Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

sexta-feira, 2 de março de 2012

PARTE DEZ: HABITANTES DA ESCURIDÃO!


O mundo parecia ainda estar girando numa vertigem sem fim, mesmo com toda aquela escuridão a sua volta. Ela não conseguia distinguir a diferença entre estar de olhos fechados ou ter as pálpebras recolhidas, era tudo a mesma coisa. Ausência total de luz, escuro infinito, e aquela estranha sensação de estar rodando sem sair do lugar. Qual a última lembrança? Estar caindo, escorregando para o desconhecido de cabeça pra baixo, então o baque surdo e duro contra a rocha e o torpor de uma dor que nunca viria, porque ela deveria estar morta. Mas ela não encontrou o inferno que esperava do outro lado, sequer passou perto do céu. Houve um sussurro baixo e inaudível como um ciciar, o sopro de um espírito das trevas talvez, ecoando das profundezas do abismo.

- Apenas fique parada e não se mexa.Você vai estar bem logo, logo – dizia a voz. Ela repetiu a primeira sentença várias vezes. Não se mexa. Não se mova. Se não se mexesse como saberia que ainda estava viva? Ela precisava se sentir, mas não havia corpo.
Houve um gorgolejar distante e agourento, que chicoteou contra paredes invisíveis e ecoou através de estalactites e estalagmites ocultas pelas sombras. Aquele som encheu o ar escuro de apreensão e medo. Algo se retesou de pavor ao seu lado, ela pode sentir o medo exalando do que quer que estivesse velando sua semi-morte.

- Não, ela ainda não está boa! – ciciou a voz outra vez – vá para lá! Por favor! Não venha pra cá! – o lamento foi seguido por uma súplica em uma estranha variante do árabe. Ela jamais saberia dizer o que aqueles sussurros significavam. O gorgolejo gutural repetiu-se, ainda mais próximo que antes. Luzes vermelhas, verdes, azuis e amarelas começaram a refletir fracas num teto alto e irregular, cravejado de cristais cintilantes. Que espetáculo maravilhoso, ela pensou. Mas sentiu que seu acompanhante no escuro tinha uma opinião contrária quanto àquele show de explosões luminosas. Ela tentou abrir a boca para falar, para protestar e perguntar, mas longos e finos dedos sobrepuseram-se em seus lábios impedindo qualquer tipo de movimento.

Um praguejo e então a suspensão. Ela foi erguida no ar e carregada em costas ossudas e largas pertencentes a um corpo que corria na escuridão, corria contra o tempo, corria para as profundezas, para longe das luzes. Mas ela não queria ficar longe das luzes, elas eram belas! Elas eram lindas! Ela queria aproximar-se, não queria o escuro, ela estava odiando o escuro naquele momento, e a distância das explosões coloridas só o tornava mais maciço e abafado. Paredes estavam se fechando ao seu redor. Algo a estava machucando, entrando em atrito com as suas costelas, algo nas costas de seu raptor espetava e raspava em sua barriga durante a fuga para longe das luzes. Uma mochila? O que seria? Era aveludado como um monte de plumas em alguns pontos, mas duro e áspero como couro em linhas retas como tiras, metido exatamente entre as omoplatas. Penas, ela tinha certeza que havia penas ali embaixo.

As luzes estavam ficando cada vez mais próximas, isso era bom ou ruim? A criatura que a carregava para longe arfava nervosa e cansada, sua estrutura magra estremecia em baixo do peso do corpo de Ray Ann. Ela podia sentir seu desespero, e repentinamente começou a compartilhá-lo sem motivo algum ao ver as luzes róseas e alaranjadas como um pôr-do-sol subterrâneo refletirem nas facetas cristalinas das pedras preciosas nas paredes e nos pilares rochosos de um largo túnel em arco. Tudo ali parecia ser feito de vidro. Que mundo místico era aquele onde belas luzes significavam perigo?

O gorgolejo agourento tornou-se impossivelmente alto, parecia estar clamando ao pé dos seus ouvidos, ele foi seguido por um guincho infernal de mil felinos domésticos sendo torturados, ressonando nas paredes de cristal com violência, agredindo profundamente seus tímpanos já frágeis pela queda. O processo de cura total ainda demoraria um tempo considerável para que ela reconquistasse o poder sobre seus membros, seus músculos flácidos, para que ela alcançasse a mínima noção do que estava havendo à sua volta. As luzes se tornaram tão próximas que a cegavam, a escuridão estava sendo bombardeada por projéteis coloridos, uma chuva arco-íris causada pela refração dos cristais que compunham os corredores do labirinto infinito.

