Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

PARTE NOVE: PARA BAIXO NO LABIRINTO DE CRISTAL!


- Mamãe?

- Hm?

- O céu é engraçado não é? – as mãos pequeninas viravam sem jeito as páginas de um enorme atlas celeste. Lá fora o sol ainda se punha atrás das coníferas.

- Porque diz isso meu bem?

- Porque ele é engraçado... Nem parece que tem todas essas coisas lá em cima.

Dedinhos morenos e curtos passeavam por entre as constelações, traçando animais, monstros e figuras humanas. Um cisne, dois peixes, dois cães, duas ursas, um gigante, uma princesa, um dragão, um leão. Aos poucos um reino imaginário se tecia diante dos pequenos olhinhos perolados de um ainda muito novo, Christopher Umbrella. Fios prateados interligavam pontos luminosos numa superfície de um azul escuro profundo como o mar, as bocarras se arreganhavam mostrando os dentes ferozes, as asas delicadas batiam sem parar, as caudas nervosas abanavam e Hércules brandia sua espada enquanto um escorpião enorme perseguia Órion. Dois gêmeos brincavam num balancinho enquanto um touro de olho vermelho bufava impaciente. O céu era lindo! Porque ele não nasceu lá?

- Mamãe?

- Sim?

- Você acha que existem pessoas lá no céu?

- Em outros planetas talvez, tão distantes que ainda não pudemos vê-los – a mãe largou o jornal por um instante enquanto bebericava o café e observava os últimos raios de sol cortarem as nuvens púrpuras do crepúsculo com delicadeza através da janela. Na parte mais escura do céu, logo acima das nuvens que separavam o dia da noite, três estrelas já brilhavam ansiosas, se adiantando no expediente. Ela ajeitou seu terninho bege e o colar de pérolas. Aos poucos outros pontinhos luminosos foram surgindo na paisagem, ou talvez ela só estivesse olhando com mais atenção.

- Será que existe outro planeta que nem a Terra, mamãe?! E existe outra mamãe como você, e outro Chris como eu?! – os olhinhos dele brilhavam enquanto a Cabeleira de Berenice ondulava na inexorável imensidão.

- Provavelmente sim, bebê. E talvez eles estejam dando tchau pra nós agora mesmo. – ela arredou a cadeira para trás e caminhou serena até a janela, afastou mais as cortinas brancas e sentiu a brisa gelada no rosto. O menininho levantou-se em meio aos seus papéis e fez o mesmo, passo a passo errante rumo à janela, desviando dos brinquedos e dos livros espalhados pelo chão. Seus olhos estavam à altura do parapeito, de modo que ele teve de se por na pontinha dos pés para enxergar melhor o que a mãe via. No final das contas não se arrependeu do esforço, a paisagem era belíssima. – dê tchau também, Chris! – ela ergueu a mão direita e acenou para as três estrelas distantes, seu pulso delicado parecia tão leve quanto a brisa que entrava pela janela. Pouco à vontade naquela posição, o garotinho puxou a cadeira mais próxima e subiu nela.
Assim estava melhor. Mãe e filho. Saudando as estrelas.



♦ ♦ ♦

Por algum motivo estranho, o Professor Umbrella sentiu-se extremamente nostálgico observando aquele pitoresco sistema planetário que se desenhou aos poucos diante dos seus olhos cansados. Primeiro tudo era escuridão, logo milhares de pontinhos luminosos foram surgindo como chuva de cristais por toda a extensão do painel infinito que se pintava aos poucos. Uma sombra escura veio debaixo como um arco, coroada por um halo luminoso que lançava raios vermelhos pálidos em direção ao infinito, como sangue diluído em água. A sombra escura se avolumava aos poucos pronunciando-se sobre os pontos luminosos que permeavam o infinito, as trevas pareciam iminentes quando tudo ia se tornando escuridão outra vez, e então aconteceu. Um brilho azul intenso atingiu o fundo da sua retina humana como um relâmpago castiga uma árvore morta no meio do descampado.

Christopher teve de tapar os olhos com os dois braços para não ficar cego, porém a luz era forte o suficiente a ponto de torná-lo capaz de ver cada vaso sanguíneo das suas pálpebras e mais além. Era impossível de acreditar, mas a luz estava atravessando a carne dos seus braços mostrando seus ossos como num raio-x. Tudo era de um azul intenso e elétrico, até que o mundo cobriu-se de sombras outra vez, trazendo de volta a fraca luz vermelha de uma estrela que estava prestes a morrer. Ao abrir os olhos novamente, deparou-se com um enorme orbe negro salpicado de pontiagudos espigões escuros aqui e ali, como um ouriço do mar flutuando no meio do espaço. Ao longe, um colossal sol vermelho queimava sua última cota de combustível, seus gases metálicos estavam se esgotando.

Mesmo tão longe (provavelmente estava a bilhares de quilômetros de distância), aquela estrela à beira da morte parecia monstruosamente grande, ocupava mais da metade do novo horizonte em sua extensão, fazendo aquele planetoide rochoso parecer uma reles pelota orbitada por meteoritos irregulares perdidos. Grandes pedaços de rocha circulavam-no numa ciranda infinita e atrapalhada, se chocando e dividindo-se em milhares de pedaços minúsculos. Um sistema planetário rústico e frágil ele era: caso aquela gigante vermelha explodisse, levaria tudo o que estava ao seu redor para o inferno, não sobraria nada para contar história. Nem mesmo a pequena anã azulada que observava à distância como uma pequena lua.

