Pelo tempo que pareceu-se o arrastar de anos, a mente de Frederico vagou perdida, talvez presa dentro de si própria, condenada a viajar para sempre no âmago de seu ser. Mas era também provável que sua alma estivesse vagando, entre os diferentes mundos que podem ser visitados em espírito, apenas pela força do pensamento elevado às alturas, conectado à enorme massa de consciências que flutua sobre as nossas cabeças, nos concedendo o poder de enviar nossas mentes a distâncias improváveis. Assim Frederico esteve durante o que pareceram horas.
Em uma de suas visões, ele estava de volta à pacata rua onde morava havia alguns anos. Estava escura e muito movimentada, as únicas luzes ali presentes eram provenientes dos pátios das casas da vizinhança... e as das viaturas policiais. Azuis. Vermelhas. Azuis. Vermelhas. Azuis. Vermelhas. Iluminando seu rosto branco uma, duas, três vezes, sempre seguindo a mesma ordem, tornando-o rubro como um pimentão ou anil como o céu do crepúsculo.
Toda a iluminação pública havia estourado repentinamente próximo às nove da noite, foi o que ele ouviu sair da boca de uma senhora de cabelos brancos que estava escorada numa das viaturas policiais, no escuro. Todos os vizinhos haviam saído para averiguar o que havia acontecido, para ver de perto a origem das explosões que espantaram velhos, acordaram crianças, despertaram a ira de animais domésticos até então pacatos. Os gatos não paravam de rosnar, os cachorros uivavam a todo pulmão, e as pessoas aos montes passavam, apavoradas, assustadas, receosas, confusas, falando baixinho com a mão na boca, os olhos bem abertos em expressão de descrédito total no que estava acontecendo.
A casa de Frederico estava ali também, naquele escuro, sem iluminação particular. Mamãe esqueceu de acender a luz do pátio, pensou o rapaz. Aquela era a mesma casa amarela da qual ele se lembrava; janelas de madeira envernizada gradeadas, teto pontiagudo, seu pátio coberto de azulejos azuis, suas cadeiras de balanço azuis e roxas. Tudo estava no lugar, aparentemente. Mas era ali, justamente onde as coisas pareciam mais calmas que a polícia se concentrava. Haviam muitos homens fardados na calçada, escorados nos muros, em rodinhas conversando baixo enquanto três forçavam o cadeado do portão e um deles isolava a área com uma espécie de fita amarela e preta. Como nos filmes policiais, pensou o rapaz.
Segundo testemunhas, passantes e velhotas que estiveram sentadas à janela conversando naquele momento, o clarão de luz azul se originara naquela casa, que estivera silenciosa durante dias a fio. “Eles viajaram, eu acho”, disse uma jovem magricela vestida num shortinho vulgar. “Foi um curto circuito, com certeza!” fez a gordinha vendedora de churrasco do bar da esquina. “Esses irresponsáveis! Saíram e deixaram os eletrodomésticos na tomada, com certeza!” resmungou uma velha ranzinza e descabelada. Um vento gelado bateu. O céu estava muito nublado, tão nublado que a noite tornara-se cinzenta. O céu era de um branco-alaranjado, refletindo as luzes da cidade em suas nuvens gordas e pesadas.
O vento levantou as folhas secas de uma mangueira caídas no chão. A mangueira que ficava em frente à borracharia. O mesmo vento agitou os ramos de um jambeiro que já estava com as suas raízes cobertas pelas pétalas rosadas de suas estranhas flores tropicais que antecediam o fruto carnoso de superfície vermelho-sangue. A maçã dos trópicos.
E então foi como se sua existência não possuísse consistência ou matéria que o prendesse ao chão, e logo ele estava flutuando acima daquela multidão de vizinhos, policiais e curiosos, vendo tudo de cima. A cena estava perdendo o foco, ele não estava ali de verdade, só a sua mente estava. Os policiais invadiram a casa. Não havia ninguém. Tudo perfeitamente limpo, muito bem arrumado, as camas bem feitas, os móveis e os pertences no lugar, os eletrodomésticos funcionando perfeitamente ligados em suas próprias tomadas. Parecia que alguém havia feito a faxina e dado uma saída rápida.