O guincho repetiu-se. Ela gritou de volta, um reflexo de seu corpo que estava começando a responder. E então seu raptor capotou. Tudo se tornou escuro outra vez.


♦ ♦ ♦



- Os boatos que se espalharam pelas galáxias algum tempo após o desaparecimento de Azura e seus Arquiduques eram de que eles estariam dormindo em sono criogênico enquanto o exército de androides fazia o trabalho sujo, controlava uma parte considerável do universo conhecido. Mas é claro que isso era puro mito.

- Há áreas inexploradas do Universo ainda? – perguntou Pietro, sentando-se à beira da piscina natural caleidoscópica que a queda d’água cristalina formava aos pés de um enorme paredão de pedra na outra extremidade da colossal câmara que abrigava a floresta de cogumelos gigantes. Ela escorria delicada por entre as saliências e reentrâncias cristalinas, batendo contra os degraus de rocha, vindo das profundezas do submundo através de uma caverna de boca larga localizada no alto do paredão, onde este se curvava para formar o teto abobadado cravejado de diamantes raros multicolores.

- É óbvio que sim. O universo é grande demais, até mesmo para a frota de naves e a tecnologia que os ancestrais de Azuratrouxeram do universo de onde eles vieram – disse a Sybila, abraçando seus joelhos contra o corpo seminu à beira da água, logo abaixo da elevação onde Pietro assentava-se, sereno, procurando sinal dos desaparecidos da expedição nos arredores. Nem sinal de Donnick ou Ray Ann em meio ao mar de chapéus de cogumelo onde uma ou outra palmeira primitiva despontava cinicamente.

- Você está dizendo que vivemos mesmo num multiverso, como as teorias supõem? – Pietro espantou-se repentinamente após alguns segundos de silêncio, onde tudo o que se podia ouvir eram o canto fúnebre dos estranhos pássaros cegos habitantes das cavernas e o som da gélida cascata de água borrifando nuvens de minúsculas gotículas no mundo ao redor. A gruta de onde o rio subterrâneo brotava despejando suas águas de brilho cálido assemelhava-se a enorme bocarra escancarada de um dragão faminto. Por entre seus dentes, pequenas criaturinhas vermelhas (um bizarro misto entre sagüis e morcegos totalmente desprovidos de pelos) brincavam chiando como pardais irrequietos.

Hikikomori permaneceu calada.

- Isso é uma coisa que não convém a humanos no momento, é muito além do que vocês podem compreender. Não há palavras na língua de vocês que possa explicar isto, não ainda... – ela permaneceu calada enquanto molhava os dedos dos pés numa poça gelada. Christopher Umbrella e Fábia nadavam no pequeno e profundo lago de um lado para o outro, gargalhando e espirrando água para todos os lados, atiçando os pequenos mistos de macaco e morcego logo acima. Eles voejavam nervosos através da umidade, dando rasantes sobre a cabeça dos invasores, inofensivos, só estavam assustados. Não havia terra ou areia no fundo daquela piscina natural, era rocha pura e solidificada, compactada e reluzente. Algo semelhante a um piso cravejado de cristais de titânio sendo moldados pelo impacto das águas através das eras em que a boca do réptil despejou seu vômito prateado contra o piso da caverna.

- Então, você falava sobre...

- Os Aib, os escolhidos – prosseguiu Hikikomori, interrompendo-o repentinamente. Soou tão humana que parecia até estar aliviada por ter mudado de assunto –alguns mitos sobre um possível sono criogênico se espalharam universo afora. Algo inventado para deixar a população mais à vontade, mais tranquila enquanto os androides metamorfos assumiam o controle pacificamente incumbidos por seus superiores, sem a violência de antes. Enquanto isso os Arquiduques se refugiavam no que vocês chamam de Via-Láctea, por ser um ponto distante e tranquilo onde eles poderiam tirar... “férias”, por assim dizer – ela deu de ombros pondo-se de pé – essa região do universo é muito tranquila, não há vida inteligente reconhecida por bilhares de bilhões de anos-luz... Pelo menos não mais. É por isso que eles se instalaram nas áreas correspondentes às suas constelações, onde puderam estabelecer pequenos “reinos” onde controlam tudo a mão de ferro enquanto se divertem. Vocês tiveram um exemplo disso conhecendo o espetáculo de horrores da Aib’Somar de perto, por sorte isso não vai mais acontecer, não em Taurus.