Naquele momento Christopher soube que a luz azulada que quase o cegara viera dela, então pôs-se de pé com dificuldade, tirando os braços da frente dos olhos com cuidado. Ainda se encontrava na extensa e redonda sala de controle da nave-mãe antes pertencente a Aib’Somar, agora ocupada pelos corpos desacordados de seus companheiros atordoados. Hikikomori já estava desperta quando ele tomou consciência de onde estava e quem era. Ela jazia parada como uma estátua de cera diante do telão principal, onde aquela paisagem caótica se desenhava aos poucos, conforme o corpo da nave em forma de ferradura se afastava.

- Onde... Onde estamos? – foi tudo o que ele conseguiu perguntar. Sua voz estava fina e rouca como se ele não falasse há décadas.

- Antares.

- O q...

- Antares, o Coração de Scorpio – tornou a dizer Hikikomori, com a voz carregada e fantasmagórica. – este planetoide que você vê – ela apontou para a rocha espinhosa que flutuava no vazio, rodeada de meteoritos – estava na mesma órbita que Plutão se encontra no seu sistema solar quando o Sol dele atingiu o tamanho atual e engoliu o restante dos planetas deste sistema solar. Ele foi o único que restou. Seus irmãos foram engolfados um a um.

- Mas... – a voz de Christopher foi ganhando força –não há planetas orbitando Antares, não há nenhum indício de...

- Você se engana, Cavaleiro de Ouro. Você se deixa enganar pela ciência parca e arcaica do seu planeta e se cega – o Professor Umbrella espantou-se quando seus lábios se moveram sem o seu consentimento, unindo-se à Sybila numa citação advinda de uma memória adormecida em sua alma – tentar enxergar um planeta orbitando uma estrela é comodetectar um mosquito voando ao redor de uma lâmpada... – Hikikomori se deteve propositalmente esboçando um leve sorriso, esperando que ele terminasse a frase por conta própria. Ele hesitou por um segundo.

- ...a quarteirões de distância... – ele levou a mão à boca, espantado. Já havia dito aquilo em uma das suas aulas, há muito tempo atrás. E agora estava repetindo involuntariamente.

- Esta é Antares – ela voltou-se para o telão outra vez. A nave se distanciava cada vez mais do planetoide, mas não tanto – fomos trazidos aqui pela força do inimigo, um inimigo ignorante que ignora a profecia e desconhece a existência do Cavaleiro e seus Escudeiros... A nova ameaça pretende me eliminar e assumir os louros do feito, e assim, a admiração e submissão dos Arquiduques restantes.

Christopher permanecia de cabeça baixa, atento ao que a Sybila dizia. Quando levantou os olhos em direção a ela, seus amigos estavam quase todos despertos, Ray Ann ajudava Fábia a levantar-se enquanto Pietro massageava as têmporas entre caretas e resmungos, o capitão Donnick já estava de pé.

- Eu não vou deixar.

Todos os olhares se voltaram para ele, até Augusta que permanecia deitada ao chão criando forças para se levantar pôs-se ereta rapidamente, sentindo a nova pulsação de energia que tomava conta do lugar. Não uma pulsação elétrica qualquer ou uma onda sísmica comum, era um coração batendo forte, em sincronia com o órgão que reavivava aos poucos dentro de seu lacre de ouro.

- Eu não vou permitir – ele fechou os punhos, já não era mais o atrapalhado e esquisito Professor Umbrella. – pouse esta nave e me leve até ele, seja lá quem esse novo inimigo for, eu o irei derrotá-lo. Ou não me chamo Christopher Umbrella! – uma onda dourada fervorosa e renovada atravessava suas veias e capilares como um trovão rasga o céu. Ele estava despertando aos poucos o Cavaleiro de Ouro adormecido dentro de si. Era hora de deixar o passado para trás e seguir em frente. Encarar o que quer que fosse que estivesse escondido dentro daquelas ravinas profundas e penhascos uivantes daquele novo e nocivo planeta.

Lá embaixo, algo rugiu na escuridão dos vales sombrios, e as outras coisas que se escondiam nos sulcos profundos do solo morto rosnaram em resposta, acompanhando a sinfonia da morte, esperando pacientemente, sedentos de sangue.



♦ ♦ ♦

- Preparar para o pouso! – exclamou Hikikomori. Ao acionar um dos botões especiais do painel de controle, os pequenos banquinhos usados pelas toupeirinhas para operar a nave foram substituídos por imponentes poltronas equipadas com cintos de segurança e capacetes. Ao todo elas eram seis, e a Sybila precisaria sentar-se ao meio para manipular o pouso seguro da nave com a ajuda de Donnick ao seu lado como copiloto, de modo que não houve espaço para Christopher sentar-se junto à equipe, levando-o a ocupar o trono flutuante onde antes Aib’Somar assentava controlando a área de Taurus e Bootis, o Boieiro. Era desconfortável estar ali, levando em conta o calor que aquele estofado de couro aderente emanava, era como estar com o traseiro grudado numa poltrona em meio ao inferno, em poucos minutos ele estava suando feito um porco antes do abate. Talvez aquele calor insuportável fosse sinônimo de conforto para a estranha Aib’Somar (que aliás estampava um enorme retrato logo acima do portal de entrada às suas costas) Uma criaturinha pitoresca e chifruda que lembrava um pequeno diabo.

