Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

quarta-feira, 31 de março de 2010

Stella e a Segunda Feira

- Diga a verdade Mariella, você está grávida?
A acusada ficou muda.
- Mariella, não faça essa carinha fofa para mim, eu não caio nos seus truques covardes! Essa barriga toda não quer dizer comida!
A acusada continuou olhando para ela, com aquele olhar suplicante, infantil, de quem se pergunta o que está realmente acontecendo, boquinha pintada de preto, um biquinho macio e adorável. Duas esferas azuis, agora quase totalmente tomadas pelo negro das pupilas dilatas. Que criatura incrível e graciosa era Mariella, tão cheia de maldade, mas ao mesmo tempo tão delicada, inocente.
- Mariella! Se você continuar calada, vai admitir que é verdade! Você fez sexo e não usou preservativos! Que cara de pau!
Haroldo apareceu segurando uma caneca com suco de laranja de caixinha, parado no vão entre a cozinha e a sala de estar, em desordem e caos constantes. Colchões se misturam à mesinhas de centro cujos bibelôs jazem quase todos quebrados, sofás estão tortos e cortinas de miçangas nas janelas já estão quase totalmente destruídas pelas ações terroristas de Mariella.
- Senso de organização é igual a zero, Falta de Noção está em alta nesta casa, você sabe... - resmungou Haroldo por debaixo do seu bigodinho saliente da cor das avelãs.
- Cale a boca Haroldo, estou tentando fazer Mariella confessar seu crime! Ela transou sem proteção e agora tem de sofrer as consequências! - retrucou Stella, irritada.
- Não seja idiota Stella, Mariella é uma gata, uma felina, o que ela pode fazer? É necessidade animal fazer a cópula, abortar os filhotes ela não vai...
Stella desistiu e soltou a gata siamesa ao chão. A bichana miou alto e saiu correndo para o banheiro, era hora das necessidades fisiológicas, caixinha de areia grita por urgência.
- É, gatos não tem tanta sorte quanto eu imaginava... - mugiu Stella, preguiçosa, estalando a coluna, imaginando a sorte que seus únicos dois abortos tiveram em não vir ao mundo em meio àquela bagunça que ela chamava de apartamento.
- Você estava na delegacia? Wanda me ligou hoje cedo fazendo um pedido expresso de correr para cá, só pra certificar de que você não ia se meter em outra encrenca...
- Você acaba de responder à sua pergunta, Haroldo, seu viado intrometido.
- Não seja tão desbocada Stella, sabe que eu e a Wanda só queremos o seu bem, e você não se esforça nem um pouquinho assim que seja para sair dessa vida de vadia! - ia começar o discurso, ele largou a caneca, chutou umas caixas de pizza e algumas latinhas para dar voz ao seu bom senso - veja só, você está morando sozinha no meio de uma lixeira particular com uma gata que está prestes a parir e não procura arranjar um emprego! Onde você quer chegar com isso?!
- Na #$%¨*& que pariu... - ela disse, naturalmente, quase de modo poético e orgulhoso, como se o lugar asqueroso que ela havia citado quase fosse destino para se almejar com todas as forças. Usando calças apertadíssimas, um Converse que não é lavado há quase um ano, um top preto e uma jaqueta de couro dourado que reluzia como um sol, ela não se preocupou em prender o cabelo, pegou a bolsa e as chaves e partiu para o elevador de serviços. Stella morava no último andar de um hotel decadente, de modo que sua porta de entrada e saída era um elevador velho e carcomido, usado para transporte de lixo e roupas sujas. Mesmo nestas condições, Stella nunca perdia o rebolado, de peito pra cima, ela cruzava o saguão lotado de velhos fumantes viciados em café e crianças filhas de mexicanos clandestinos no país.
- Quer dar uma passada no Side's, Haroldo? Peguei uma boa quantia na delegacia esta manhã - gabou-se ela, cuspindo seu chiclete no chão em frente ao hotel.
- Menina mal educada! - resmungou uma velha.
- Ora, e tem como recusar? Tenho que ficar de olho em você Stella, esses últimos tempos você está impossível, e Wanda está ficando irritada - ele se esforçava para acompanhar a serelepe Stella, que sempre parecia uma garotinha saltitando até a loja de doces da esquina, mesmo na pior das situações, nunca perdia o seu ar juvenil e inocente.
- E quem liga para o que aquele sapatão pensa? Vamos bater umas carteiras hoje para darmos uma voltinha nas boates do Upper East Side, quem sabe eu encontre Isabela e as meninas...
- É, meninas que te largam numa boate qualquer bem no meio da madrugada sem ter como voltar pra casa.