Pietro ouvia aquilo tudo com uma atenção quase estudantil, uma curiosidade atiçada por querer entender, e por isso não se detinha ao sentir as perguntas jorrando como a cascata cristalina poucos metros à sua frente rodeada por um santuário de enormes pilares rochosos salientes através dos quais riachos cortavam cavernas afora.

- E onde estamos exatamente, agora? – perguntou.

- Acabamos de entrar numa região controlada por Aib’Koletis, ela tem uma área enorme sob o poder dela, a terça parte do exército pertencente a ela é uma das mais numerosas entre os Aib. – Fábia e seu Professor Umbrella saíam da água naquele momento, se enxugando enquanto degustavam as últimas fatias de uma suculenta fruta com gosto de sorvete e aparência de pitaya, se inserindo na conversa e atentando às explicações de Hikikomori. – nos tempos antigos ela era responsável pela mineração dos recursos naturais dos planetas conquistados, enquanto seu marido, Aib’Paguru, era responsável pelo fornecimento de escravos a ela. Eram parceiros em ambos os sentidos, por amor ou por negócios, nunca entendi por que se separaram...

- E porque essa Aib’Koletis se refugiou aqui nessas cavernas escuras? – perguntou Christopher enquanto sacudia os cabelos encharcados. A água dali parecia ser menos densa que a da terra, evaporava com uma facilidade tremenda – porque ela não ergueu cidades e apodreceu no luxo? Essas cavernas são mais do que uma mina de ouro! Olha só pra isso! – o professor abaixou-se e carregou entre as mãos em concha uma rocha negra que refletia em púrpura e verde, erguendo-a a altura dos olhos de seus companheiros para que vissem a beleza da peça esculpida pela natureza. Os reflexos daquele metal precioso o fizeram lembrar de algo, e como se a pedra estivesse eletrocutando seus dedos, soltou-a com violência, olhando ao redor desesperado – MINHA FOICE!

Hikikomori pegou estendeu as mãos e pegou o punho cerrado de Christopher entre seus dedos. Era a primeira vez que a alienígena tocava em um deles, o que era muito estranho e levantou o leve lençol da surpresa no ar.

- Acalme-se, Cavaleiro – ela disse, sorridente. Seu sorriso era largo, brilhante e sincero. ET’s poderiam ser tão belas assim? – ela virá a você quando precisar de ajuda. Ela nunca lhe abandonará.

Como se para certificarem-se de que suas armas estavam ali, Pietro e Fábia vasculharam o espaço ao redor, onde os pertences da expedição se acumulavam em um montinho de roupas e artefatos, os quais Hikikomori estava protegendo enquanto se lavavam e alimentavam-se após um longo período sem banho ou comida dignas. Frutas das cavernas não eram tão dignas assim e não rendiam no estômago, caíam leves demais, porém eram essenciais se eles quisessem permanecer de pé e acordados, era o que tinha.

A tentativa da Sybila de acalmar o Professor Umbrella – agora tão jovial e expansivo que em nada lembrava o recatado e atrapalhado professor universitário que fora um dia – não funcionou muito bem, ele continuou tenso, os músculos retesados enquanto ele vasculhava sua mente em busca de lembranças relapsas do momento da queda. Onde estaria a foice a esta altura? Perdida naquele mar de esplêndidos cogumelos gigantes.

- AMANITA MUSCARIA! – o brado veio de um amontoado não tão distante de caules brancos lustrosos coroados por volumosos chapéus vermelhos de abas largas. Ainda pequenos em comparação aos outros fungos que ali cresciam – ERA PARA ESTARMOS DOIDÕES AGORA! – Augusta, da qual eles quase haviam esquecido a existência pelo silêncio, surgiu correndo carregando um pequeno cogumelo nas mãos. – mas por algum motivo ele não nos fez mal! Estamos numa floresta de cogumelos venenosos gigantes e não estamos loucos! Os esporos deles não fizeram mal ao nosso sistema nervoso, isso é incrível!

- Talvez sejam grande demais para que nós respiremos eles – Fábia deu de ombros, lembrando das bolotas brancas felpudas em revoada.

- Tem razão, talvez você tenha razão! – Augusta estava eufórica, os olhos brilhavam mais que as pedras preciosas que compunham o chão rochoso – Nossa! Isso é incrível! Encontramos um bioma alienígena completo! COMPLETINHO!