E se o diabo cristão fora inspirado nela em uma visita secreta a terra? Chris sorriu por dentro, e admirou-se de si mesmo ao perceber que ainda podia rir em uma situação como aquelas. Era tão surreal e ilógica a ponto de ser patética e cômica. Ele, um Cavaleiro Intergaláctico? Que piada!

O pouso foi complicado. Imagine estar a bordo de um meteoro que acabou de atravessar a atmosfera terrestre acelerando tanto a ponto de prensar seus ossos contra a poltrona e esmigalhar seu cérebro contra a nuca, fazendo omelete dos seus olhos nas órbitas e amolecer cada músculo do seu corpo. Quase como cruzar o hiperespaço dentro de um avião acelerando na pista antes da decolagem. O segredo era manter a elíptica e dar a voltar completa no planetinha até a nave desacelerar, e isso demorou um tempo considerável levando em conta os relógios terrestres, Pietro e Fábia vomitaram em sincronia quando a nave finalmente pousou sobre uma espécie de planalto cinzento rodeado de precipícios.
Todos pareciam arrasados com o pouso, exceto Hikikomori e seu copiloto. Donnick só parecia um pouco tonto, afinal ele também era humano, não?

- Eles pousaram, minha senhora! – Fafis, o vulto encapuzado com rabo de rato atravessou a câmara subterrânea aos pulinhos em direção ao trono de cristal verde-água que ficava no final de um extenso e largo corredor ladeado por pilares gregos coloridos e transparentes, feitos de um tipo alienígena de quartzo reluzente e lapidado, toda a luz daquele ambiente emanava daquelas estruturas fluorescentes. Enormes cogumelos chapéu-de-sapo haviam crescido entre um pilar e outro, onde as mesmas criaturinhas peludas que lembravam rãs saltitavam animadas.

- Solte os bebês – fez a voz daquela que assentava ao trono com um risinho debochado. Suas vestes bufantes vermelhas respingavam um liquido viscoso enquanto seu rosto permanecia na penumbra, emoldurado por uma gola alegórica e carnavalesca. Seus cabelos serpenteavam nas sombras como se tivessem vida própria.

- Sim, senhora! – fez Fafis, curvando-se para frente numa mesura, seu focinho pontiagudo e rosado precipitou-se para frente por um instante, e então saiu do mesmo modo que entrou: aos pulinhos enquanto chiava como um roedor.


No centro da sala de controle, formando um círculo perfeito ao redor do trono de Aib’Somar haviam círculos desenhados no chão. Eram quase imperceptíveis, só mesmo uma atenção redobrada poderia ser capaz de revelá-los. Cada um dos viajantes do espaço ocupou seu próprio círculo, permitindo que colunas de luz envolvessem seus corpos e os transportassem para o próximo passo antes de saírem da nave.

- Sala das armas – disse Hikikomori, abrindo os braços. As luzes se acenderam, relevando um arsenal infinito disposto num salão tão grande quanto os laboratórios, porém a sensação de infinito estava ausente ali, com as paredes visíveis e completamente cobertas de armas desconhecidas aos olhos humanos do chão ao teto. Os viajantes do espaço reconheceram lanças, espadas, adagas e armas de fogo, armaduras estranhas repletas de espinhos e outras que lembravam samurais, reconheceram maças e pesadas correntes assassinas penduradas nos mostruários – escolham algo potente e de fácil manejo, não sabemos o que poderemos encontrar lá fora.

Ali, rodeados por armas letais de todos os tipos, o Apocalipse Club agradeceu pelas aulas de tiro ao alvo que tiveram em seu período de treinamento na Rússia, agora as tardes frias nos campos nevados tentando acertar bonecos de palha e frutas dispostas na cerca faziam todo o sentido, e eles ficaram gratos por isso. De todos ali presentes, fora Hikikomori, Donnick era o único que já possuía certa intimidade com armas, principalmente as de fogo, e ali havia lasers de todos os tipos e tamanhos, lança-chamas e elétricas também, de modo que no primeiro momento houve certa dificuldade em escolher uma única.

Por via das dúvidas ele pegou duas, pendurou uma em seu cinturão e estudou o funcionamento de outra. Pietro foi o mais exagerado, tratou de pegar algo bem grande e potente, com uma aparência rústica e imponente, uma espécie de misto entre metralhadora e bazuca, a qual pendurou nas costas com a ajuda de uma alça. Ray Ann desembainhou de uma armadura próxima um tipo estranho de espada de samurai eletrificada: a corrente elétrica atravessava o corpo metálico brilhante da lâmina soltando faíscas, tão afiada cujo som do ar sendo cortado ao meio tornava-se alto seguido do estalo elétrico.

Augusta seguiu o exemplo do mais experiente, Donnick, e pegou duas armas semelhantes à dele, já Fábia, mais inocente, pegou de um suporte na parede mais próxima uma espécie de báculo cor-de-rosa com um enorme coração alado na ponta. Hikikomori sobressaltou-se assustada ao ver a jovenzinha rechonchuda passando-o de mão em mão, tentando descobrir como o objeto funcionava.

