Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

PARTE OITO: O CAVALEIRO DE OURO!


- MALDITO! MAL-DI-TO! – Aib’Somar em sua forma demoníaca urrava cuspindo fogo pela boca, as mãos monstruosas tapavam os buracos flamejantes deixados por seus olhos estourados com força. Cambaleava tonta de um lado para o outro da arena, caindo sobre a estrutura das arquibancadas e destruindo o que restava do lugar onde todas as rixas do universo terminavam. O homem com cabeça de tubarão já não respirava mais, seus olhinhos escuros e perolados estavam congelados e sua bocarra cheia de fileiras mortais de dentes jazia completamente aberta.

Aos poucos a arquiduquesa foi voltando ao seu tamanho normal e logo era uma anãzinha chifruda novamente. Seus cabelos cor de pelo de macaco estavam completamente desgrenhados e suas vestes imperiais brancas totalmente rasgadas e chamuscadas, apenas a chama entre seus cornos continuava uma labareda nervosa. Cega e furiosa.

- Minha senhora! Minha adorada senhora! – Arganack surgiu planando montado numa espécie de disco branco controlado por duas alavancas nas quais suas mãos membranosas repousavam – nosso galpão sofreu uma infestação instantânea de Hwangsaegs! Milhares deles, senhora!

- E PORQUE VOCÊ NÃO SE LIVROU DELES SOZINHO?! – a arquiduquesa tirou as mãos do rosto por um único momento para gesticular furiosa, exibindo as enormes cavidades abertas ali por seu adversário em um último esforço para derrotá-la – ESTOU CEGA AGORA! CEGA! NÃO POSSO FAZER NADA! ESTOU CEGA!

- Por Dunjung’han! Como isto foi lhe acontecer, soberana?! – Arganack levou suas barbatanas à boca, horrorizado.

- DESÇA JÁ DAÍ E ME AJUDE, SEU PALERMA! ARGH! – ela se retorcia de joelhos em agonia, numa dor insuportável e indescritível.



♦ ♦ ♦




- Aqui! O elevador que Hikikomori nos indicou! – Ray Ann estancou diante de um enorme portal circular coroado por dois chifres pontiagudos em alto relevo na parede vermelha e metálica.

- Esse lugar me parece o labirinto de Creta do filme do Minotauro, é apavorante! – Fábia estava encolhida contra as costas de Augusta.

- Este é o final do corredor, não há mais nenhuma porta aqui, só pode ser este então o elevador para o laboratório!

Ray Ann olhou ao redor.

- Tem razão Guta, a não ser que tenhamos de chafurdar pelos respiradouros...

- NEM PENSE NISSO! TÁ DOIDA?! – Augusta jogou os braços para o ar, nervosa. – me recuso a passar por isso de novo, vai lá saber o que não mora nas tubulações dessa nave!

- Tudo bem, então...

Um raio de luz azul iluminou o rosto das três, vinha de um facho luminoso que estava atravessando o portal na diagonal, dividindo-o ao meio. As duas partes iguais se separaram abrindo espaço que elas adentrassem no elevador por fim.

- Prontinho! – Ray sorriu e juntou as mãos – menos um problema!
Entraram praticamente juntas, e viram de perto a porta se materializar outra vez, trancando-as dentro de um ambiente vermelho e apertado.



♦ ♦ ♦




O corredor aparentemente sem fim abriu-se então em um enorme salão escuro fantasmagórico onde jaziam empalhadas criaturas hediondas em posição de ataque. Todas elas estavam suspensas e levitavam em um determinado círculo sob plataformas brancas e redondas que produziam uma luz vermelha infernal refletindo de baixo para cima, formando sombras apavorantes no distante teto da nave. Monstros tão assustadores e perturbadores quanto, ou até mais que aqueles deixados para trás, na arena.

- Parece que encontramos o salão de caça da Aib’Somar... – Pietro aproximou-se de uma das criaturas empalhadas. Esta tinha o dobro do tamanho dele, e ele era um rapaz tremendamente grande, quase tão grande quanto o Professor Umbrella. Entre as criaturas um extenso tapete preto dividia o amplo salão redondo em dois lados, no final daquela passarela demoníaca repleta de pavores alienígenas à espreita havia uma pesada porta vermelha perfurada de cima abaixo por gigantescos parafusos prateados colocados num padrão perfeito enfileirado.