“Mas essa casa está escura há dias!” reclamou uma menina grávida.
- A minha casa – murmurou Frederico, para dentro, e sua voz ecoou dentro de si como se ele fosse uma concha vazia – é igual à casa da clareira?
A cena ficava cada vez mais desfocada.
- A minha casa... – sua voz tornava-se algo metálico agora, reverberando em paredes de ferro – é a casa na clareira? A minha casa é a mesma casa na clareira?
Apenas silêncio. A cena estava se tornando escuridão.
- Então porque? Porque eu não reconheci minha casa na clareira? Porque não me lembrava? Porque não percebi que era a mesma casa? Porque eu não percebi que eram casas iguais?
A escuridão foi clareando, e seu olfato foi atingido por um cheiro forte de flor de laranjeira, seu peito estava formigando, como uma pastilha de sonrisal jogada num copo de água gelada, se dissolvendo pelas bordas. “É chá verde e flor de lótus”, sua memória o corrigiu. Ele já havia sentido aquele cheiro antes. Mas a voz que o corrigira não era a voz da sua consciência, era algo muito mais belo, mais sonoro, indescritível.
Ao abrir os olhos, encontrou o branco. O mais perfeito branco, infinita calmaria iluminada que se dissolvia gradativamente. Aos poucos as formas foram se distinguindo e uma garça de longo bico amarelado e olhos vermelhos surgiu a sua frente. Ela tinha um penacho na cabeça, era uma obra de arte da natureza, longas pernas finas e um pescoço esguio como uma serpente branca e lisa, perolado. A criatura alçou voo para distâncias, e o bando que estava ali a seguiu também. A imagem do ser que veio da névoa após a revoada de garças o tomou de surpresa surgindo em meio a toda aquela iluminação, a toda aquela paz e calmaria alva. Era um ser de cabelos escuros, flutuava acima de tudo com a leveza de uma pétala de cerejeira, seu manto branco esvoaçante exalava aquele delicioso aroma de lótus que Frederico havia sentido antes de despertar do sono que o havia levado até a sua vizinhança.
No momento em que ele sentiu a presença daquele ser, ele soube que aquele era o deus pagão desconhecido, venerado na antiguidade e em tantos outros mundos e universos paralelos. O deus que criara Ousama esfregando as mãos, que havia deixado para trás o seu palácio dourado como um mausoléu guardando o seu corpo físico, a espera de seu retorno. O deus cultuado no passado que estava a caminho do mundo humano para reinar outra vez, agora sobre todas as nações e não só algumas. Ele trazia uma legião aos seus pés, uma legião de seres que naquele momento atravessava uma ponte mística feita de pequenos sóis e estrelas, a Aurora Boreal, em direção ao Planeta Terra. Mas agora, ali, ele estava diante de Frederico em todo o seu esplendor, emanando sua áurea mística poderosa, moldando aquele universo branco em algo novo. Uma montanha surgia no horizonte, e uma floresta brotava por magia às margens daquele lago sobre o qual os dois flutuavam em espírito, frente a frente.
E como ele era belo! Era de uma delicadeza digna das flores do lótus que brotavam na água à sua passagem, espalhando-se pela superfície daquele espelho d’água cristalino. Algumas carpas vermelhas já nadavam lá embaixo. Cada curva, cada forma, cada movimento lembrava os gestos de uma ave pernalta ao mesmo tempo em que trazia à tona a memória furtiva de uma planta carnívora sendo açoitada de leve pela brisa, seu rosto branco era redondo como a lua, seu corpo era grande, em altura era inacreditável, uma escultura gigantesca e encorpada em mármore, quase dois metros de altura, seus dedos longos terminavam em garras douradas compridas e reluzentes, afiadas.
