Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

segunda-feira, 30 de abril de 2012

PARTE CATORZE: O LAMENTO DE MÃE DIRGHA!

Quando a enguia colossal regurgitou o Cruzeiro Espacial Delta no pátio interno do palácio, uma multidão de Nammajana – assim eles se alto-intitulavam – estava reunida do lado de fora da branca muralha perolada, curiosos, nervosos, com seus pequeninos tentáculos vibrando de excitação. Suas cabeças de lula inchadas aumentavam e diminuíam conforme filtravam a água, composto químico tão vital para eles quanto o oxigênio para nós humanos. Os veículos em forma de ostra da imprensa estavam em alvoroço ao redor dos pavilhões infinitos do palácio, planando do lado de fora dos muros enormes aos montes, a poucos centímetros das torres que o compunham, sem nunca invadi-lo. Isso seria um desrespeito para com Aib’Paguru, seu salvador. Um crime inafiançável. Atravessar a muralha que separa Punyapuri do resto de Muttu sem ser convidado era como matar outro Nammajana: imperdoável.

Mas isso não intimidava a admiração do povo para com aquelas torres que subiam tanto quase a ponto de alcançar a tão perigosa superfície, onde qualquer coisa que se movia se tornava presa fácil para as mandíbulas achatadas e letais das Prani. Torres construídas como bonecos de neve: esfera branca sobre esfera branca, seguindo a ordem natural da menor sobre a maior até seu último componente ser coroado por uma espécie de gota de cristal, através da qual os raios de sol atravessavam fugazes vindos da superfície para se diluir sobre o palácio em um espectro multicolorido. Para os olhos de um Nammajana o espetáculo era muito mais belo, graças à capacidade de enxergar além das simplórias sete cores e seus tons que nossos olhos são capazes de captar através do espectro luminoso.

A cabeçorra de Mãe Dirgha ficou enfiada exatamente no centro do palácio durante longas horas, enquanto isso seu corpanzil de cinquenta quilômetros espiralava acima da cidade bela e pacificamente, lançando sobre as casas a sombra cilíndrica da sua extensão poderosa ao mesmo tempo em que agitava as profundas águas geladas onde Muttu havia sido construída. Enchendo os olhos daquele povo que um dia a adorou e morou em suas costas com o espetáculo das ondulações delicadas de seu corpo ao sabor do ir e vir das bravas correntes marítimas que corriam acima da metrópole.

O grupo de visitantes espaciais foi recebido por mais cinco Nammajana que adentraram a nave exatamente como o Nammajana de metal retorcido dentro da ostra, – aquele que se apresentou como Aib’Paguru a eles – pela abóbada acompanhados de um intenso brilho azul, estes não falavam a língua humana e eram absurdamente asquerosos. Se sua versão de metal já era grotesca, a versão orgânica da criatura era um horror no sentido mais primitivo da palavra. Seis olhos saltados, três de cada lado da cabeça inchada em forma de seta, tentáculos minúsculos que escondiam a boca e retorciam-se como vermes, três pares de membros longos e finos tão compridos que os faziam parecer girafas rosadas donas de um torso quase humano. O par de membros que lhes serviam de braços quase sempre estava em posição de louva-a-deus, eram pouco maiores que cavalos de raça e exalavam um odor pútrido de feira às seis da tarde.

Estes vieram para recolher as armas e qualquer objeto que pudesse oferecer perigo a um Nammajana, carregando aparelhos às costas que bombeavam a água através de quatro tubos luminosos para dentro de suas cabeças pesadas – era visível a luta que eles travavam para se manter equilibrados fora d’água, seus corpos eram totalmente desproporcionais à espessura de suas pernas e ao tamanho de seus pezinhos de artrópode – estes indivíduos também vieram munidos de uma espécie de “arma”, uma bazuca que não servia para feri-los (apesar de Pietro e Chris terem feito um escândalo enorme ao verem descer aqueles aparelhos intimidadores), mas apenas para gerar cápsulas, bolhas impermeabilizantes que os mantivessem secos e os impedissem de afogar.

Assim, a câmara de controle do Cruzeiro Espacial Delta foi inundada, e a própria força das águas os içou para cima, para o novo mundo em que haviam chegado por mais uma artimanha do destino. Christopher Umbrella, aquele que um dia fora o pacato professor de astrofísica, agora em um caminho sem volta rumo às incertezas de uma profecia ancestral vasculhava as águas cristalinas e coloridas acima da sua cabeça em busca de Mãe Dirgha. A ex-deusa serpente já não estava mais lá, seu corpanzil tectônico se afastava aos poucos da capital construída em espiral ao redor de Punyapuri, até que nada mais restava senão a sombra ameaçadora de seu tamanho ondulando à distância, um monumento em movimento emitindo ondas sonoras deliciosas como o canto das baleias terrestres. Algo melancólico, profundo e doloroso. Quase um lamento, o lamento de alguém que um dia já foi deusa.