- Não é a porta de entrada pra última fase do Super Mario?! – Donnick começou a rir apontando o final do corredor – será que vamos encontrar o Bowser do outro lado?!
Pietro e Christopher se entreolharam confusos.

- Tudo bem, foi só uma piadinha tosca, vamos logo ao que interessa, temos que ser rápidos!
Mesmo receosos, eles atravessaram o corredor das abominações passo após passo temendo surpresas, armadilhas que os estivessem esperando na metade do caminho, porém nada aconteceu. Ao alcançarem a misteriosa porta dupla vermelha colossal – que mais lembravam os portões do inferno – o grande dilema pairou como uma pesada nuvem de chuva: como abri-la? Apesar de a nave não parecer tão grande por fora, seu interior aparentava ter o triplo do tamanho original e não condizia com a estrutura em forma de ferradura, o que levava imediatamente a calcular que o povo de Taurus talvez possuísse uma espécie de controle sobre a expansão e a compactação do espaço físico. Coisa que ainda estava em fase de estudos na Terra. E este paradoxo do tamanho refletia de forma monstruosa sobre aquela porta: ela tinha o tamanho de um prédio de quatro andares e a largura de um ônibus.

- Deve haver algum tipo de mecanismo para abri-la... – Donnick analisava a estrutura de cima a baixo com a mão no queixo, de braços cruzados enquanto Pietro e Chris tocavam os “animais” empalhados com curiosidade.

- Pode haver uma palavra chave! – exclamou Chris enquanto cutucava as presas de uma espécie de gorila roxo exatamente como aquela vista na arena. Talvez fossem parentes. Pietro absorto admirava uma espécie de lagarto peludo bípede com cabeça de periquito e olhos esbugalhados.

- Tem razão...

“Faça um triângulo, um círculo, um triângulo e um xis com as mãos voltadas para o portal” a voz de Hikikomori surpreendeu a todos ecoando no vazio. Os dois distraídos receberam-na com espanto “as garotas chegaram ao laboratório, logo farei companhia a vocês”.

Donnick franziu o cenho confuso e seguiu as coordenadas sem muitas cerimônias, e eis que com um ranger semelhante ao roncar do estômago de um dragão, os portões para a grandiosa sala de controle se abriram, revelando mais um amplo salão circular com enormes telas côncavas de alta definição ocupando-as de uma ponta a outra. Mostravam cenas do universo lá fora: mapas da constelação de Taurus em 3D com cada planeta e cada asteroide marcado, seus nomes e dados ao lado flutuando em balões no mundo digital, piscando eternamente na imensidão infinita. As mesas de controle que ficavam logo abaixo destes telões eram sucessões de botões, radares e telas de touch-screen em sua maioria, o que dava um ar de alta tecnologia àquele vermelho lugar. No centro dele, um enorme trono oval coroado por dois chifres flutuava solene.

- Uau. – foi tudo o que o capitão conseguiu dizer.

Os telões mudaram para mostrar então o exterior da nave: milhares de criaturinhas asquerosas escalando centímetro por centímetro, tentando encontrar uma brecha para entrar, rastejando contra o casco metálico do transporte interestelar em formato de ferradura. Um dos telões também mostrava a situação da arena, completamente destruída enquanto o atrapalhado Arganack tentava ajudar uma furiosa – e cega – Aib’Somar.

- Temos que dar um jeito de por essa bagaça pra funcionar, ou estamos fritos! – exclamou Pietro aproximando-se dos painéis.



♦ ♦ ♦




As portas do elevador se abriram outra vez após um curto intervalo onde as garotas permaneceram quietas, imóveis enquanto ouviam o mugir distante de vacas no pasto.

- Sério que a música de elevador deles é essa? – Ray fez uma careta. Augusta deu de ombros e Fábia estufou um lado da bochecha, distraída.