- Não use isto aqui dentro! – gritou a Sybila, espantando a todos. Fábia assustou-se com o grito e deixou sua arma cair no chão. Por sorte estava desativada, e mesmo assim os outros integrantes do grupo ficaram se perguntando o que um objeto tão singelo e delicado faria de tão perigoso. Fábia deu de ombros, pegou-o do chão e pendurou nas costas numa espécie de estojo que o acompanhava.

Christopher era o único que estava em dúvida, percorreu grande parte daquele galpão arsenal olhando de um lado para o outro, sem simpatizar com nem uma única arma. Ou elas eram grandes demais, pequenas demais, estranhas demais, complicadas demais e até mesmo pouco intimidadoras. Ele precisava de algo que combinasse com ele, algo que se encaixasse com a sua personalidade e que fosse fácil de usar ao mesmo tempo. Já estava muito longe em um corredor lateral quando a encontrou, as vozes de seus companheiros debatendo o funcionamento de suas armas estavam ecoando distantes nas paredes, reverberando nos metais pesados das armaduras e no material sintético da sessão de lasers à sua direita. Ali, perto do final daquele corredor havia um enorme mostruário de lanças de todos os tipos, grandes e pesadas, pequenas e leves, pontiagudas ou não.

E no meio delas estava ela. Sua superfície reagia à fraca luz do ambiente reluzindo em reflexos multicolores como óleo derramado no asfalto à luz do sol, porém a cor violeta era a que imperava entre os espectros luminosos que seu metal negro forjado em algum planeta distante refletia nas outras armas ao redor, ofuscando todo o brilho metálico comum delas. Era uma lança comprida e delgada, que terminava numa espécie de foice dupla semelhante a um bico de papagaio apontando para cima, voltado para o teto. Uma enorme pedra roxa brilhava entre as lâminas, incrustada no metal negro bem polido e fosforescente.

- Ai! – exclamou o Professor Umbrella ao sentir a corrente elétrica que passou dele para a arma pendurada na parede ao tentar tocá-la. Esta era a química perfeita. Esta era a sua arma.

- Estamos prontos?! – ele surgiu caminhando das sombras esparramadas ao fim dos corredores daquele supermercado bélico empunhando sua mais nova companheira de batalha reluzente, todos os rostos se voltaram em sua direção, pasmos com aquilo que ele empunhava e com a aura de imponência e poder que a arma emanava em suas mãos. Eles foram feitos um para o outro, eram o par perfeito, nem Pietro e sua poderosa bazuca-metralhadora chegavam aos pés da lança negra empunhada por ChristopherUmbrella, o Cavaleiro de Ouro.

- Onde você achou isso?! – exclamou Ray Ann, pondo-se de pé imediatamente e caminhando em sua direção para vê-la mais de perto – parece a foice da morte! Que foda!
Christopher riu.

- Achei lá no final do corredor – ele apontou para trás, sorridente – na seção de lanças.

- O que será que isso faz? – Fábia também se aproximou para vê-la mais de perto – será que coleta almas?

Hikikomori esboçou um sorriso discreto e confiante. Ela sabia o que aquela arma era e porque Chris estava destinado a encontrá-la, mas não era o momento apropriado de dizê-lo. Ainda. O objeto estava coberto em trevas e em nada lembrava o que ele fora há bilhares de anos atrás, quando foi forjado pelos ferreiros astrais de um sistema solar divino e distante. Quando voltou a si, viu que o grupo se amontoava aos poucos em cima do Cavaleiro e de sua mais nova arma, falando alto, rindo e tentando tocá-la. Algo mais poderoso impedia que suas mãos curiosas chegassem muito perto, embora eles não percebessem.

- Vamos cavaleiros, não temos muito tempo – a Sybila costurou por entre as estantes à meia luz propícia para a conservação das armas em seus mostruários penetrando labirinto adentro com os seis apocalípticos em seu encalço, desembocando numa espécie de praça interna circular onde uma estátua feita em metal vermelho exatamente no centro do local representava uma imponente Aib’Somar de olhar feroz observando a todos de cima. Ao redor dela, os mesmos círculos sulcados no chão da sala do trono jaziam intactos e reluzentes. Cada um ocupou seu devido lugar e então foi engolfado pela coluna de luz mais uma vez, dessa vez para fora da nave, para o deserto cinzento que se estendia na planície deste novo e perigoso planeta.

Lá fora, o ar era nocivo aos pulmões humanos, o planeta havia se tornado venenoso com o passar do tempo, toda a forma de vida que existia na superfície morreu aos poucos, a água do único oceano evaporou e o solo tornou-se seco e compacto, nada além de pura rocha negra e fundida. O mesmo não ocorreu com seu interior. Por algum motivo, o núcleo do planeta continuou vivo, e o calor que ele produzia manteve a água dos profundos lençóis freáticos e rios subterrâneos em estado líquido. O vapor e a umidade tornaram o lugar berço para o surgimento de diversas formas de vida, que atualmente permeiam os subterrâneos daquele planeta ocupando densas florestas feitas de fungos, algas e vegetais pouco complexos, que não necessitam de muita luz para continuar vivendo nas amplas e vastas câmaras subterrâneas feitas de cristais desconhecidos e inomináveis.