- Pode ficar caladinho, ou então não vai ter café da manhã para o senhor Haroldo, nem hoje nem nunca mais!
- Não seja tão malvada, Stella - Haroldo deu um tropeção para dentro da lanchonete, estava quase vazia naquela manhã. Havia mais velhos ali do que no hotel. - sabe que eu te amo, só não gosto dessas suas amizades, que te alugam de noite só pra fazer barraco nas boates e ter do que rir no dia seguinte...
Stella ficou calada, sentou-se feito um cowboy num dos bancos de frente para o balcão e imitou um grosseirão do Oeste, até entortou a boca e fez a voz carregada dos antigos figurões do deserto.
- Aí! Gostosa! Uma garrafa de urina de vaca!
Rita veio preparada, como sempre: uma bandeja com ovos mexidos, duas fatias de salsicha, bacon e panquecas fresquinhas com um pouco de mel.
- Aqui está seu café da manhã, Stella - riu a senhora negra de batom vermelho berrante, usando um coque no topo do cocoruto, era tão gorda quanto Wanda, a lésbica, mas era bem mais delicada e materna do que o sapatão. Aquela era Rita, e Rita costumava ser a melhor amiga de Stella às vezes, quando Mariella fugia pela escada de incêndio para fazer a cópula com os gatos da vizinhança. - como foi esta noite?
- Uma bosta, é claro - sorriu Stella, sarcástica, atacando as panquecas de primeira.
- Não estava na delegacia, estava minha filha? - Rita puxou um prendedor de cabelos, pulou o balco com a ajuda de um banquinho e pôs-se a prender os cabelos desgrenhados de Stella como uma avó prende os cabelos da netinha desleixada.
- Ai, vai me dizer você também que a Wanda te ligou?! - Stella revirou os olhos e tomou de um só gole quase meia caneca de suco de uva.
- É claro que ligou, ela é tão preocupada com você quanto eu e o Haroldo, não é meu filho? - ela olhou para o rapaz de dezoito anos, magricelo e de regata suja, usando calças surradas e tão largas que o faziam parecer um palhaço. Haroldo só balançou a cabeça.
- Não seja tola Rita, a Wanda é afim de você já faz um tempão! - debochou Stella, toda malandra. Rita arregalou os olhos e se benzeu várias vezes.
- Deus me livre, menina! Não fique dizendo essas coisas assim! Ora! - os cabelos de Stella estavam presos, e assim Rita pôde voltar para trás do balcão, não sem antes dar um tapão na cabeça de George, seu filho e garçom da lanchonete, que ria como uma mula da piada de Stella. O riso cessou imediatamente.
Haroldo e George namoravam há um bom tempo, mas disso só Stella sabia. Rita mataria os três se soubesse.
Depois do café da manhã, Stella passou o resto do dia andando de lá pra cá na rua, com Haroldo na sua cola, batendo carteiras loucamente e correndo depois. À tarde, Stella trancou-se em seu quarto para jogar um pouco de video game, e à noite, recebeu três telefonemas de Isabela, que fez questão de ir buscá-la no moquifo fedorento onde ela morava para levá-la à um clube particular de riquinhos feios, como de costume. Ali, Stella beijou três, mas não transou. Acabou espancando uma garota que derramou martini na sua tão conhecida jaqueta dourada, e foi arrastada para fora pelo restante da turma. Mais uma vez, Stella estava vagando sozinha pelo Upper East Side, com um pouco de cecê, como ela pôde constatar mais tarde, enquanto estendia o braço para os táxis, tentando fazê-los parar para uma garota vestida feito uma prostituta. Estava na hora de tomar um banho, pensou. E está na hora de arranjar uma caixa de papelão para Mariella, que teria filhotes logo em breve.
E estava também em cima da hora de se ajeitar na vida.
Stella chorou dentro do táxi, no caminho pra casa. Chorou o caminho todo praticamente, lágrimas roxas de maquiagem. Tropeçou para fora do táxi e foi levantada por ninguém menos que Wanda e Haroldo, eram cinco da manhã, ou quatro talvez.
- Você não tem jeito mesmo - cacarejou Wanda.
Stella mugiu alguma coisa inaudível antes de ser jogada para debaixo da ducha fria. Já amanhecia na verdade.
Assim começava uma terça-feira na vida de Stella.
E por algum motivo, ela se lembrava da vez que sua tia Fúlvia lhe dera um banho daqueles, em tempos remotos, tempos franceses, tempos de pão quentinho e de saias curtíssimas. De boinas e de lambretinhas cor-de-rosa. Stella na França. Ela gargalhou antes de pegar no sono, e dormiu praticamente o dia inteiro, não havia dormido durante quase 48 horas.
Stella, o que eu vou fazer com você?

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