Aquele era o laboratório então. Parecia mais uma dimensão paralela infinita, elas sequer enxergavam o teto, tudo era escuridão. O lugar parecia não possuir paredes, tudo o que havia era um horizonte infinito de mesas de escritório e vastas bancadas repletas de tubos de ensaio e computadores de última geração. Mecanismos intrincados e tubulações misturavam-se aos enormes tanques de vidro onde estranhos organismos nadavam ou apenas descansavam em conserva, adormecidos. Estranhas criaturas em um estágio fetal dividiam espaço com robôs grandes e pequenos em observação para futuros testes sob a escuridão de um teto distante e invisível. Parecia um campo artificial a céu aberto, não havia aquela sensação de lugar fechado, de estar “dentro”, era mais como estar misteriosamente do lado de fora.
Quem trabalhava ali? Quem operava naquele laboratório? Onde estava a tripulação da nave? Aquilo era tão estranho.

Aquele lugar dava arrepios, os espectrais azulejos esverdeados que cobriam o chão do laboratório brilhavam no escuro dando-lhe um ar lúgubre, fantasmagórico e ao mesmo tempo ultra tecnológico, moderno. A sensação de perigo e restrição que o ambiente interno da nave mãe passava era muito mais forte ali dentro, o lugar tinha uma atmosfera pesada de “proibição”, era como se só o fato de estar ali fosse um erro tremendo, mortal. A grande vontade das três garotas era virar as costas e sair correndo, jamais voltar ali novamente. Encarar aquelas criaturas enormes flutuando em líquido amniótico era angustiante, elas poderiam abrir os olhos a qualquer momento!
“Sigam em linha reta e me encontrarão adormecida em uma das Cápsulas. Não toquem em nada, em hipótese alguma”

- Ouviu bem, Fábia?! – Ray olhou para trás no exato momento em que a rechonchuda garota de curtas madeixas em lavanda se inclinava sobre uma mesa para ver mais de perto uma experiência dissecada deixada pela metade.

- SIM! SIM! – ela pôs-se ereta rapidamente e mecanicamente virou-se para frente, com os olhos vidrados e as mãos coladas ao corpo. Atravessaram então o infinito salão dos laboratórios na pontinha dos pés, com medo de despertar qualquer coisa que estivesse adormecida naquele universo à parte, fazer soar alarmes invisíveis que se ativariam a menor respiração mais forte, os olhos das três garotas vasculhavam o mundo fantasmagórico com receio e curiosidade ao mesmo tempo. Um misto de emoções que cessou quando Ray Ann deu de cara com um campo de força invisível, as outras pararam logo atrás no mesmo instante em que viram a passagem ser obstruída por algo semelhante a uma parede de vidro.

Após aquele campo de força não havia nada, apenas escuridão. Até os enormes azulejos do piso que agora oscilavam entre o turquesa e o jade desapareciam após ele.
Para o espanto das jovens, símbolos estranhos começaram a se formar no ar diante de seus rostos, na superfície que a uma segunda olhada mostrava-se espelhada, revelando ser realmente uma espécie de vidro em perfeito estado de translucidez.

- Acho que está pedindo senha – Fábia esticou o dedão em direção à tela touch onde quadrados e retângulos dançavam entre os ideogramas de um tipo alienígena de coreano. – que estranho! Esse alfabeto alienígena parece tanto com o Hangeul, mas ao mesmo tempo é escrito de forma tão diferente!

- Como você sabe tanto a respeito do assunto, Fábia? – indagou Ray pondo-se de pé com a ajuda de Augusta. A pobrezinha esfregava o nariz arrebitado agora vermelho pela pancada contra o vidro.

- Meus pais moraram na Coréia durante a minha infância, completei meus primeiros anos de escola por lá, então ainda sei algumas coisas... – rapidamente, seus dedos gordinhos começaram a brincar com os símbolos que surgiam na superfície de vidro, e em poucos segundos uma passagem redonda começou a se abrir diante das três gradativamente. Logo, uma passagem havia surgido. Do outro lado, nada além de escuridão.

Fábia olhou para trás.

- Quem vai primeiro? – perguntou.

- Ora, foi você que abriu, então porque não entra primeiro? – fez Augusta, nervosa.

Fábia deu de ombros e então, pé após o outro, passou para o lado de lá. Imediatamente as luzes do laboratório às suas costas apagaram, como se o azulejo resplandecente fosse perdendo o brilho gradativamente até desaparecer completamente, e para espanto geral, quadrados de luz vermelha acenderam-se no piso logo à frente, no território que Fábia havia acabado de invadir. Logo então havia um piso reluzente como anteriormente, só que tingido de um carmim fluorescente e sangrento, acentuando as estranhas estruturas orgânicas que erguiam seu flanco acima do chão como troncos feitos de uma carne escura, escamosa e pulsante.