- Rajakumari? – Don pôs as mãos na cintura – espera um pouco, como ela pode se comunicar conosco através do vidro? – aqueles que estavam descansando em pufes muito próximos à vidraça da sala de estar levantaram-se e em passos lentos estavam recuando para trás de móveis e esculturas estranhas. Fábia e Ray chegaram ao ponto de correrem para trás da bancada que dividia aquela agradável sala de repouso da cozinha do lugar, por pouco as duas não derrubaram um dos aquários que ostentavam as coloridas algas marinhas que ornamentavam o apartamento provisório. Um quarto impermeabilizado na torre mais distante e mais alta de Punyapuri, a cidade-palácio sagrada no coração de Muttu.

A gritaria foi generalizada quando a criaturinha que vos falava atravessou a vidraça como se fosse um fantasma, enroscando-se no Professor Umbrella após flutuar alguns centímetros no ar em sua direção. Quatro perninhas finas deram a volta completa no tronco humano de Christopher enquanto os braços da criatura envolviam seus ombros num abraço mortal. A cabeça de lula estava prensada contra seu rosto e aquele cheiro de peixe podre característico dos Nammajana invadiu seu cérebro revirando seu estômago como um furacão de náusea imediata. Seu reflexo foi o mesmo de Pietro ao ser agarrado pelas costas nos esgotos de Hyeol-Aeg: correr, gritar e se debater: um monstro marinho do tamanho de um São Bernardo estava o agarrando e jogando todo o seu peso contra o seu corpo.

- TIRA! TIRA! TIRA ELA DE MIM! TIRA! – não obstante, jogou-se ao chão e iniciou um ritual de rolo compressor descontrolado. Donnick tentava se aproximar, mas os braços e pernas de Christopher se debatendo não permitiam tal façanha, Pietro foi o único com iniciativa e coragem para ajudá-lo sem pensar duas vezes: jogou-se de barriga em cima do professor, que bufou como se houvesse recebido um soco no estômago quando o peso do amigo o atingiu em cheio e o esmagou por completo: a jovem Nammajana, Rajakumari Paguru já estava longe deles, do outro lado da sala, enroscada num dos aquários cilíndricos. O modo como seus tentáculos vibravam feito chocalhos de cascavéis e todo o conjunto de movimento do seu corpo (inclusive aquele som semelhante a alguém gargalhando embaixo d’água) sugeria que ela estava... Rindo!

- Desculpe se os assustei! – ela continuou rindo, escorregando para o chão aos poucos e em seguida lutando para manter o equilíbrio fora d’água. Ela também possuía um aparelho ligado a sua cabeça por tubos e uma espécie de tiara em volta dela, uma tiara que ostentava uma enorme pedra azul-marinho cujo arco separava o primeiro par de olhos vermelhos dos outros dois pares secundários. Olhando daquela forma ela era bem menos asquerosa que seus parentes e muito mais humana que eles. – eu só queria dar as boas vindas! Me perdoem!

- Da próxima vez – fez Christopher, arfando apoiado nos joelhos – me avise quando for tentar me sufocar! – disse, entrecortando a frase com sua respiração tresloucada.

O silêncio imperou durante um tempo enquanto o grupo se recuperava do susto e a pequena Rajakumari mostrava que não representava perigo algum, sentando-se como um cachorrinho a espera da ordem do dono. Seus tentáculos minúsculos agora se retorciam preguiçosamente, seus três pares de olhos piscavam em sincronia enquanto sua cabeça inchava e esvaziava conforme o fluxo e água que entrava e saía enviado pelo aparelho.

- Agora que estão mais calmos, me apresentarei de novo – disse a criaturinha, e pela primeira vez o grupo percebeu que ela não movia músculo algum para falar, sua voz ecoava dos alto-falantes de uma coleira especial em volta do seu pescoço rugoso e transparente – sou Rajakumari Paguru, conselheira auxiliar e inventora nomeada oficialmente pelo Conselho de Muttu! Resolvi vir até vocês para ver com meus próprios olhos do que todos estão falando! – ela soava animadíssima. – os soldados me contaram que Mãe Dirgha os resgatara das florestas de alga e os trouxera para o pátio principal do palácio a mando do Sanrakṣaka! Eu vi o momento em que sua espaçonave invadiu a atmosfera do nosso planeta e se chocou contra as ilhotas flutuantes das Prani! Eu não acreditei no momento, achei que estivesse ficando louca, mas é verdade! Temos visitantes de outro sistema planetário, isso não acontece há muitos Śatamānada...

Todos a observavam confusos, apreensivos e distantes, amedrontados. Hikikomori mantinha-se próxima da criatura com o cenho franzido pronta para reagir a qualquer ataque.