- Acho que não hein... – Pietro cortou a animação da garota que girava de braços abertos e cabeça jogava pra trás, numa tentativa de abraçar o novo mundo que se abria diante dos seus olhos – temos produtores e consumidores primários ao nosso redor, cadê os predadores?

Um manto fúnebre de silêncio caiu sobre o grupo. E se eles estivessem sendo observados por monstros terríveis enquanto descansavam da longa viagem? E se Donnick e Ray a essa altura tivessem virado janta de crocodilo alienígena? Gotículas de suor se formaram nas testas franzidas enquanto os olhos vasculhavam a escuridão das florestas ao redor, onde a refração dos cristais não era o bastante para revelar tudo o que estivesse oculto. A luz que escapava das frestas no teto da caverna só eram suficiente para refletir entre as pedras de cristal e diluir-se em raios multicoloridos, mas ainda assim sombrios.

- Acalmem-se, viajantes – apazigouHikikomori, caminhando para o centro do grupo com seus quase dois metros de altura – os grandes predadores destas cavernas abrigam os túneis e abismos mais profundos do labirinto, e aqui estamos praticamente na superfície – ela olhou para cima, para as falhas entre as falsas estrelas. Provavelmente o espaço entre enormes pedregulhos numa pedreira em meio ao deserto escaldante lá em cima. Ali embaixo eles sequer precisavam das máscaras de gás.

Pietro desceu de seu trono reluzente de pedra, com os ombros arriados e o olhar suplicante.

- Me diga por favor que não temos de descer até esses túneis! Eu te imploro!
Hikikomori abaixou o olhar, um pouco divertida.

- Não acredito! – ele levou a mão à testa em descrença.

Os que estavam quase despidos vestiram suas roupas úmidas, os que estavam desarmados empunharam suas armas. Fábia ainda estava tentando entender o que seu meigo báculo poderia fazer de tão grave a ponto de a Sybila manter vista grossa sobre ela constantemente, e Pietro ainda estava treinando para apoiar-se nas pernas ao usar sua bazuca de energia. Augusta mantinha-se maravilhada com o bioma alienígena recém-descoberto, andando de um lado para o outro, agachada observando pequenos seres peludos semelhante a rãs esconderem-se entre os cogumelos menores. Era hora de iniciar as buscas pelos companheiros perdidos.


♦ ♦ ♦



- הואמתעורר–alguém sussurrou em hebraico ao pé do seu ouvido. Lábios muito finos roçaram no lóbulo da orelha enregelada, arrepiando os pelos dos seus braços e da nuca. Mas a voz não parecia estar falando com ele, aquele tom estava uma nota acima do que seria usado em particular, numa conversa realmente sussurrada. A voz só estava baixa, e um pouco distante, por isso se parecia um sussurro leve, angelical. Porque em hebraico? Ele sabia que era hebraico porque havia sido forçado a aulas de línguas mortas na academia militar, mas porque estava ouvindo os espíritos sussurrarem em hebraico no limbo?

Não, ele não estava no limbo. As sensações eram muito reais. Ele ainda respirava profundamente, a umidade de um lugar abafado impregnava sua pele orvalhando os vincos do despertar perturbado que se formavam na testa. Sons de passos, conversas paralelas, pessoas nervosas, pedrinhas estalando no chão sob a pressão do peso de pés nervosos, tão próximos e ao mesmo tempo tão longe. Muitas pessoas velavam o seu despertar para um novo mundo.

Aos poucos ele pôde compreender em parte o que estava sendo sussurrado pelas almas invisíveis no escuro.

- Você viu quando ele caiu?

- De onde ele veio?

- Ele veio lá de cima.

- Não há nada lá em cima!

- Um enorme gigante de ferro

- Uma nave, seu bobo.

- Sim, desceu do céu.

- Haviam outros!

- Cavaleiro de Ouro?

- A foice!

- Foice?

- Quem é este?

Uma forte luz azul invadiu o que revelou ser uma câmara abarrotada de vultos pálidos e franzinos, figuras humanoides escondidas no escuro tiveram suas silhuetas expostas pelo clarão repentino. Ele não se deteve, teve de abrir os olhos e tentar se situar mesmo em meio à tanta ânsia e tontura. Aquelas criaturas eram pouco mais baixas que humanos, magros, os músculos bem esculpidos, pele clara onde mapas de veias se desenhavam, profundos olhos cinzentos, azuis e violeta vasculhando a escuridão, refletindo a luz repentina. Os cabelos ondulados e muito maltratados lhes caíam quase sempre pelas costas, prateados, brilhando como os cristais encrustados nas paredes da câmara preciosa. Rostos muito finos, assustados, acuados, nervosos, cochichando pelos cantos costurando olhadelas rápidas em sua direção através das conversas.