Na “copa” destes estranhos troncos retorcidos de carne haviam enormes casulos amarelos repletos de bolhas transparentes que revelavam seu conteúdo gelatinoso onde estranhos corpos revolviam-se calmamente, postos para dormir um sono sem fim onde toda a sua energia é absorvida para alimentar a nave e servir de combustível para mantê-la em operação constante e eterna. Prisioneiros de Aib’Somar recolhidos dos cantos mais remotos do universo repousavam sob sua vista rigorosa ali naquela câmara dos horrores.

- Isto é... peculiar... – exclamou Ray fazendo uma careta.

- Isso é um nojo! – bradou Augusta afastando-se de um dos casulos gotejantes.
Fábia simplesmente apoiou as mãos nos joelhos e vomitou. Aquele lugar cheirava a ferida, ferida aberta há dias, com os tecidos se reconstruindo aos poucos, exalando um odor de carne queimada e Rifocina desagradáveis.

“Eu estou aqui!” um dos casulos reluziu num violeta fraco, tentando sobressair-se na câmara escura. A iluminação era perfeita para marcar momentos com nitrato de prata. Ray Ann então puxou um canivete do bolso – surgido das trevas! – e iniciou o trabalho sujo, abrindo um corte profundo e comprido na superfície macia e asquerosa, litros daquela substância amarelada do interior do casulo brotaram do rasgo aberto. Sua consistência era a de um creme pesado e oleoso. Ray Ann então enfiou os dois braços até os cotovelos dentro daquela coisa e revolveu seu conteúdo, agarrando-se a algo sólido e puxando aquilo para fora com força. Hikikomori foi ao chão feito uma vitela, o casulo apagou-se e secou instantaneamente até virar uma casca seca e áspera diante dos olhos de todos.

Seu corpo então desfez-se numa revoada de mariposas que envolveu as três numa nuvem de asas farfalhantes. Segundos depois, se encontravam no centro do salão de controle da nave mãe do império de Taurus.

- Temos de sair de Hyeol-Aeg agora mesmo – a última revoada de saturnídeas deu origem aos cabelos esvoaçantes de Hikikomori, que a passos largos cobriu rapidamente a distância até as mesas de comando, afastando Pietro e Chris para o lado com a força de um pensamento e iniciando os procedimentos para decolagem sem sequer tocar em um único botão, movimentando os dedos como um maestro. Parte dos telões mostrava o exterior da nave e outra parte exibia comandos, letras, algo semelhante a números, imagens em 3D dos motores e dos mecanismos numa velocidade absurda.

Lá fora, na superfície rochosa do asteroide terraplanado, o chão poeirento e morto de Hyeol-Aeg abria-se para dar passagem ao grande cruzeiro espacial em formato de ferradura que vinha das profundezas do hangar da frota do império. O Apocalipse Club estava em fuga!

- MINHA NAVE! A MINHA ESPAÇONAVE! – urrou Aib’Somar ao avistar ao longe a nuvem de poeira se erguendo acima dos picos azulados e pontiagudos das pequenas cordilheiras cintilantes daquele micro planeta irregular. A essa altura seus olhos já haviam se regenerado completamente. – MINHA CENTRAL DE COMANDO! MEU QUARTEL GENERAL! A BASE DO MEU IMPÉRIO! MINHA COLEÇÃO DE REVISTAS DO GLOBO RURAL! M-A-L-D-I-T-O-S SEJAM! – seus punhos minúsculos socavam o cocuruto de peixe de Arganack, que reagia com gemidos baixinhos e submissos. Os dois voavam a toda velocidade em cima da “prancha” prateada, mas jamais conseguiriam alcançar a nave a tempo.

Atrás deles, os restos do coliseu em chamas explodiam lançando labaredas de chamas púrpuras para cima, danificando a estrutura da cúpula por dentro. Em poucos instantes não haveria mais atmosfera artificial na superfície daquele planetoide: o domo superaqueceria por dentro e explodiria mesmo que a ferradura dourada gigante não o quebrasse e escapasse para o espaço sideral tendo Hikikomori e seus protegidos em seu interior.

- MALDIÇÃO!