Seu rosto tão perfeito, angelical, tão bem desenhado, uma boca pequena que se esticava num sorriso meigo e ao mesmo tempo fatal, um nariz redondo e pequeno, perfeito sem se arrebitar. Tudo naquela criatura parecia ter sido feita sob medida para ser encaixado ali... E seus lábios... Aqueles lábios jamais sairiam da memória de Frederico, aqueles lábios eram duas sereias que cantavam, atraindo-o, chamando-o, tornando-o súdito de seus desejos mais profundos e tentadores. Havia algo nele que remetia ao oriente, às gueixas, aos samurais, ao mesmo tempo em que trazia uma carga euroasiática, pela altura e pelas suas formas. Naquele mundo de sonhos ele não estava coroado, e muito menos vendado. Seus olhos permaneciam fechados, mas mesmo assim ele parecia possuir uma noção incrível do que estava ao redor, e da figura de Frederico à sua frente, deitado no vazio do ar.
- Quem é você? – perguntou o rapaz à criatura.
O belo monstro sorriu.
- Eu... Essa é uma pergunta difícil, Frederico... – era aquela a voz que o chamara para o fosso despertando os ciúmes de Ousama, aquela mesma voz o havia corrigido em sua mente a respeito do aroma de flor de laranjeira... chá verde e lótus.
- Como você sabe o meu nome?
- Eu sei de muitas coisas, coisas que fariam seu mundo mudar de lugar no universo, se isso fosse preciso...
Fez-se silêncio, e o vento açoitou o espelho d’água. As carpas se agitaram.
- Que lugar é esse? – Frederico pôs-se de pé a admirar a paisagem. Era um lugar inacreditável, ele só vira aquele tipo de paisagem em filmes orientais e cartões postais, a montanha ao fundo era idêntica ao Monte Fuji, com seu pico nevado coroando a curva que formava o monte. O espelho d’água ao pé da montanha era coberto por plantas aquáticas espalmadas sobre a superfície, de onde brotavam dicotiledôneas rosadas e grandiosas flores de lótus que mal caberiam na palma de um ser humano normal. Haviam colunas gregas ali também, com um ar de abandono, erguendo-se da água como gigantes sérios esculpidos no mármore, formando um corredor por onde o ser místico transcendental caminhara para chegar até Frederico.
- Este mundo foi criado a partir do seu desejo de paz meu jovem. E ele sempre estará aqui para recebê-lo quando a realidade for cruel por demasia.
- Eu tenho tantas perguntas para fazer!
- Sim, eu sei. – fez o ser, calmo, pacífico, carregado numa aura de paz e tranquilidade – mas nem todas poderão ser respondidas, pois há coisas que não precisam de motivos para acontecer, elas simplesmente existem ou acontecem... Eu sou uma delas...
- E quem é você?
A criatura sorriu.
- Eu sou Lilith, o Rei dos Monstros.
Frederico deu um passo em direção a ele.
- Mas Lilith foi a primeira esposa de Adão, como você pode ser Rei agora? Você é uma mulher!
- Eu não sou mulher, nunca fui mulher.
- Então você é homem?! – Frederico tomou a informação com espanto, jurava que aquela figura tratava-se de algo do gênero feminino, uma entidade mística feminina, mas pelo visto, não.
- Também não sou homem, nunca fui homem.
- E porque te chamam de Lilith?
- Porque foi o nome com o qual os Filhos de Israel me batizaram quando me viram pela primeira vez. Eles criaram este mito para justificar minha existência, e o mito se alastrou pelos continentes e se propagou, e eu adotei o nome para apresentação por achá-lo digno de mim... Eu possuo muitos nomes e muitas faces, em muitos lugares e mundos diferentes...
- E qual o seu verdadeiro nome?
Lilith deu uma risadinha baixa, quase inaudível.
- Meu nome verdadeiro é impronunciável na sua língua... O simples soar de seus fonemas destruiria estrelas e galáxias inteiras, é um nome amaldiçoado que jamais poderá ser dito sem trazer desgraça àquele que o pronunciou, é por isso que o guardo a sete chaves e nunca, jamais o revelo. É o maior de todos os meus segredos.