- Quem são vocês? – perguntou o capitão Donnick, apoiando-se nos cotovelos com dificuldade. Houve um alarde, seguido pelo som de pedras rolando, chão sendo revolvido, vozes tensas, quase apavoradas.

- Acalme-se viajante do espaço – a voz vinha da luz, quase um zumbido ancestral. O espectro luminoso foi tomando forma (ou talvez seus olhos apenas estivessem se adaptando à luz), criando cabeça, braços, pernas e curtos cabelos prateados encaracolados. Era uma criatura pálida tão magra quanto as outras, mas muito mais velha, um ancião segurando uma espécie de lanterna em forma de meia lua diante do próprio rosto, um rosto fino, magro, de nariz comprido e lábios finos – você está seguro conosco, aqui o Vigia não pode lhe fazer mal.

- Do que... Do que vocês... estão falando? – sua voz falhava entrecortada pelas agulhadas violentas do cérebro batendo contra a testa, insistindo em interromper a linha de raciocínio da fala.

- O Vigia pegou o Príncipe outra vez, e levou uma das suas também. – o brilho da lanterna azul em forma de lua pendurada numa espécie de fio de fibra prateada oscilava como um pulsar, enviando ondas de luz, ora fracas, ora fortes, banhando os rostos alienígenas apreensivos que ainda velavam um corpo agora vivo, em um quase pleno despertar – seus irmãos estão caminhando pelas Florestas Vermelhas rumo ao Vale das Sombras da Morte, onde encontrarão a ruína completa. A foice do Cavaleiro está conosco, e cabe a você devolve-la a ele.

O ancião magricelo estendeu-lhe a mão. Ele admirou os dedos finos e ossudos durante um momento, a pele semitransparente banhada de azul, unhas compridas e mal tratadas. Os olhos enluarados do velho brilharam, e um par de pequenas asas atrofiadas esticou-se fracamente, tímido atrás da silhueta sombria da criatura, como um velho amigo estropiado dando olá ao inusitado visitante. Donnick arregalou os olhos num misto de assombro e admiração. Sem hesitar mais um segundo, agarrou a palma da mão do ancião repentinamente cheio de confiança. Uma linguagem da alma estava se desenrolando ali, iluminando do olhar do alienígena para os olhos do humano. Ele soube naquele momento que tinha encontrado um aliado, mesmo que os outros seres ali presentes estivessem estremecendo de medo à sua imagem.


♦ ♦ ♦



Quando Ray Ann se acordou (desta vez completamente, sem um único resquício de sonolência ou torpor momentâneo, sua cabeça estava no lugar), já não estava mais tão escuro quanto da última vez, e as explosões luminosas que vira em seu sonho angustiante haviam desaparecido. Ela não tinha certeza de nada, não tinha certeza de onde estava, não tinha certeza de que estava viva, e não tinha certeza de que as suas últimas e embaçadas lembranças foram sonho ou haviam realmente acontecido. As luzes, as paredes de cristais espelhados, refletindo vultos numa cadeia infinita de reflexos, onde brilhos coloridos iam e voltavam numa tempestade de cores fulgurantes. Desta vez tudo estava escuro, de verdade.

- Que bom que você acordou!

O som da voz baixa sussurrada espantou-a a ponto de fazê-la saltar no lugar e ir parar longe da sua origem, se arrastando feito uma aranha nervosa sob suas patas, usando os pés para tomar impulso e as mãos para tatear o caminho às cegas às suas costas.

- Oh, me desculpe por ter lhe assustado! Eu não preten...

- QUEM É VOCÊ? QUEM ESTÁ AÍ?! – suas costas chocaram-se com força contra grossas barras de ferro. Uma cela? Ela estava presa? O susto foi tão grande quanto ter escutado aquela voz vinda do além logo após despertar, tanto que as lágrimas brotaram quase automaticamente, escorrendo pelo seu rosto aos jorros enquanto os soluços se empurravam garganta acima, seus pelos estavam todos arrepiados, cada centímetro do seu corpo tremia de pavor. Se ela possuísse um rabo, com certeza estaria esticado para cima e espichado feito um escovão. Como um gato acanhado, ela tentou se firmar nos pés e se colocar de pé, sem sucesso. A coisa no escuro estava mais perto.