- Oh, me desculpe, isso equivale a um ciclo de 500 varṣagaḷa, mas provavelmente eu estou falando alavadês com vocês! Perdoem-me de novo! – ela voltou a emitir o som que talvez significasse uma risada. Todos continuavam em estado de choque, ou se entreolhando apavorados ou observando cada movimento daquela criatura com asco, em especial o dos tentáculos que pareciam mais um bigode cobrindo a sua boca – o Sanrakṣaka não faz ideia de que estou aqui, e ele não pode saber de maneira alguma! Antes de mais nada quero que vocês mantenham segredo!

- Quando você fala SanrakṣakaI... – começou Hikikomori, desconfiada.

- Eu me refiro ao nosso salvador e soberano Aib’Paguru! – Rajakumari disse aquele nome com profunda devoção – por algum motivo ele não quer que vocês tenham contato com o mundo exterior, e nem eles com vocês. Ele tem estado nervoso desde que vocês chegaram e não trocou uma única palavra sobre o assunto com ninguém do Conselho de Muttu, só dá ordens atrás de ordens, e a mais recente é essa... Ninguém entra e ninguém sai dessa torre!

O grupo estava sem palavras. Permaneciam apavorados demais para dizer alguma coisa. Foi Donnick quem quebrou o silêncio, olhando de relance para uma apreensiva Hikikomori enquanto dava alguns passos em direção ao monstrinho. Ela retribuiu o olhar, sabia o que ele tinha em mente.

- Você diz que já não recebem visitas do espaço exterior há algum tempo... – começou, de cenho franzido – o que aconteceu com os últimos visitantes que Nammamane recebeu?

- Sinto muito, senhor, mas naquele tempo eu ainda era uma larva! – ela deu uma risadinha animada – mas tenho de ir direto ao ponto, preciso saber tudo sobre vocês! Tudo! Sou uma estudiosa e dedico mais da metade do meu tempo apreendendo história, cultura, geografia e idiomas, por isso preciso saber: de onde vieram, de que espécie vocês são, os costumes de seu planeta, tudo! Tudo!

Enquanto Rajakumari falava, Hikikomori e Donnick se entreolhavam como quem compartilha de um importante segredo. Os outros apenas observavam a troca de olhares tentando interpretar o que aquilo significava. Provavelmente a Sybila não estava os contatando através de ondas mentais por precaução. Os Nammajana se comunicavam através de estalos produzidos por suas bocas, porém desde que ali chegara havia captado um número significativo de ondas cerebrais, talvez houvesse mais de uma maneira de se comunicar por ali.

- Tudo bem, o que sabemos até agora então? – começou Augusta esticando os dedos para começar a contabilizar as informações apreendidas pelo breve contato com Rajakumari: sentinelas, ou kavalugara como eles eram chamados, apareceram do lado de fora das janelas patrulhando e ela teve de partir às pressas.

- Eles não dormem, o dia deles nunca acaba porque eles possuem dois sóis... – respondeu Pietro revirando os olhos, já desanimado por não haver a horinha sagrada do descanso que é à noite

- Um de cada lado do planeta! – berrou Ray Ann levantando a cabeça em meio ao seu jogo de baralho (pelo menos o conjunto de cartas em forma de vírgula repletas de desenhos coloridos estava sendo usado para essa finalidade por ela e Fábia, já estressadas e entediadas de tanto esperar por sabe-se lá o quê). – acho um absurdo isso.

- O cérebro deles aprende dez vezes mais rápido que o cérebro humano... – completou Christopher, assistindo pela milésima vez o documentário sobre a vida sexual das Prani, os machos da espécie ostentavam quatro falos em forma de tentáculo e isso era nauseante, porém curioso.

- Aib’Paguru não tem um corpo fixo... – fez Fábia se espreguiçando após ganhar mais uma partida do seu joguinho improvisado de baralho alienígena, irritando Ray.

- Mas isso nós já sabíamos! – disse Chris voltando-se para uma séria Hikikomori – nossa amiga Sybila nos deixou isso bem claro.

- Exato – Hikikomori levantou-se – seu corpo original é desconhecido, ele está sempre pilotando um robô à distância, e geralmente o “avatar” de Paguru possui pinças ao invés de mãos.

- Será que ele é um caranguejo gigante? – Fábia olhou para o teto, pensativa. Ray riu baixinho.

E de repente, como num relâmpago onde a ameaça é vislumbra após o feixe derradeiro de luz, o rosto de Chris perdeu toda a cor, o sangue lhe escapou da face instantaneamente após o choque de realidade.

- Não! – ele berrou, levantando-se e jogando o pufe onde estava sentado longe, quase acertando por pouco Pietro – Não! Não! Não!

- O que foi, o que aconteceu?! – Hikikomori correu para os seus ombros, tentando em vão acalmá-lo.