Rapidamente, tudo voltou em um milésimo de segundo à memória de Frederico: Ousama, o ritual, o palácio, sua irmã, seu pai, sua mãe. Todos envolvidos naquilo. Porque tudo aquilo? Qual o significado disso tudo?
- Ousama queria matá-lo! Era você quem ele estava tentando invocar! Eu era a oferenda!
- E ele conseguiu me invocar, trazendo você de outro mundo... Você era a minha isca... Mas os planos de meu filho Ousama foram frustrados...
- Porque eu?! Porque a minha família?! Por quê?! – o tom de voz do rapaz aumentava e ecoava cada vez mais.
- Porque era necessário.
Fez-se silêncio.
- É só isso que você tem para me dizer?! – perguntou Fred, amargo. – Isso não explica nada!
- Eu já disse, há coisas que simplesmente acontecem, não há um motivo ou um significado, elas acontecem porque precisam acontecer.
Frederico virou o rosto.
Frederico virou o rosto.
- Você tem o meu sangue, Frederico, você e sua família inteira tem o meu sangue correndo nas veias, eu os gerei ao fazer uma grávida à beira da morte beber do meu sangue. Eu a curei, e me uni a ela naquele momento. E quando a criança nasceu, essa tornou-se a primeira ancestral da família Mimieux, há muitos anos, na França...
- Você iria se alimentar de mim? Do meu coração? – perguntou Fred, choroso.
- Não, jamais! Você é meu filho humano!
- Então porque eu era a oferenda?! Porque meu sangue teve de ser derramado para que você renascesse?!
- Porque eu te amo, e só o sangue de quem eu amo me despertaria de meu sono.
- MAS VOCÊ MAL ME CONHECE! COMO PODE ME AMAR?! SE ME AMA TANTO, PORQUE DEIXOU QUE MATASSEM AQUELES A QUEM EU MAIS AMAVA?!
- Sacrifícios devem ser feitos em prol de bens maiores – Lilith abaixou a cabeça, sereno, um tanto culpado, mas sereno.
- Você é um egoísta! Um grande egoísta!
- PARE! – a voz do deus ressoou como unhas num quadro negro. Frederico levou as mãos ao ouvido. – jamais diga isso de novo! Meu irmão disse estas mesmas palavras antes de me apunhalar! Eu não sou egoísta! Eu tentei impedir que a guerra no Oráculo se agravasse destruindo aquele mundo com as minhas próprias mãos para um bem maior! Agora a ousadia daqueles que eu ajudei a criar trará a desgraça, nem a nova deusa que surgiu após a minha queda será páreo para os humanos! Eles aprenderão o caminho para o Oráculo, eles conhecerão a magia e usarão da tecnologia para manipulá-la! Eles irão escravizar o meu povo e eu não poderei fazer nada! Sabe por quê? Por que eu estarei acorrentado!
- Acorrentado?! – exclamou Fred.
- Sim! Eu tentei impedir a todo custo o início da Era dos Monstros no seu mundo, eu sempre soube de tudo o que aconteceria, sempre soube que seria rei, mas que haveria um preço a ser pago: a minha liberdade! Da minha liberdade eu jamais abriria mão! E agora, por causa de Corona Solaris, meu próprio irmão, estou entregue ao cruel destino! Meu povo invade o seu mundo humano neste exato momento e toma as suas cidades. Eles estão vindo não só do Oráculo como de outros mundos que esperavam pelo cumprimento da profecia, nem todas as armas do seu governo serão páreo para as criaturas que estão por vir, e em poucos anos as legiões de monstros tomarão conta de cada um dos continentes... Mas o ser humano é esperto, astucioso, calculista! Eles logo descobrirão o ponto fraco do meu povo: EU! E irão me sequestrar, me manipular e me acorrentar! Passarei mil anos preso! Assim que eles retomarem o controle do seu mundo, eles traçarão o caminho de volta para o Oráculo, e espero que Minerva esteja preparada para o que virá!
