Sol quente, sapatos pretos, pés esquentando com força e violência, longos cabelos escuros ressecados expostos ao vento e à poeira das duas da tarde. Um casaco amarrado na cintura, e muita força de vontade para pegar um ônibus, para descer em frente a uma lan house, para imprimir um boleto, para caminhar mais dois quarteirões para chegar até o banco. Não vi a hora em que eu havia saído da frente da escola, só lembro de que estava vazia o bastante para que os alunos do contra-turno estivessem chegando. Não foram me buscar, e eu tinha de fazer o pagamento desse boleto o quanto antes, eu estava agoniado. Recuperando-me de uma forte faringite, recuperando-me de uma gripe, sentia o ar quente entrar pelas narinas ferindo-me com violência, e meus pulmões ritmados ao bater do meu coração. O meu coração. Fila do banco.
Mais uma vez, sol quente, caminho de volta pra casa, vacilando por entre as sombras dos prédios, tentando buscar proteção do calor inacreditável. Em poucos minutos ali estava eu, em casa, deitado na minha cama... Outras coisas aconteceram antes de eu adormecer, mas o mais importante foi o que me ocorreu enquanto eu dormia. O sol quente, a radiação cruel, a raiva da estrela mãe, a fúria de calor, o reino de fogo e poeira. Todo dentro de mim. Agora...
Seis da manhã, a cabeça latejando, olhei para cima. A luz fraca do grande senhor de cabelos dourados e constantemente revoltado já entrava pela vidraça. Não podia ir pra aula. O esforço que eu havia feito na tarde anterior tinha me roubado todas as forças restantes após o longo período de resfriado. Minhas pernas, eram lixo inútil agora. Me embrulhei outra vez e já era meio dia. Sexta feira, aula de tarde, hora de me arrumar, cambaleando, eu tinha de ir, apesar do calor, do clima abafado, do sol infernal lá fora, clamando faminto pela minha pele. A dor de cabeça não me amedrontou. Em poucos instantes eu estava na escola para a aula das duas e meia, mas tudo o que aconteceu naquele curto período de tempo, que me pareceu uma eternidade, passou-se para mim como algo obsoleto e distante, como um rio distorcido de imagens correndo abaixo dos meus pés, eu estava acima. Meu rosto doía só de um lado, a minha cabeça katejava. Minhas extremidades ameaçavam a febre. Hora de ir pra casa, seis e cinquenta da tarde. A cidade, linda, bela, caótica, com seus carros, seu concreto, suas árvores, suas luzes, suas estranhas formas e seus estranhos seres habitantes, disformes, todos passando por mim como poesia sob o estado de vírus atravessando os glóbulos vermelhos do meu sangue e o genôma da minha alma. Não sei porque, mas a cidade me parecia tão bela, tão linda sob a luz do crepúsculo, o sol dizendo adeus logo atrás de mim, prometendo vingança para o dia seguinte. A lua dizendo olá, sorrindo ao lado de suas companheiras estrelas, as nuvens se abraçando sob os muros e as torres e os postes. Janelas de ônibus. Fumaça. Vendedores ambulantes, lojas, semáforos, tudo compunha um belo quadro, um universo magnífico de caos que havia criado a sua própria ordem, a cidade de Macapá parecia mais viva do que nunca. Estaria eu completamente dopado? O vento da noite vinha sereno, o ônibus passava rápido por entre os pontos e paradas tão conhecidos por mim. Motos zunindo, buzinas e capacetes, luzes, janelas, casas e gente. Vida.
Eu desci diante do costumeiro muro branco, e caminhei pesadamente até minha casa, não sei o que se passou então, mas esvaziei um vidro de Nimesulina, virei duas cefalexinas só de uma vez, não entendi nada do que minha irmã disse, e me deitei, me encolhi debaixo das cobertas, e ali fiquei sentindo o cérebro latejar e latejar sem parar. Minha face direita batendo junto com meu coração. Meu ouvido surdo. E então aconteceu. Aconteceu aquilo que sempre acontece quando eu estou nesse estado, aquilo que me deixa tão ansioso e tão cheio de expectativas, aquela necessidade louca, aquela espera absurda pela resolução de um grande mistério.
O sol, a lua, passando por mim preguiçosamente.
Num balé de astros encantadores e tão corteses.
Meu coração batendo forte no peito, fazendo cada célula vibrar.