Pelo menos era isto o que o computador portátil de Hikikomori mostrava. Ele nada mais era do que uma placa de vidro redonda onde o texto em alienígena e as imagens em 3D brincavam e se exibiam com graça enquanto eles cruzavam uma planície árida e cinzenta em suas máscaras de gás protetoras, que transformavam o ar venenoso em oxigênio puro e respirável. Os olhos também estavam muito bem protegidos por grandes óculos escuros platinados que refletiam o ambiente árido ao redor, livrando seus globos oculares da poeira e dos raios perigosos daquele sol vermelho.

Ao longo da planície, a paisagem era salpicada de grandes rochedos multiformes muito bem espaçados e troncos tortos petrificados, restos fossilizados das formas de vida vegetal que ocupavam aquele lugar há milênios atrás. O espanto foi geral ao descobrirem que as grandes rochas esculturais que adornavam a paisagem morta eram também fósseis de formas de vida ancestrais cnidárias. Christopher pode notar uma semelhança apavorante entre os corais e as esponjas existentes nos mares e oceanos terrestres e aqueles enormes arcos, cristas e domos que salpicavam a paisagem aqui e ali, colossais. Havia uma delas no meio do caminho, e foi preciso atravessar o túnel que suas curvas, arcos e arabescos formavam sobre uma passagem rochosa íngreme e perigosa. Exclamações de surpresa deram lugar aos gemidos sôfregos de cansaço ao deparar do grupo com um enorme crânio de uma espécie de lagarto colossal no final da trilha: eles estavam atravessando o interior de uma ossada aquele tempo inteiro!

Outras ossadas de criaturas pavorosas foram surgindo no caminho, estavam andando havia horas, e o efeito da nova gravidade sobre seus corpos passou a ser notado mais intensamente: as armas estavam relativamente mais pesadas e a dificuldade em levantar os pés do chão era razoável. Christopher usava sua enorme foice negra como cajado, enquanto o outro braço estava enlaçado ao de Donnick Hills, o capitão, que seguia tranquilamente ao seu lado como se estivesse a muito habituado com aquele tipo de situação. Por esse e outros motivos, ele decidiu usar o forte companheiro de apoio quando as cãibras começaram a dar sinal de vida. O sol vermelho não dava sinal de que fosse se por, talvez ele nunca se posse no horizonte! E a estrela azul que brilhava ao longe ofuscava o caminho à frente com mais força àquela hora do dia.

À frente do grupo ia Hikikomori e seu computador portátil seguindo as instruções do mapeamento daquele planeta feito por Aib’Somar. Apesar de estar praticamente seminua, a gravidade, a poeira e os fortes ventos parecia não fazer efeito em sua enorme estatura de quase dois metros. O único utensílio de proteção utilizado por ela tratava-se de uns óculos lilases onde círculos e triângulos de neon piscavam vez ou outra. Ao que parecia, ele fazia um par com a placa de vidro inteligente em suas mãos. A paisagem de picos escarpados no horizonte velando a morte de fósseis milenares no deserto cinzento logo foi substituída por dois paredões de pedra, um de cada lado. Grandes cânions ameaçadores feitos de rocha preta densa e pesada que pareciam estarem se curvando um em direção ao outro, fechando-se sobre o caminho pedregoso à frente o tempo inteiro, ameaçando esmagá-los a qualquer momento.

- Parem. – o sinal foi claro, havia apreensão na voz de Hikikomori. Eles estancaram imediatamente.

- O que? O que foi?! – começou Augusta, nervosa, exaltando-se. Pietro chiou para ela.

- Pontos vermelhos no mapa indicam movimentação de material orgânico... Há algo vindo em nossa direção! E muito rápido!

O pânico foi geral. Como algo poderia estar a caminho se aquele planeta estava completamente morto? Que tipo de criatura pavorosa viveria ali?!

- Escondam-se! Vamos! – Pietro foi o primeiro a correr para trás de uma rocha, Fábia e Ray empunhando suas armas seguiram-no por ele ser um dos maiores. Donnick e Chris ainda de braços dados agarraram a nervosa e esparrenta Augusta aos protestos e levaram-na para dentro de uma espécie de gruta próxima formada pelo vazio interno de uma enorme concha de caracol petrificada incrustada na rocha negra do paredão de pedra. Hikikomori diluiu-se no ar como água aos poucos até que sua silhueta minguou e desapareceu por completo. Havia manipulado a luz para ficar invisível.

“Não importa o que aconteça, não se mexam” fez a voz da Sybila em suas cabeças no mesmo instante em que uma sombra avolumou-se sobre a claridade que cobria o cânion. Augusta e Christopher abafaram um grito quando a coisa saltou da planície acima deles e caiu há poucos metros da gruta, bem diante dos seus olhos. Um enorme escorpião negro com o ferrão tinindo estalou suas pinças nervosamente. Era pouco menor que um rinoceronte pela estimativa chutada, mas tão leve que o baque de sua barriga dura e suas longas pernas articuladas na areia fina e brilhante no fundo do precipício foi macio como uma blusa sendo atirada no estofado. Se o grupo não houvesse sido alertado e a criatura aproveitado a distração para pular logo atrás da caravana, sua aproximação sequer teria sido notada. Outros dois monstrengos saltaram do cânion bem em cima de onde o grupo estivera há pouquíssimos minutos. Os corações martelavam desesperados contra as costelas, toda a água dos corpos esvaía pela testa em gotas pesadas de suor, mãos geladas suavam sem parar, as armas teimavam em escorregar por entre os dedos. E agora?