A criatura que se mantivera de olhos fechados enquanto profetizava abriu seus olhos, e em cada um deles uma galáxia repleta de sistemas solares e estrelas girava em torno do buraco negro da sua pupila. Frederico escondeu os olhos para não encarar a visão perturbadora daqueles olhos sobrenaturais, escuros como a noite, mas tão brilhantes como a lua. Agora ele sabia por que aquele ser estava sempre vendado por sua renda vermelha.
- As guerras no Oráculo estão longe de acabar... Espero que Minerva, minha filha, seja tão brava quanto você e sua família foram, Frederico...
Frederico voltou-se rispidamente para Lilith, por pouco não o surpreendeu: ele é detentor do passado, do presente e do futuro, e sabe de tudo, porque viu tudo antes de tudo acontecer.
Frederico voltou-se rispidamente para Lilith, por pouco não o surpreendeu: ele é detentor do passado, do presente e do futuro, e sabe de tudo, porque viu tudo antes de tudo acontecer.
- MINHA FAMÍLIA! É ISSO! O QUE VAI SER DA MINHA FAMÍLIA AGORA? O QUE VAI SER DE MIM?! – ele correu até Lilith e lançou-se aos seus pés. O deus pagão sorriu, meigo e inclinou-se para tocar de leve o topo da cabeça do pobre rapaz amargurado, como uma Virgem Maria abençoando a um devoto. Uma brisa leve acariciou os cabelos do Rei dos Monstros.
- Vai ficar tudo bem, meu jovem, você verá...
O céu da paisagem paradisíaca rasgou-se ao meio, e dele desceram três novas figuras tão majestosas quanto o próprio Lilith. O deus pegou Frederico pelos braços e ergueu-o, abraçando-o, como se tentando protegê-lo daquelas alegorias majestosas que desciam àquele mundinho de tranquilidade e paz. A chegada deles perturbou o ambiente, deixou os ventos mais forte e as águas do espelho d’água agitadas.
O que vinha no de mãos dadas às outras duas irmãs era Corona Solaris, usando seu quimono branco bordado em dourado e sua estranha coroa triangular com um olho no topo, esta brilhava como um segundo sol atrás de seus cachos. Ao seu lado esquerdo vinha Pandora, a vampira, irmã gêmea de Lilith em seu esvoaçante vestido vermelho, tinha as mesmas compridas unhas douradas do irmão. Do lado direito vinha Akasha, a filha das estrelas, em seu manto azul, usando sua coroa reluzente feita de poeira estelar, portadora de longos e brilhantes cílios que terminavam e pequenas esferas cintilantes. O panteão de deuses ancestrais estava completo, afinal.
- Irmão! Perdoa-me! Perdoa-me pelo que te fiz! – exclamou Corona Solaris, descendo dos céus. – tu tinhas razão! Eles invadiram a nossa querida Babel! Eles adentraram no nosso paraíso e destruíram o nosso reino!
- Eu havia lhe avisado, irmão! – exclamou Lilith, com um tom de amargura e rancor na voz – eu lhe avisei do que iria acontecer! Eu sou aquele que sabe do passado e do futuro! Você deveria ter sido sensato e dado ouvidos à mim quando eu lhe disse que deveríamos destruir o Oráculo! Agora já é tarde demais! A pedra começou a rolar o morro e nada pode pará-la! Iremos com isso até o fim!
Lilith segurou o rosto de Frederico em suas mãos e olhou fundo nos olhos dele, beijou seus lábios com força e manteve-se naquele instante demoradamente, transferindo para o rapaz aquilo que ele deveria ver: criaturas de todas as formas e tamanhos atravessavam As Cordilheiras em um cortejo cheio de dança, canto e algazarra, acima delas, as labaredas fulgurantes da Aurora Boreal dançavam no céu formando desenhos e pintando quadros. Sobre ela, vinha outra passeata de seres sobrenaturais. Lulas e polvos colossais impulsionavam-se no vácuo como foguetes em direção à terra, cabeças voadoras e olhos flutuantes passavam zunindo ao lado de pássaros gigantes e cachorros voadores. Serpentes de todos os tamanhos, homúnculos, ogros, trolls, elfos, tudo aquilo que era mito, tudo aquilo que era lenda, tudo aquilo que era espírito se juntava à caminhada migratória em massa rumo ao seu novo lar, ao seu novo reino; e aqueles que lá chegavam, reuniam-se onde antes havia uma Babel, há milênios atrás, prontos para erguerem outra. Ali, Lilith seria coroado oficialmente como Rei dos Monstros para toda a eternidade.