Meu mundo ficando cada vez mais distante.
Uma voz me chamando, uma voz muda, um sinal que meu coração captava, uma voz que só meu coração ouvia, respondendo ao chamado a cada pulsar. Minha mão esticada para o além, para o infinito de pontos luminosos e escuridão. Uma felicidade tremenda me fazendo tremer e gemer, fazendo meus lábios pedirem loucamente pelas estrelas, pelo além das estrelas, pela minha casa, pelo que me espera para mais além do que o homem já viu.
A voz chamando por um nome que não é o que eu conheço, que não é o que foi me dado quando nasci, mas pelo nome que pertence ao meu coração, pelo nome que foi dado a ele há tantas e tantas eras passadas numa língua tão antiga e decodificada, numa linguagem que só ele entende. A linguagem daqueles batimentos tranquilos e alegres. Meu coração estava sendo chamado. Eu estava despertando para algo totalmente novo. Minha cegueira estava acabando e o mundo, que mundo? A vida que eu conhecia, nada mais importava agora, o que importava era atender ao chamado daquilo que eu tanto senti falta durante todos estes anos, daquilo que eu não conhecia, mas que me era tão ausente e sua ausência tão dolorosa. Eu me sentia então encaixado, eu me sentia finalmente fazendo parte de algo. O universo, o espaço, a luz das estrelas, pequenos diamantes alegres sobre o véu negro do vazio, piscando para mim, me guiando de volta para o lugar que só o meu coração conhecia, mas que eu estava para ver. Era hora de voltar. Voltar para o meu lugar, o lugar que é só meu. Mas para onde?
E então eu me acordei, de braços esticados para o teto. Eu precisava ver as estrelas, precisava ver elas, eu lagrimava. Me levantei da cama, abri a porta do quarto, passei pela cozinha e abri a portas dos fundos, meu rosto voltado para o céu. Atravessei o pequeno pátio traseiro e coloquei minhas mãos calmamente sobre o pequeno muro. O céu me chamava, as estrelas chamavam silenciosamente pelo meu coração, e agora eu não podia mais ir até elas, elas não estavam mais ao meu redor e sim acima de mim de modo tão doloroso. Uma lágrima rolou, e eu entrei, a minha febre passava aos poucos, "A Espera de Um Milagre" começava a passar na TV. Assisti o filme do começo ao fim, e de repente lembrei de que eu tive medo de que a dor não passasse, de que a fraqueza nunca se tornasse força, e que aquele crepúsculo fosse eterno, apenas as estrelas me curariam, minha alma pedia pelas estrelas, eu tinha de ver elas, por isso eu me levantei e fui até o quintal para vê-las. Era necessidade...
Pode parecer loucura para todos vocês, mas eu sempre me senti deslocado do mundo, não só pelo meu tamanho e pela minha personalidade, mas pelos meus pensamentos tão estranhos para um rapaz da minha idade. Com quatro anos de idade eu já pensava no espaço, já tinha consciência do que era o mundo e de onde ele se situava no cosmos, e tinha noção de o quanto os seres humanos eram fragéis perante a grandeza e a imponência do universo, mas guardava isso só para mim porque eu sabia que nenhum adulto acreditaria e nenhuma outra criança me entenderia. Coisas estranhas me aconteceram sempre, coisas que eu guardei só para mim até hoje. Coisas que eu me lembro e coisas que não me lembro.
Mas de uma coisa eu lembro muito bem: de mais um dos blackouts em Munguba, como os que eram frequentes na época por causa da fábrica, há quatro anos atrás, da poderosa luz que observei gradativamente adentrar mística e solene através da persiana do quarto de minha prima, luz esta que se tornava tão forte a ponto de me cegar, a ponto de meus olhos mal conseguirem abrir. Uma luz tão potente capaz de inundar completamente todo o quarto e fazer o mundo escuro tornar-se branco, vinda da janela que dava para o quintal. E então a luz sumiu como se nunca tivesse existido. E a energia elétrica voltou. Nunca entendi direito o que aconteceu naquela noite, mas tenho certas ideias que me assutam agora, e tenho muito medo de ser tachado de louco a esta altura do campeonato, sei que a pressão para o vestibular é muita, mas não que isso vá me deixar doido, eu sei me cuidar... Mas, que seja, minha mãe tá brigando aqui, é hora de dormir, até mais!
Antonio Fernandes.
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