- Não fique nervosa! Eu juro que não queria te fazer mal, eu não pensava que o Vigia iria me encontrar tão próximo da superfície, ele nunca vai lá, é claro demais! Eu só queria te devolver para os seus irmãos... – a voz começou animada e foi perdendo a força até se tornar baixa e lamentosa, quase uma lamúria.

- Mas eu não tenho irmãos! – foi a única coisa que ela conseguiu pensar em responder.

- Eu vi quando vocês vieram de cima, meus irmãos também viram, eu estava com eles, mas eles foram atrás do outro, do Semelhante. Eu preferi ir atrás de você, porque você era pequena e mais frágil...

- Do que você está falando?! Eu não estou entendendo nada! QUEM É VOCÊ?!

- Eu sou Alado, Príncipe dos Pássaros, me perdoe, por favor, eu lhe imploro! – mãos frias procuraram as suas no escuro, e quando as encontraram, geraram calor, uma estranha sensação de paz e tranquilidade foi iluminando sua alma e acalmando seus ânimos. De repente viu-se segura, protegida, não mais a gata selvagem ameaçada de segundos atrás, temendo pela vida. Quase sentiu a necessidade de agarrar-se ao dono daquelas mãos frias (e ao mesmo tempo estranhamente quentes) e aninhar-se em seus braços, o calor que ele emanava, mesmo no escuro, a incitava aproximar-se, mas seu lado racional ainda não havia deixado o corpo completamente, ela ainda estava desconfiada, apreensiva. Assustada.

- Onde eu estou agora, Alado? – sentiu-se estranha, mas teve de pronunciar aquele nome fora do pensamento, para provar a si mesma que ele era real, que havia uma pessoa ali, e não um monstro alienígena como os transportados em Taurus nos contêineres. Oh, Deus! E se ela tivesse sido capturada outra vez?! E se estivesse rumo a um novo coliseu para morrer nas garras de alguma criatura do espaço?! A lembrança do período interminável sendo transportada feito um animal, indo de porto em porto em sistemas solares distantes acertou suas veias feito um raio preenchendo o lugar do sangue dentro do corpo. Outro arrepio a percorreu.

- O Vigia nos trouxe para a minha gaiola. Não sei porque ele poupou a sua vida, eu lutei para salvá-la Ray Ann, eu tentei, achava que ele fosse matá-la! Mas não fui rápido o bastante – a voz tornou-se pensativa – e ele não a matou... Por quê?

- O q...

- Oh, não! – a voz atingiu uma oitava mais alta do que costumava ser, o costume de ouvi-la sussurrada assustou Ray Ann – ela só pode saber que você está aqui! Ela mandou o Vigia trazer você para cá! Ela viu vocês chegarem de nave, e ela mandou os Caçadores destruírem ela na superfície, mas ela levantou voo sozinha e isso a deixou raivosa... Por isso ela estava agitada mais cedo! Agora tudo faz sentido!

- Eu não estou entendendo nada do que você está falando! Quem é o Vigia, quem são esses Caçadores e quem é ELA?!

Uma lufada de ar quente atingiu-lhe no rosto, perfurando seus pulmões com violência ao puxar a respiração com o espanto, numa sufocação quase imediata, a sensação de se afogar sem ao menos estar submersa a lançou contra as grades às suas costas mais uma vez, o cessar do contato com as mãos geladas que a acalmavam foi desesperador. Junto do calor excessivo veio a luz, o portão do inferno havia se aberto diante dos seus olhos, os quais ela tentava proteger a todo custo.

Não havia mais trevas ao redor então, e a luz intensa que atravessava o portal inundou o mundo ao redor como um jorro de lava, revelando uma cadeia infinita de gaiolas enferrujadas dependuradas sob o teto alto da câmara de modo decrépito em grossas correntes negras. A luz que vinha de fora não era tão forte a ponto de cegá-la, mas as paredes de diamante puro refletiam aquele brilho intenso violentamente e triplicavam a iluminação em refração, transformando o lugar num mar de arco-íris. As cores se diluindo eram tão nocivas quanto um choque direto na retina, e quando os olhos se adaptaram àquela iluminação agressiva ela finalmente pôde ver onde estava:

Presa, trancada junto a um belo rapaz franzino dentro da maior de todas as gaiolas, completamente redonda e de piso plano, dourado e reluzente recoberto por luxuosas almofadas e tapetes felpudos. Havia muitos livros espalhados por ali, e brinquedos também, assim como aparelhos eletrônicos de todos os tipos – alguns totalmente desconhecidos e outros tantos muito semelhantes aos encontrados na Terra – e isto foi uma surpresa e tanto para ela. Em sua cabeça, Ray Ann se imaginava no pior e mais profundo calabouço daquele planeta morto, ou em uma jaula suja, imunda, a caminho da próxima arena de batalha.