Tudo então foi preenchido pelo vácuo, todo o corpo orgânico que ali restava inchou feito um balão e explodiu, espalhando carne em todas as direções, esticando e retorcendo. Pequenas explosões programadas para emergências como aquelas destruíram a superfície do astreoide aos poucos, até já não restar mais nada. Nem um par de chifres para contar história. O império de Taurus chegara ao fim.



♦ ♦ ♦




Hikikomori permaneceu parada diante do telão côncavo principal. Todos eles dobravam-se às curvas da parede redonda do salão circular, o cérebro da nave, a luz ali era vermelha exatamente como em quase todos os seus corredores e câmaras. enquanto seu corpo gigantesco se distanciava do asteroide que se autodestruía logo atrás, o Apocalipse Club observava mudo ao fim do reinado tirano da Arquiduquesa Aib’Somar sob a constelação de Taurus e suas similaridades, sendo exibido como o desfecho de um filme de ficção científica em quase todos os enormes monitores, projetando seu reflexo sob a plateia silenciosa.

- Agora está na hora do nosso acerto de contas – o Professor Umbrella foi o primeiro a quebrar a pedra de gelo que havia se formado ao redor do grupo. Todos eles permaneciam estáticos em seus lugares, a anestesia da adrenalina momentânea estava passando e a realidade cobria-os aos poucos com seu manto gelado. Eles estavam perdidos no meio do espaço tendo como única fonte de respostas uma alienígena chamada Sybila Hikikomori, que até o momento não havia revelado suas verdadeiras intenções quanto ao grupo. Amiga ou inimiga? O que ela pretendia e por que os estava ajudando? Para onde ela os estava levando?
Ela virou-se serena e vagarosamente em direção aos seis rostos humanos. Neles estavam expressas emoções como numa folha em branco amassada. Medo, desamparo e angústia dividiam o mesmo espaço tristemente. Os longos cílios da Sybila subiram e desceram graciosamente, ela juntou as mãos diante do peito.

- Então chegou o momento – disse. E iniciou uma longa explicação sobre o início daquela era de trevas que cobriu o universo aos poucos e instaurou o terror e medo nos corações puros dos habitantes de cada planeta, de cada galáxia. Coisas que aconteceram no tempo antes do tempo, quando o planeta Terra ainda era uma massa disforme de gás e matéria em rebuliço. Contou-lhes sobre a doce Princesa Azura e como ela se tornou uma cruel Imperatriz, contou-lhes sobre os nove Arquiduques nomeados para representá-la em nove grandes áreas do universo como tentáculos escuros estendidos sobre a paz que antes reinava nele.

- Eu fui uma Arquiduquesa também – disse ela, surpreendendo a todos repentinamente. O modo como ela contava a história, seus gestos, sua fala, sua entonação, tornava tudo tão real que era difícil duvidar da veracidade daqueles fatos fantasiosos e oníricos. – minha mãe, Sybila Alethea, foi uma espécie de conselheira do império. Nenhuma decisão era tomada pelos pais de Azura e seus antepassados sem antes consultá-la, e quando Azura foi tomada pela Matéria Escura oriunda do buraco negro, uma das suas primeiras decisões foi mandar executá-la.

“Mamãe poderia ter escapado, poderia ter fugido, poderia ter driblado o mal e escapado para uma lua distante onde viveria o resto dos seus éons em paz. Porém, ao ver a íris dourada da princesa perder a cor até tingir-se de um violeta frio e apagado, ela soube que seu momento havia chegado, então se dissolveu até desaparecer por completo. Era hora de se juntar às estrelas. De verdade. Eu a substituí imediatamente e ganhei o título de Primeira Arquiduquesa. Minha missão era esta, sempre fora. Proteger a princesa e estar ao lado dela onde quer que fosse, guiá-la e velá-la não importasse sua condição. Servi-la a qualquer custo. Então eu não tive escolha senão me tornar parte de seu império cruel.”

“Isso sempre despertou inveja nos outros Arquiduques nomeados posteriormente, principalmente em Aib’Somar. Porém isto nunca foi um problema, eu sempre fui mais poderosa que todos eles reunidos, se me encontro neste triste estado é pela ausência da Princesa... Quando ela desapareceu, os Arquiduques se reuniram e tramaram um golpe que tomou minha terça parte dos exército de androides e as áreas do universo sob o meu controle. Eles precisavam de uma desculpa para tal, então usando como argumento minha relação com Sybila Alethea, ordenaram minha captura e deixaram a missão sob a jurisdição de Aib’Somar...”

