Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

domingo, 21 de março de 2010

Ezequiel

Então, esta manhã eu prendi meu cabelo, tirei meu blusão e caminhei para o banheiro,
Mas mamãe parou-me no meio do caminho pedindo um favor...
Há uma casinha no fundo do quintal, nessa casinha, nasceu, há três semanas atrás, uma matilha de cãezinhos, filhos de Gabriela, a nossa cadela de guarda. Logo após o nascimento deles, a casinha foi forrada com papelão, que foi trocado apenas uma vez desde então, e por isso ultimamente o fedor estava insuportável, podendo causar doenças, micoses e infecções nos cachorrinhos que já tem lares reservados para eles em vários cantos da cidade, todos já estão prometidos para diferentes donos.
E eis o favor:
- Meu filho, vai tirar aquele papelão sujo de lá, por favor, aquilo tá uma imundice, coitados dos pequeninos!
- Mas agora mãe? Eu vou tomar banho...
- Justamente por isso, você tá sujo, vai logo vai, enrola um saco plástico na mão e vai...
Não estou em condições de negar as coisas por aqui, ganhei um celular novo recentemente, tenho de me comportar pelo menos até o final do ano, já que no começo deste também ganhei um computador novo e etc. Aconteceu que fui lá, e o fedor era realmente insuportável, era impossível que só urina e fezes de cãezinhos minúsculos como aqueles causassem tanto fedor. Tirei de lá um por um deles e coloquei no chão para brincarem por um instante, e pus-me a retirar aquela camada grossa, pesada e suja de papelão grosso e grotesco, o fedor era de doer a cabeça, aquilo virara uma crosta de alguma coisa que eu não identifiquei, mas o pior de tudo veio depois da retirada de todo o papelão.
Havia um rabo.
Um rabo cinza e enorme.
O dono dele era um bola disforme de carne branca e pêlos pretos, brancos e cinzas também, como é óbvio.
Grande patas eram senhoras de unhas pequeninas, mas afiadas e mortais. A coisa estava entalada numa das passagens de escoamento de água, feitas há anos atrás pelos primeiros moradores desta casa, que, segundo mamãe, tinham a intenção de construir um pequeno banheiro onde hoje nós guardamos entulho e coisas velhas, encarquilhadas agora pela ação do tempo e de dois partos animais, um de uma gata, e o outro mais recente, de uma cadela. O que havia do outro lado do buraco da parede? Uma grande lata de tinta que impediu a fuga do medonho rato cinza para o segundo "cômodo" da casinha, composta por duas celas, uma para os cães, e a outra para as inutilidades. Impedido de escapar por causa da pressão exercida pelo papelão sujo e pelos animais deitados em cima dele, e impedido de fugir para o outro lado por causa da lata de tinta, o animal que mais parecia uma cotia do que um rato, fico engatado, a cabeça presa embaixo da lata, por onde ele tentou se espremer para a fuga. Moscas verdes e amarelas começaram a fazer a festa após a levantada do papelão. O corpo gordo e em decomposição da criatura estava preso, completamente engatado, era grande demais para a passagem, e grande demais para um rato normal. Sugeri que talvez fosse um gambá, ou, como chamamos por aqui, uma Mucura.
Demorei um pouco para criar coragem e puxar aquilo dali, eu já o imaginava se desfazendo em tripas, carne, ossos, pelos e vermes, a minha cabeça já estava começando a dar voltas enquanto eu fazia um drama básico para a minha mãe. Mas, no final das contas, acabei dando um jeito de empurrar o cadáver do gordinho com um cabo de vassoura pelo outro lado da parede, desobstruindo a passagem para futuros ratos se aventurarem por ali, ratos mais magros e em forma, que não tenham exagerado tanto assim na hora de se esbaldar no lixo humano antes de tentarem uma fuga por buraquinhos tão apertados como aquele. Pobre rato, pensei, ao ver a pele do seu rabo vindo quando tentei o puxar, revelando a carne branca coberta de pequenos vermes furiosos.

Após isto tivemos de dar o primeiro banho da vida dos pequenos cachorrinhos. Já deu pra imaginar o escândalo conjunto das seis pequenas criaturas em seu primeiro contato direto com a água e o sabão. Na verdade, das cinco. O sexto cachorrinho, o sexto pequeno, não chorou ao tomar banho, não chorou ao ser esfregado, não chorou ao ser molhado várias vezes por jatos e mais jatos de água súbitos, jatos que deixaram seus irmãozinhos completamente desesperados. Não, ele não chorou, continuou sereno e calmo como sempre. Os três primeiros a ficarem lavados se espremiam no canto da parede, chorando alto de frio enquanto tremiam. Mas este cachorrinho se recusou a ficar lá, chorando frio, correu para a água de novo, e tomou mais um banho! Isto se repetiu pelo menos três vezes, até que todos estavam lavados e espremidos num só canto da área do lavatório gritando e ganindo de raiva, de frio e de medo.
Adivinhe só quem, mesmo molhado, ficou andando atrás de mim, pra cima e pra baixo, balançando o rabinho? Quem tomou a iniciativa de mexer com a Baby, nossa gata de estimação, que observava a cena com seu focinho em pé, toda esnobe, tentando não esboçar curiosidade em seus grandes olhos azuis enquanto lutava contra o impulso de mexer com aquelas pequenas criaturinhas choronas. Sim, o mesmo cachorrinho que sentou do meu lado e começou a lamber a água da minha perna, o mesmo cachorrinho que não esboçou medo ou desespero algum quando o peguei com as duas mãos e o ergui no ar, o único cachorrinho que olha diretamente para cima, para o céu, que não gira a cabeça freneticamente no ar tentando se libertar das minhas mãos, aquele que tem os olhos azuis escuros e semblante sereno, que estendeu a patinha para os meus pés e que abanou o rabinho para a Baby.
E ele já tem um nome.
Um nome de anjo.
Totalmente especial.
Duvido você adivinha qual é.


Antonio Fernandes
;*

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