Mas esta surpresa não foi o bastante para entorpecer o pavor que encheu seu peito ao olhar ao redor e mais além, para fora das grades cristalinas da gaiola: as outras jaulas de todas as formas e tamanhos abrangentes a geometria conhecidaestavam habitadas por esqueletos e múmias onde tufos de cabelo e restos de pele ainda resistiam ressecados contra os ossos empoeirados – outrora torrados – das carcaças – humanóides ou não – das criaturas que um dia ali viveram em cárcere privado a ração e água. Se é que existiu tal luxo em vida para as pobres criaturas dos quais nem os restos mortais foram poupados da prisão.

A criatura que atravessava os portões que haviam se aberto para o mar de lava adiante era quase tão alta quanto Hikikomori, possuidora de membros longos como ela, e trejeitos finos e elegantes igualmente incomuns para uma alienígena. Usava um longo e negro véu da cabeça aos pés, nem seus olhos foram poupados da censura, apenas suas ossudas mãos escamosas de garras finas como espinha de peixe permitiam-se sentir o ar quente da passagem vulcânica. Atrás dela, uma ponte de pedra negra cintilante se estendia sobre o rio de lava até os olhos alcançavam, ela estava muito próxima quando o rapaz seminu jogou Ray Ann contra as almofadas e cobriu-a com lençóis e pelúcias numa velocidade absurda. Ela sequer pode ver seu rosto e seus traços.

- Meu amado Alado! – disse a voz da criatura, de modo amoroso e delicado, atravessando com sutileza a montanha alegórica de panos que a cobriam – você deixou o Vigia frustrado com o seu sumiço! Ele teve de ir muito próximo a superfície para buscá-lo! Sabe o que aconteceria se a luz dos sóis o tocasse, não sabe?

- Sim, minha amada, eu sei – sussurrou o príncipe Alado em seu tom de voz baixo e condescendente, quase subalterno – peço que me perdoe, sabe como sou curioso. Percebi uma agitação na Floresta Vermelha mais alta e resolvi ver de perto o que estava acontecendo...

O monstro de burca retesou-se e pareceu sibilar baixinho sob seu véu – ou teria sido o ciciar do fogo ardendo no rio de rocha derretida há poucos metros de distância? – Ray Ann acompanhava o desenrolar da cena através de uma falha entre duas almofadas indianas franjadas. O calor ali debaixo da montanha de pelúcia era insuportável! A voz da criatura assumiu um tom apreensivo, elevando-se a um grau de violência contida, um medo controlado que ficou evidente.

- NÃO! – ela gritou – não se preocupe! – ela retornou ao tom original – não se preocupe com o que acontece nas cavernas, meu bem – a mão asquerosa repleta de escamas acariciou o rosto fino e delicado do Príncipe – você sabe que o que acontece nas cavernas não lhe diz respeito, são coisas mundanas, bobas, só dizem respeito a mim, você não precisa se envolver com isso. Eu estou aqui para isso, lembra-se? Para te amar e te proteger de qualquer coisa.

- Sim, eu sei, mas...

- Os invasores estão resistindo, como você sabe, mas Fafis já enviou o Vigia no encalço deles e logo em breve esse contra tempo será resolvido. Ninguém jamais vai perturbar a paz das minhas cavernas, estamos entedidos?

- Sim, meu amor – respondeu o Príncipe, agora mais submisso que nunca. Só então Ray Ann percebeu o carcomido e maltratado par de asas plumosas brancas, presas uma à outra de forma tão forte entre as omoplatas de Alado por tiras de um couro bruto que já estavam causando ferimentos profundos na pele delicada de pássaro que existia abaixo das penas macias. Uma focinheira para asas.