- Isto é uma triste história... – Fábia abaixou a cabeça tristemente. Christopher observava-a em seu pesar, então virou-se em direção a Hikikomori e questionou-a duramente.

- Tudo muito triste, tudo muito trágico – disse, levemente alterado – mas o que NÓS temos a ver com isso?! Somos apenas seis humanos normais e ordinários! Estes quatro – ele apontou para seus alunos – são apenas jovens com uma vida inteira pela frente! Não temos culpa do que aconteceu ou deixa de acontecer aqui fora no universo, queremos voltar para nosso planeta, para nossas vidas, para nossas...

Um brilhou dourado rápido como um relâmpago cegou a todos repentinamente tomando o salão de uma ponta a outra extinguindo a iluminação vermelha parcialmente, originando-se do espaço que separava Hikikomori do restante do grupo, esta tinha seus braços abertos e os olhos fechados. Quando a resplandecência misteriosa cessou, em seu lugar flutuava uma caixa dourada multifacetada, revolvendo-se no ar vagarosamente numa delicadeza cheia de fragilidade, como um planeta em miniatura planando no vácuo. Uma aura dourada a envolvia, e Christopher Umbrella reconheceu aquilo, sua memória voltou em um flash doloroso feito uma descarga elétrica potente.

As imagens foram surgindo sobrepostas violentamente, aquela coisa no caixote de vidro, depois a revoada de mariposas, depois o laboratório, o pulsar dourado, a ventania misteriosa, as lembranças de algo que ele nunca viveu. Ele sentia tudo e sabia de tudo, ele tinha noção do que tinha de fazer, ele nascera para aquilo, aquela era sua missão final, a vida medíocre de professor numa universidade moderninha nunca fora seu verdadeiro propósito, e o universo como a grande consciência que é tratou de colocá-lo no caminho certo encaixando as peças de seu destino sem dificuldade alguma, ele estava exatamente onde deveria estar, na trilha certa, no caminho para o seu verdadeiro propósito.

Agora ele entendia tudo. Agora ele compreendia o vazio em seu peito, a ausência de uma razão para viver. Agora ele entendia porque preenchera o vazio em seu peito ocupando tantos anos da sua vida com estudos e mais estudos acerca do espaço e das estrelas, o modo como as coisas funcionavam ali em cima sempre o fascinou desde criança, mas conhecê-lo através de livros e imagens nunca foi o bastante, aquilo lhe causava angústia e agonia constantes. Isto acontecia porque ele estava destinado a ir até lá um dia, estava destinado a voltar ao seu lugar de origem, aonde sua alma se originou antes de se perder e nascer em um corpo humano, num planeta esquecido do resto do universo. Por um instante o vazio foi preenchido dolorosamente como uma caverna à beira mar é penetrada violentamente pelo falo vigoroso da maré cheia, com urros, uivos e gemidos guturais de protesto. Aquele rosto, aquele sorriso, aquela doce voz e os olhos dourados como os de uma leoa o instigavam e o provocavam a seguir em frente, a encontrá-la. A achar a sua outra metade.

- Agora você entende, Christopher Umbrella? – perguntou Hikikomori, com um sorriso doce e maternal de compreensão e carinho enquanto os outros permaneciam em silêncio, confusos. Ela então voltou-se para eles. – antes de desaparecer, minha mãe fez uma profecia. Sua premonição falava sobre um guerreiro que viria de um sistema solar distante para limpar as trevas que cobrem o universo com um brilho dourado nunca antes visto. Sua luz seria mais forte e mais poderosa do que o resplandecer de uma supernova, e iluminaria todo o espaço sideral quando chegasse a hora, brilhando mais do que um bilhão de estrelas reunidas. Seu brilho cegaria o mal e devolveria a visão ao bem, fazendo raiar o dia antes do alvorecer em cada planeta e lua do universo. Este é o Cavaleiro de Ouro, e ele foi incumbido no começo das eras a devolver o coração de Azura ao seu peito. Juntos, os dois seriam um só, masculino e feminino unidos para sempre, restaurando a ordem universal...