Os monstros estavam visivelmente procurando por algo, aparentavam ser muito mais espertos que os escorpiões convencionais pelo modo como se moviam, como suas caudas chacoalhavam à luz vermelha, pareciam até mesmo comunicarem-se entre si produzindo estalos com as suas mandíbulas apertadas e nervosas, inclinando-se sobre o chão e escavando a areia com as pinças de forma aparentemente irritada, frustrada. De onde eles saíram e porque Hikikomori não detectou a existência deles na superfície morta do planeta? Os seres vivos dali não habitam exclusivamente o subterrâneo? O motivo de preocupação maior não estaria dentro das cavernas, não fora? Como eles sobreviviam ali?

Pietro de trás de sua pedra preparou a arma, apoiando-a no ombro com cautela enquanto fechava um dos olhos para buscar a mira. Ray e Fábia estavam tão aturdidas e apavoradas que sequer perceberam o movimento perigoso do companheiro lodo à frente delas, não moviam um único músculo e mantinha os olhos pregados em cada mínimo movimento das criaturas.

“Não faça nada!” exclamou Hikikomori em sua cabeça “outros estão vindo e logo serão dezenas deles! Não podemos com esse número!” Pietro estancou, estivera tomado de adrenalina até então, e ao ouvir essas estatísticas alarmantes, abaixou a poderosa arma com cuidado e só então começou a suar frio como seus companheiros. Deu um ganido quando a criatura que estava de costas para a pedra voltou-se em sua direção girando nas compridas pernas escuras e lustrosas como seu corpo negro feito a noite. Ele abaixou-se rapidamente e empurrou as duas às suas costas para trás, para o fundo às sombras do paredão, longe da luz onde pudessem ser vistas.

- Como vamos sair daqui agora?! – sibilou Augusta, escondida atrás da parede humana composta pelas costas de Christopher e Donnick, eles haviam recuado tanto contra o fundo da concha gigante que estavam praticamente curvados uns sobre os outros conforme a estrutura da gruta se afunilava e espiralava em seu interior. Os três monstros haviam se separado e vasculhavam atrás de cada pedra e sob cada sombra oculta na estreita passagem entre os cânions usando suas pinças para triturar, arrastar e escavar. Seus ferrões pontiagudos e cintilantes apontados vigorosamente para frente sobre suas cabeças, prontos para investir contra a presa se fosse preciso. Prontos para o ataque.

“Vocês três” a Sybila se referia a Pietro e suas duas companheiras “corram para dentro da gruta ao meu sinal”

Fábia estava às lágrimas, tremendo.

- Eu não vou conseguir! – ganiu ela, atordoada. – Não vou...

“Já!”

Num rápido golpe de sorte Pietro pegou a gordinha pela cintura, meteu debaixo do braço e atravessou o campo arenoso banhado pelos fracos raios vermelhos da velha estrela com uma elétrica Ray Ann nos flancos, ela tinha a mão direita sobre a boca de Fábia abafando qualquer tentativa de grito da parte da garota assustada enquanto eles escapavam rente à traseira do perigo encarnado na forma de um enorme e feroz aracnídeo. Eles não haviam sequer terminado a travessia furtiva quando o escorpião mais distante à direita, entre eles e a entrada dos cânios – que até então tinha a face enfiada na areia escavada – ergueu-se da sua ocupação para dar o alerta: estalidos estridentes produzidos por suas pequenas mandíbulas despertaram a atenção dos outros dois escorpiões à esquerda. Um deles, o maior e mais ameaçador de todos que tinha a costa repleta de esporões pontiagudos, saltou à frente dos três bloqueando a passagem em direção à gruta. Logo, eles estavam cercados por todos os lados.

Um filete de suor escorreu pelo couro cabeludo de Ray Ann e percorreu a têmpora. Pietro estava estático. O primeiro ferrão voou em direção aos três numa velocidade absurda, como uma criatura daquele tamanho poderia se mover tão rapidamente? Agiu feito um chicote na areia fina levantando uma nuvem pesada de poeira cintilante no ar, Pietro desviou com maestria mesmo segurando uma Fábia apavorada, e Ray o seguiu capotando por cima dele. Os três estavam ao chão quando a segunda e a terceira chicotada vieram, cortando o ar nublado pelas partículas cinzentas ruidosamente, acertando a areia a poucos das ventas do rapaz, primeiro de um lado, depois de outro. Ele não hesitou, levantou uma garota em cada braço e correu seguindo seu próprio instinto, desviando de qualquer coisa que se movesse em seu caminho e saltando para dentro da gruta não tão distante com violência. As duas garotas voaram longe derrubando os atuais inquilinos da concha encravada na rocha, o Professor Umbrella e seus companheiros receberam o baque com exclamações de dor abafadas feito um soco no estômago.

E não acabou por aí: duas grandes pinças negras pertencentes a dois escorpiões diferentes penetraram a pequena entrada da concha violentamente, destruindo a estrutura frágil do fóssil e arregaçando completamente a passagem forçando a entrada, abrindo e fechando seus alicates dentados e letais. Um golpe daquelas aberrantes tesouras deceparia um braço facilmente como fosse feito de papel, partiria um frágil humano ao meio com facilidade.

