como oficial, e estaremos sobre os holofotes da mídia mais uma vez. Mais uma polêmica em nome da HALKEN e nós quebramos totalmente. – ele retirou os óculos de aro escuro e colocou a mão sobre os olhos. – Meroke.


- Sim, amor – respondeu o robô, deitado em sua maca de metal fria e reluzente, iluminado pelas luzes triangulares do móbile de iluminação.


O homem o olhou confuso.


- O perfil de Aprendizado está ativado, querido – explicou a Criadora, cruzando os braços. – ele não me ouve referindo-se a você pelo nome, nem como “doutor”, então assimilou “amor” como o seu nome...


- Não, eu acho que ele também é meu amor – Meroke interrompeu-a bruscamente, ela aproximou-se dele cautelosamente. Estava ficando mais preocupada, suas sobrancelhas estavam franzidas, mas um sorriso doce estampava seu rosto.


- Meroke, querido, eu o chamo de amor porque sou casada com ele há anos e nos conhecemos intimamente, por esse motivo ele é o meu amor. – ela afastou a cabeleira prateada de sua testa – mas pra você, ele é “doutor”, entendeu?


- Mas amor... Amor não é sinal de submissão? Referir-se a alguém como “Amor” não indica que o outro é superior à você?


- Não, meu bem. Chamar alguém de “amor” denota afeto, carinho, afeição, paixão. Intimidade.


- O que são essas coisas? São sentimentos?


Fez-se silêncio, Meroke estava tendo sua cabeça aberta mais uma vez, e os cabos estavam sendo conectados ao seu cérebro artificial novamente.


- São sim, meu bem.


- E o que é amor?


Ela olhou para seu companheiro, sério do outro lado da sala, teclando violentamente diante da enorme tela do computador central da torre do laboratório. Cvalda, a sempre útil assistente e primeira androide construída pela HALKEN terminava de ligar os cabos de alimentação à Meroke.


- Amor é como bater com o dedo mindinho do pé na quina de uma penteadeira... Só que dói um pouquinho mais.


Ela olhou outra vez para o outro lado da sala. Esperava que seu marido houvesse escutado aquilo, mas ele estava imerso nos mapas do cérebro falso de um dos seus maiores investimentos, abstrato à realidade, rugas de preocupação transfigurando seu rosto, ela era quase um metamorfo. Estava distante assim havia semanas, meses, e a cada dia as mudanças eram maiores.


- Dor. Eu sinto isso?


- Um dia, quem sabe, irá sentir. – beijou-lhe a testa e caminhou suavemente até o marido. Todos os movimentos dela eram suaves.


- Meroke – o doutor o chamou outra vez, e agora ele sabia como responder corretamente.


- Sim, doutor.


- Eu preciso que repita, que reproduza para mim o que você viu em seu sonho, puxe o arquivo e o envie para cá.


Meroke fechou os olhos e quando os abriu, linhas furiosas de códigos binários davam voltas em círculos ao redor da sua pupila. A informação foi transferida rapidamente, e em poucos segundos o doutor assistia ao arquivo de vídeo polêmico, a gravação do sonho de um robô.


Outra vez Meroke viu-se descontrolado, com a ordem de destruição percorrendo cada pequena área do seu sistema. Nada mais importava se não destruir. Destruir a ameaça, destruir os obstáculos, destruir o barulho, a luz, a cor, destruir tudo. A ordem do programa era clara: destrua tudo o que se mover, e era exatamente isto o que ele fazia em seu sonho: fuzilava os congressistas que tentavam fugir, abatendo-os como patos selvagens no voo. Nada mais importava, apenas o cumprimento da sua missão: destruição.


- Mas isto é terrível! – exclamou o doutor.


- Estou preocupada, não sei o que fazer a respeito disso! – foi sua vez de tirar os óculos e cobrir os olhos com as mãos trêmulas. – minha maior obra! Meu trabalho! Meu sonho! Não pode acabar assim!


- Não podemos levá-lo para expor na próxima feira de ciências internacional com essa falha no sistema, isso precisa ser corrigido o quanto antes... Espero sinceramente que isto seja obra de um hacker, de alguma criança brincando num computador qualquer... Fantasmas na máquina são coisas sérias, ninguém até hoje conseguiu explicar como realmente funciona este fenômeno, os cientistas dizem que isto resulta do acúmulo de informações inúteis num sistema operacional antigo que reorganiza os dados como melhor lhe convém. Está certo que Meroke foi programado como uma arma de guerra e muitos comandos de destruição estão desativados, mas ele não é tão antigo a ponto de gerar fantasmas, se este for o caso! Ele possui pouquíssimos meses de vida!


- Vou passar a estimulá-lo de forma diferente a partir de agora – fez a Criadora, respirando fundo – irei transferir informações que estimulem a paz, a calma, a suavidade, talvez isto mude o panorama e o incentive a gerar sonhos... Sonhos menos violentos...


Os dois voltaram-se para Meroke, estendido sobre a maca fria de metal, iluminado pela luz branca dos triângulos do móbile, como na cadeira de um dentista, numa mesa de cirurgia. Ele os observava calmo, curioso, os olhos tão abertos e profundos. Quem saberia quais tipos de informações estariam percorrendo seu processador naquele momento? Um processador tão potente que foi capaz de gerar um sonho... Um sonho violento.


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