A caixa dourada revolveu-se como um cubo mágico, suas faces triangulares virando frenética e mecanicamente, abrindo-se feito uma flor e revelando seu interior dourado que guardava o órgão vital adormecido da Princesa.

- Você, Christopher Umbrella, você é o Cavaleiro de Ouro.




♦ ♦ ♦




- Então Aib’Somar caiu... – dedos longos e ossudos roçaram no braço úmido de um trono macio e orgânico. Aquele lugar repleto de escuridão parecia uma câmara de esgoto metros abaixo da superfície. Metais preciosos desconhecidos aos olhos humanos reluziam incrustados nas paredes enquanto pequenas criaturas peludas semelhantes à rãs saltitavam em cima dos rubros chapéus de cogumelos do tamanho de arbustos. – ela era fraca e egocêntrica, jamais deveria ter sido escolhida como uma Aib, sempre foi incapacitada de comandar...

Uma nervosa e irritante vozinha de rato quebrou a reflexão da soberana ao meio feito um biscoito velho.

- Concordo plenamente, minha senhora! Eleger o atrapalhado Arganack como braço direito foi a prova de que ela era incapacitada para...

- CALADA FAFIS! – uma enorme pedra preciosa foi atirada contra o vulto encapuzado, espatifando-se na parede logo atrás. Por pouco não o atingira. – não pedi a sua opinião, sua miserável!

- Sim! Sim! Sim senhora! – o vulto curvou-se várias vezes em respeito e submissão.

- Vá até as torres de comando na superfície e rastreie a nave mãe de Aib’Somar! Peça para que os especialistas invadam o sistema e mudem a rota dela! Quero torcer o pescoço de Hikikomori com as minhas próprias mãos e ganhar todos os méritos por isso...

Um risinho baixo foi a deixa para que o vulto com rabo de rato chispasse dali na pontinha dos pés, pulando sobre os cogumelos feito um canguru, usando-os como degraus de uma escada rumo ao pedregoso e morto mundo exterior. Lá fora, acima de vales rochosos e vertiginosos, sobre profundas crateras sombrias e pontiagudos picos ressecados formando cadeias intermináveis de montanhas tortas e irregulares, dois sóis brilhavam. O mais próximo, uma gigantesca estrela vermelha e fria, iluminava a superfície do planeta com vigor enquanto o outro, distante e azul lançava seus raios mornos através dos arcos de pedra que atravessavam as ravinas e penhascos como pontes naturais. Ao longe, duas enormes saliências de metal no horizonte equilibravam dois discos prateados onde luzes vermelhas piscavam sem parar. Alguma coisa rugiu entre os vales, e seu urro fez com que enormes pedregulhos se desprendessem das montanhas.




♦ ♦ ♦




- A profecia também cita quatro escolhidos, quatro guerreiros nascidos sob o brilho de uma estrela de batalha. – Hikikomori virou de costas para a sua plateia que a observava atenta, revelando suas nádegas brancas onde alguns fios repletos de pérolas repousavam suavemente. Eles quase haviam se esquecido de que ela andava seminua. – eles serão seus pés, suas mãos, seu cérebro e seus olhos, e o auxiliarão na busca pela princesa perdida... – ela abriu os braços, e os monitores rapidamente mudaram, substituindo quaisquer imagens que exibiam por um retrato de Azura sentada de lado em um trono dourado com o recosto triangular. Sua expressão era tão misteriosa quanto o meio sorriso de Monalisa, e ao mesmo tempo parecia doce e inofensiva. Olhos dourados contrastavam com a pele lisa e brilhante em um rosto levemente bronzeado. O resto eram roupas, pompa, luxo e riqueza. Como o quadro de uma monarca deveria ser.

- Esta é Azura? – os olhos de Fábia brilhavam. Augusta deu um passo à frente, encantada.

- Ela é linda! – os olhos de Ray Ann marejaram.

- Maravilhosa... – murmurou Pietro hipnotizado.

- Perfeita... – Donnick também aproximou-se mais da tela à sua frente.

O Professor Umbrella foi o único que permaneceu em silêncio, a cor sumira completamente do seu rosto, sentia-se encarando uma assombração vindoura de um passado distante, seu coração pesou feito chumbo no peito.