O Apocalipse Club não se deixou tomar pelo medo. Apesar do pouco espaço que lhes restara para se movimentar, Augusta e Donnick puxaram seus lasers e iniciaram uma série de tiros certeiros que sequer arranharam a carapaça, o máximo de efeito que conseguiram foi chamuscar os pequenos pelos aveludados que cobriam toda a superfície escura do corpo das feras. Ray Ann desembainhou seu sabre eletrificado com um estalido potente e iniciou uma esgrima nervosa contra as duas pinças da morte, saindo completamente em desvantagem por se tratarem de quatro lâminas contra apenas uma, a eletricidade de seus golpes sequer faziam-nas recuar. Estariam eles perdidos?

- Afastem-se! – gritou Pietro em meio aos gritos e aos guinchos das criaturas do lado de fora. Puxou a arma das costas, apoiou no ombro, engatilhou e mirou. – vamos ter espetinho de escorpião pra janta hoje! – riu, sarcástico. – que nem na China!

“Puxe e solte” fez a voz da Sybila em sua cabeça. Ele assentiu rígido e determinado, as pinças estavam a poucos centímetros de picá-los em vários pedaços. E então aconteceu: ele puxou uma espécie de gancho lateral como se puxa a marcha de um carro, a arma vibrou potente zunindo feito turbina de avião, um zunido sônico ensurdecedor ecoou nas paredes espiraladas da concha fossilizada. Um medidor verde à altura de seus olhos apitou quando atingiu o seu limite, uma esfera vermelha que piscou três vezes alertando-o para que soltasse o gancho. Os oito canos da arma haviam canalizado todos os átomos da atmosfera ao redor numa e concentrado uma massiva esfera de energia sibilante que soltou-se ao ricocheteio da alavanca, explodindo contra as duas pinças afiadas fazendo-as em pedaços.

A energia gerada impulsionou Pietro para trás e empurrou todo o grupo às suas costas contra a última volta da concha, que praticamente cristalizada espatifou-se em milhares de cacos revelando um verdadeiro precipício, um fosso oculto pelas eras de transformação daquele planeta. Donnick que era o último do grupo não sustentou todo o peso daqueles corpos impulsionados para trás e caiu, seguido por Ray, Fábia, Christopher e Augusta. Pietro foi o último a dar adeus para a superfície e abraçar as profundezas de um poço sem fundo. Tudo foi escuridão e queda então.



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Após ser lançado para trás pelo peso do corpo de Augusta e perder o chão em que pisava completamente, aquele que costumava ser o Professor Umbrella tateou freneticamente o vazio em busca de apoio, de algo em que se agarrar, se fixar e parar a queda. Donnick não estava mais por perto, e não havia nada além de trevas puras, suas mãos fechavam-se no ar denso e poeirento desesperadamente. Se ele não usasse luvas, na certa teria no mínimo arranhado a palma das suas mãos com as próprias unhas.

Os gritos de seus companheiros abafados pelas máscaras de oxigênio (que mais lembravam o focinho de um ancestral vilão de um filme de ficção científica) foram ficando mais distantes, ecoando nas paredes de uma caverna que pareceu infinita enquanto ele escorregava de costas sobre uma superfície lisa como o túnel de um tobogã. Mas desta vez ele não estava em nem um parque aquático. Mãos tentaram segurá-lo e ele buscou agarrar-se à elas sem sucesso, e elas passavam por ele tão rápido que seus reflexos imediatos de nada adiantavam. O fim foi uma guinada brusca para cima que o lançou no ar como a carcaça de um peixe, seu estômago deu voltas completas em torno de si. Por fim ele estava livre, em queda livre, totalmente livre de paredes ou superfícies, caindo como na escuridão como nos pesadelos.

Quando seu corpo atingiu por fim uma superfície macia e esponjosa ele mal pode acreditar. Mal pode acreditar que seus ossos não haviam sido feito em pedaços pela queda, e sequer foi capaz de assimilar as estranhas bolotas felpudas que levantaram voo ao seu baque contra a superfície onde elas descansavam, perdendo-se nos vapores pesados e úmidos da caverna. Onde ele estava? Ainda podia ouvir os gritos distantes dos seus amigos e alguém pedindo para que ficassem calmos em suas cabeças. Hikikomori estava tentando quebrar a barreira do pânico à força para tentar apaziguá-los. Ecos de vozes e guinchos distantes de aves e animais indistintos ocupavam seus ouvidos na escuridão agora. Algo bateu asas logo ao seu lado, grasnou e fugiu apavorado à sua presença.

Ele estava tonto demais para levantar, permaneceu ali por um momento enquanto aguardava pelo pior, mas nada aconteceu. Silêncio total.

O silêncio foi quebrado aos poucos pelo som distante de uma multidão, que com a devida atenção prestada tornou-se uma ruidosa queda d’água a não muitos metros de distância. Aquilo o reconfortou, pelo menos havia água ali! Se ele estivesse perdido, pelo menos de fome não morreria. O calor e o cansaço do deserto agravados pelo pânico causado pelo surgimento dos escorpiões gigantes e a queda no vazio das trevas foram tão fortes unidos contra ele que Christopher nem foi capaz de notar o desmaio chegando aos poucos enquanto seu corpo relaxava numa espécie de torpor momentâneo. Ele queria se levantar, queria olhar ao redor, mas não conseguia mover um músculo. Apagou.