♦ ♦ ♦



O sistema de cavernas mais superficial, através dos quais os raios de sol adentravam por falhas nas rochas e refletiam de cristal em cristal até iluminar tudo era composto por quatro gigantescas câmaras redondas de teto alto e um largo corredor aparentemente infinito repleto de samambaias roxas e cogumelos mais baixos, azuis-turquesa salpicados de rosa. Pelo tanto que eles caminharam, a cadeia de túneis e grutas principal parecia não ter fim, e descia cada vez mais em direção ao centro do planeta anão na orbita de Antares.

As paredes das cavernas estavam cheias de buracos, por onde olhinhos amarelos curiosos espiavam o tempo inteiro. Vez ou outra, os estranhos macacos-morcego davam rasantes próximos ao rosto dos viajantes, arrancando gritinhos de espanto principalmente de Fábia. Augusta ia à frente ao lado de Hikikomori acompanhando o sistema de túneis pelo mapa do computador portátil carregado pela Sybila. Os caminhos se cruzavam e serpenteavam numa confusa teia de passagens e curvas o tempo inteiro na placa de vidro redonda onde as imagens se projetavam numa tela touch.

A vida ali embaixo era muito simples e pouco ameaçadora, grande parte dela vegetal. O maior animal que eles encontraram no caminho foi um tipo estranhíssimo de cobra cega – um misto de verme e réptil repugnante que se movia rápido demais para que os olhos acompanhassem seu percurso – e também um grupo daquelas bizarras girafas cegas que aparentemente se alimentam somente dos esporos brancos de Amanita Muscaria. O restante dos fungos multicolores eram completamente ignorados por esta peculiar forma de vida sob quatro pares de pernas, totalmente desprovida de olhos e donas de longos focinhos de tamanduá por onde uma língua fina e asquerosa ia e voltava o tempo inteiro.

A paisagem pouco mudou após se embrenharem na mata de fungos e samambaias alienígenas, o teto só se tornou mais baixo e as paredes mais e mais próximasaté que o pouco espaço que havia virou motivo de disputa pelos peregrinos do espaço. O medo estava sempre presente, qualquer som que diferia do gotejar de fontes subterrâneas e da corrente gelada de ar uivante das cavernas fazia os corações saltarem imediatamente. A atenção no breu era redobrada a cada passo. E a luz azul que surgiu na outra extremidade de um longo e apertado túnel foi motivo de assombro e desconfiança.

- Não temam, viajantes do espaço – disse uma voz sibilada, falha e ancestral.

A luz deu forma a uma silhueta alta e musculosa, um humano estava se aproximando! Passos pequenos e arrastados seguiam atrás daquela figura cada vez mais próxima, ruidosos, quase nervosos, acompanhados de vozes baixas e ciciantes como um ninho de cobras assustadas ecoava na caverna, como uma multidão de fantasmas a caminho do reino dos mortos, lamentado as perdas de uma vida passada, abraçando a eternidade. E a luz azul, a forte luz azul de uma meia lua pendurada num fio prateado, pendente de uma mão magra e enrugada. O homem que se aproximava vindo da luz trazia na mão direita um longo cajado e na esquerda, dedos de uma figura anã e franzina entrelaçados aos seus dedos militares.

A lanterna em forma de meia lua balançou de um lado para o outro antes de rachar ao meio e desfazer-se num pulsar ruidoso de luz, assustando o grupo guiado por Hikikomori. Fábia deu seu gritinho de espanto mais alto antes de cair sentada, ecoando pelo sistema intrincado de cavernas. Ao olhar novamente para cima, notou as expressões maravilhadas dos seus companheiros estáticos a observar a figura ondulante de uma espécie de arraia fluorescente que ostentava uma longa cauda fina e brilhante como um barbante de neon. Seu espectro luminoso revelava o rosto sorridente de um Donnick quase divino, cortejado pela criatura angelical que se originara do casulo em forma de meia lua.

- Aqui está, Chris – disse ele, estendendo o cajado em direção ao Cavaleiro de Ouro. Era a foice, a Foice Intergaláctica.




Continua...

2 comentários:

  1. FIQUEI ENCONTADO AO LER “HABITANTES DA ESCURIDÃO" PARTE DEZ. ONDE ENCONTRO AS OUTRAS PARTES?
    QUE DEUS LHE PROTEJA HOJE E SEMPRE.

    ANTONIO PANTOJA - (Pai)

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  2. Estou impactada com seus trabalhos, adorei o presente que vc mandou para Stella (Campinas), tenho certeza que conquistará seu merecido espaço.
    Sucesso, fique com Deus!
    Maura (mãe da Stella)

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