- Em vidas passadas vocês foram os quatro escudeiros da Princesa, nascendo em corpos diferentes a cada virada de éon, perseguindo sua sina, procurando sutilmente pelo seu destino. – ela virou-se de costas para a tela, e uma chuva de imagens intercalou-se em três dimensões numa velocidade difícil de acompanhar. Rostos, corpos, armaduras e formas brincavam na tela. – Em oposição aos Nove Arquiduques, vocês são os Quatro Duques, guerreiros que decidiram lutar pela paz no universo sempre que a oportunidade de encarnar lhes era concedida...

- Por algum motivo eu me sinto tão... familiarizada! – Fábia levou as mãos ao coração.

- É como se nós já soubéssemos o tempo inteiro que isso ia acontecer... – Augusta permanecia séria, com o cenho franzido, vasculhando cada rosto com olhos cheios de uma certeza e determinação nunca antes vista em sua expressão avoada e serena.

- Mas espere um pouco, nós somos cinco! – exclamou Ray Ann, repentinamente se dando conta do número de pessoas que ocupava aquela sala de comando. Fora Hikikomori eles eram seis, e excluindo o suposto Cavaleiro de Ouro, eles eram cinco! Alguma coisa estava errada nessa conta.

Hikikomori sentou-se calmamente em uma poltrona próxima, onde antes uma pequena toupeira já operara os controles da nave mãe. Aquela mulher era gigantesca!

- É neste ponto que o presente diverge da profecia feita por minha mãe – pela primeira vez eles viram-na assumir um manto de preocupação. – não sei em que isso implica nem o que isso significa... Não posso também dizer quais de vocês são os Quatro Duques escolhidos, não tive contato com nem um deles então não decorei a aura, a “impressão” que eles deixaram na existência...

- Como assim? – questionou Pietro, cruzando os braços.

- Qualquer criatura viva tem um propósito na vida, tem um plano na existência, isto já foi planejado antes de o universo se formar como o conhecemos hoje. Este propósito com o qual ela existe afeta o mundo ao seu redor como ondas provocadas por uma pedra jogada na superfície espelhada de um lago... Quando uma existência não está no lugar onde deveria estar, essa ondulação no universo deixa de existir, pois ela já não é capaz de afetar o ambiente onde vive porque aquele não é o lugar aonde pertence. Eu consigo sentir essas ondulações, e sei quando uma coisa está fora do lugar... – ela pausou, respirando fundo – Vocês estão todos no lugar certo.

O silêncio manteve-se regular. As respirações ficaram mais fracas.

- Eu saberia dizer quais entre vocês cinco fazem parte do grupo dos Quatro, se tivesse chegado a conhecê-los em qualquer outra vida. E o fato de todos vocês emitirem ondas harmoniosas com relação à posição de vocês no universo só complica as coisas...

- Foi através dessas ondas que sua irmã lhe rastreou... – pela primeira vez desde que aquela conversa iniciara, Christopher estava falando, surpreendendo a todos. Estivera tão quieto que nem parecia estar ali. – Sybila Papillon, que guiou Aib’Somar até onde estávamos...

Hikikomori não precisou dizer nada, apenas abaixou a cabeça. Aquele gesto dizia tudo.

- Papillon a essa altura já deve estar a par do que aconteceu em Hyeol-Aeg e já deve ter contatado o próximo Arquiduque. Eles irão surgir das sombras a todo o momento, um após o outro, prontos para derrotá-los, Cavaleiros Intergalácticos. Mas vocês estarão prontos para eles, e sob seus pés eles irão sucumbir um a um. É o que diz a profecia, é o que eu digo, e é o que o universo anseia. Por respirar mais uma vez.

Os seis humanos se entreolhavam apavorados. Estavam sendo incumbidos de algo para o qual nunca foram capacitados. Havia um grave engano ocorrendo ali, alguma coisa era preciso ser feita urgentemente, antes que eles atolassem de vez naquele fosso estelar de areia movediça. Mas antes que qualquer um pudesse protestar, as luzes falharam e a estrutura da nave mãe tremeu de cima a baixo. A maioria deles caiu de joelhos após o sismo poderoso que sacudiu tudo.

- O que está acontecendo?!

Os telões apagaram, banhando tudo na completa escuridão. Do lado de fora, a nave era tragada por uma falha espaço-temporal. O novo inimigo já havia entrado em ação.


Continua...

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