Ao se acordar novamente com o doce chamado de uma distante e terráquea mãe ao pé de seu ouvido, praticamente saltou para fora de seu leito profundo. A superfície macia na qual ele tinha caído havia sulcado-se sob a pressão do seu peso, afundando aos poucos, praticamente fechava-se sobre ele quando despertou. Espantou-se ao constatar que o céu estava completamente estrelado acima da sua cabeça, e nossa, como eram belas as estrelas daquele mundo! Tão próximas, grandes e gordas que ele poderia tocá-las! Não havia sinal algum daqueles dois malditos sóis cruéis que castigavam a superfície do planetoide em nenhum horizonte, nenhuma direção.

Imaginem o espanto do reles humano que havia adquirido o título nato de Cavaleiro de Ouro há poucas horas quando se deu conta de que o que lhe banhava de brilho e cintilava na escuridão acima da sua cabeça não se tratavam de estrelas, e sim pedras preciosas. Milhares de milhões delas, inúmeras pedras preciosas cobriam um teto alto, irregular e por vezes abobadado em sua extensão. Aquele teto era tão alto, mas tão alto que se passava facilmente por céu aos que permaneciam grogues após uma longa queda nas profundezas daquelas cavernas enquanto os olhos se habituavam à luz. Só assim ele foi capaz de perceber que não havia um único centímetro daquilo que lhe cobria feito de rocha fundida. Tudo, absolutamente tudo ali era feito de uma espécie de cristal negro que refletia as cores do arco-íris à luz fraca que brutas pedras fluorescentes produziam enraizadas nas paredes da câmara colossal, rachando para fora dos invólucros preciosos à sua volta e iluminando tudo.

Só após deliciar-se com aquela visão do paraíso que ele enfim olhou para baixo, para os seus pés e para toda a extensão de mundo que seguia em todas as direções para onde se olhava. Enormes montes vermelhos salpicados por pontinhos felpudos brancos protuberantes. O espaço entre essas protuberâncias salientes era pouquíssimo, de modo que a paisagem parecia mais um enorme campo vermelho repleto de dentes de leão. Pelo menos era o que ele pensava até ver um longo pescoço roxo cheio de listras verde-neon despontar entre os montes. Algo semelhante a uma girafa lambia e devorava tranquilamente as bolinhas felpudas que repousavam sobre um dos montes. Quando a coisa terminou a refeição e abriu caminho entre os morrinhos vermelhos ele pode perceber que estava de pé sobre um cogumelo gigante! Só percebeu isso graças aos caules brancos e grossos que ficaram à mostra durante a passagem do bicho-girafa. Uma floresta infinita de cogumelos!

Mais ao longe, palmeiras cor-de-rosa com folhagem semelhante às das samambaias terráqueas despontavam aqui e ali. Pássaros turquesa com dois pares de asa diferentes saltavam de uma copa à outra em algazarra, risadas divertidas ecoavam nos cristais luminescentes das paredes infinitas enquanto uma queda d’água estuprava a escuridão entre duas torres de cristal e derramava suas águas cristalinas e mornas em um lago transparente de fundo caleidoscópico há alguns metros dali. Ele poderia chegar lá num pulo se seguisse caminho margeando o pequeno regato que cortava a floresta de cogumelos. O ar estava carregado pela umidade, o suor lhe escorria por todo corpo agora... Espere um instante, risadas?!

“Às suas costas!” era a voz de Hikikomori em sua cabeça outra vez. Mas agora ela usava uma entonação que nunca havia usado! Parecia estar alegre, divertida até!

Christopher virou para trás rapidamente dando de cara com Pietro, Augusta, Fábia e Hikikomori há poucos chapéus de cogumelo de distância dele. Assim, Christopher saltou de cogumelo em cogumelo levantando nuvens de esporos brancos e felpudos no ar em direção aos seus companheiros. As bolotas peludas tinham o tamanho de bolas de golfe! O até então Professor Umbrella sequer percebeu que havia perdido sua foice negra...

- Escaparam senhora! – Fafis entrou aos guinchos na câmara dos pilares, seu rabinho de rata serpenteava nervoso cortando o ar feito um chicote enquanto suas mãozinhas delicadas tentavam manter o capuz sobre o seu focinho pontiagudo – escaparam os escorpiões e agora estão nas cavernas! Como procedemos então?!

A nova Arquiduquesa gargalhou alto, e sua risada tiniu nos cristais das paredes reverberando por uma extensão inteira dos túneis.

- Confesso que não esperava que Hikikomori tivesse companhia. De qualquer modo, as feras das florestas tomarão conta dos nossos hóspedes com muito prazer! O importante é que eles não cheguem às minhas minas em hipótese alguma – a criatura enfim levantou-se do trono, indo para a luz fraca dos cristais multicolores resplandecentes. Tinha assustadores três metros de altura e usava uma alegoria negra em forma de arco na cabeça, ocultando alguma anomalia de seu corpo alienígena que ela pretendia esconder nas sombras até o último momento. Um véu comprido caía do alto da coroa em cascata, cobrindo seu rosto. Seu corpo feminino estava coberto por uma malha transparente que expunha os mamilos roxos dos seus murchos seios. Apesar de viver no interior das cavernas, a cor natural de sua pele escamosa se mantinha: morena dourada. – estamos entendidas, Fafis?

A rata curvou-se.

Que ser terrível era aquele? Quem era a governante dos labirintos de cristal?


Continua...












definitivamente meu capítulo favorito =^.^=

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