Os dois lábios separaram-se, mas Frederico inclinou-se, pedindo por mais daquilo. Ao redor, o pequeno mundo de paz criado pela vontade de Frederico em dar fim ao sofrimento entrava em colapso: as colunas gregas tombavam de lado, a montanha partia-se ao meio e as árvores eram sacudidas por fortes tempestades.
- Sua família está bem. Seu pai, sua mãe e sua irmã vivem, mas você jamais tornará a vê-los novamente. – disse Lilith choroso ao pé do ouvido de Frederico, abraçando-o com força.
- Por quê?! Por quê?! – balbuciava o rapaz, entre choros e soluços.
- Porque sacrifícios devem ser feitos...
Quando os dois corpos separaram-se, Frederico despertou daquilo que pareceu ser o pior de todos os seus pesadelos. Estava completamente mergulhado na banheira de um banheiro branco e impecavelmente limpo. Aquilo não fazia parte da sua casa. Aquilo não era o seu mundo de origem.
•••
“Cada um de vocês foi enviado a um mundo diferente.” disse a voz de Lilith, na escuridão, pouco antes do seu despertar. “vocês estão mortos, vocês são contradições, vocês jamais poderão coexistir no mesmo mundo e na mesma época outra vez, esse é o preço que deve ser pago para que a família Mimieux continue existindo”.
Frederico pôs-se de pé na banheira. Quanto tempo havia se passado desde que ele despertara nos esgotos de Paris? Uma estranha Paris num estranho mundo onde há uma Franco-Itália e outros países inexistentes no mundo de onde ele viera... Mais uma vez, ele se pegou chorando, derramando rios de lágrimas, gritando agachado num canto daquele banheiro irritantemente iluminado. Clamando pelo abraço da sua mãe, pelo sorriso de seu pai, pelo carinho de Amélia, pelo calor de sua família perdida.
Eles estavam todos vivos, sim, ele podia sentir, e às vezes ele tinha sonhos, sonhos como aquele em que ele esteve diante de sua casa cercada de policiais. Nestes sonhos ele encontrava uma Amélia crescida, vivendo uma vida tranquila e nem um pouco solitária. A pequena garota havia crescido e formado uma família. Ele também encontrou seu pai, Dimitri, em sonhos como esses. Ele via o velho Dimitri morando só, o caduco de um bairro num mundo qualquer, procurando uma maneira de voltar às Cordilheiras e resgatar seus filhos. E ele via também a doce Amelie, sempre tão tranquila e calma, a única que havia morrido de verdade, reencarnara em outro mundo para viver uma vida quase idêntica àquela que havia vivido: a esta altura já possuía um casal de filhos, os quais ela criava sozinha. Era separada. Não havia tomado iniciativa na vida passada, mas o destino deu-lhe essa segunda chance. E agora ela estava separada, lutando para criar os filhos sem um pai. Não ia aturar toda aquela humilhação duas vezes.
E ele, Frederico, sempre mergulhado naquela banheira. Já haviam se passado 20 anos quase, e ele sempre mantinha tudo tão fresco na memória como se tivesse ocorrido ontem. Ele poderia transcrever tudo o que lhe ocorreu em detalhes minuciosos se assim quisesse. E sofria muito por isso. Sofria e chorava por horas a fio. Não suportava ficar em casa sozinho, sempre acabava chorando, gritando, quebrando alguma coisa ou até mesmo se quebrando. O fantasma daqueles acontecimentos terríveis nunca deixaram de o assombrar.
Agora ele é um famoso detetive, especialista em casos de assassinato. Ninguém jamais suspeitaria que um dia ele fora um jovem de 17 anos, destinado ao altar como a oferenda de um deus milenar.
Fim?
OVULAY
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