- Aib’Paguru opera o seu corpo à distância, não opera? – disse o professor com lágrimas nos olhos.

- Sim... – Hikikomori já havia entendido onde ele havia chegado, e o sangue também correu do seu rosto. Donnick foi o segundo a se levantar irado exclamando alguma indignação, bem baixinho.

- Ele pode nem estar nesse planeta! Ele pode estar comandando tudo de longe! E nós estamos presos aqui no fundo desse oceano sem saída! Perdidos! – sem perceber, Christopher já estava urrando. Augusta cruzou os braços e sacudiu a cabeça em desaprovação, Fábia iniciou um choro baixo e Ray, já tão acostumada àquelas situações perturbadoras, começou a recolher o baralho alien friamente. Já estava cansada de se debater e chorar diante daquilo tudo, era como bater o pé esperando que a montanha saísse do lugar.

Sua vida, sua família, seus amigos, sua casa... Tudo parecia tão distante e onírico, as lembranças eram doces e cheirosas, suaves e surreais. Outra Ray, outra época. E como será? Como será que a Terra ficou após o primeiro ataque alienígena da história da humanidade? A mídia noticiou? Ou o governo abafou? Qual a desculpa que eles deram dessa vez? Mais um acidente no espaço graças a uma falha técnica? E os corpos das vítimas, onde estão agora? Só de pensar em tudo o que ela passou, em onde ela estava agora. Tudo parecia um pesadelo com o qual ela não se importava tanto quanto deveria, apenas o aceitava. Tanto tempo havia passado desde Cosmogony, mas a lembrança soava tão próxima, e as coisas destoavam tanto da realidade que tudo parecia estar acontecendo ao mesmo tempo, sem divisória de passado, presente ou futuro.

Talvez aquilo que Hikikomori dissera no começo desta jornada fosse muito mais prático do que teórico, muito mais do que ela chegou a imaginar. Aquilo sobre o tempo em si ser um conceito totalmente humano. Sobre a inexistência de uma linha temporal no espaço. O cérebro humano não foi feito para pensar dessa maneira, e pensar demais em coisas assim acabaria a enlouquecendo mais cedo ou mais tarde. Era hora de manter o foco: escapar de Nammamane.

Mesmo que isso parecesse impossível àquela altura.

◊◊◊

- Eu sabia que eles viriam mais cedo ou mais tarde. Eu sempre soube – sem os efeitos de computador, a voz de Aib’Paguru era muito mais antiga, profunda, soava como algo marinho, perverso. Como a maré entrando e saindo de uma gruta na praia.

- E o que você fará a respeito deles agora, mestre? – o arquiduque possuía um servo de confiança, assim como todos os outros Aib de Azura. Este tinha a voz rouca, como se usufruísse do tabaco desde a infância, ouvi-lo era difícil, interpretá-lo era um desafio. Não passava de uma lesma montada num robô em forma de copépode, seus olhos extensíveis escapavam por entre as cavidades oculares feitas especialmente para ele. Suas pinças batiam nervosas.

- Por enquanto nada... Por enquanto – uma nuvem de bolhas de ar subiu em direção à luz da abertura no teto daquele aposento escuro e frio. Algas cresciam ali embaixo por toda a parte, pequenas criaturas rastejantes das profundezas arrastavam-se sobre pedras e tesouros perdidos. Cabos ligados a telões em forma de vírgula (completamente cobertos por muco e detritos orgânicos marinhos) exibiam o mundo lá fora, Nammamane prosperando em paz – sem as armas eles são apenas humanos inofensivos. Não me preocupo com eles aqui em baixo. Qualquer tentativa de fuga é morte por afogamento.

Fez-se silêncio por um minuto, mais uma nuvem de bolhas de ar subiu em direção às fissuras do teto, borbulhante, tentando escapar rumo à superfície. Agitando as águas geladas e agourentas das profundezas daquela carcaça abandonada de nave espacial, há pouquíssimos quilômetros de Nammamane.

- O que ainda está fazendo aqui Kraken? Já está dispensado. – apesar do modo como falava, o arquiduque não parecida nervoso. Deveria estar, na verdade, por passar metade do tempo enclausurado numa salinha apertada que mais parecia o interior de um submarino naufragado.

- Sua preterida, Rajakumari, foi vista rondando a torre dos prisioneiros.

As águas ali embaixo se agitaram inesperadamente, nuvens de bolhas nervosas subiram em direção às frestas do teto baixo, como se algo estivesse se revolvendo na lama e no limo do lugar.

- Os kavalugara conseguiram encontrá-la?! – a voz abissal tornou-se ameaçadora.

- Ela desapareceu antes que pudéssemos fazer alguma coisa, lamento mestre.

- Volte para dentro daquele robô Nammajana e fique de olho em Punyapuri. Não vou poupar o seu corpo gelatinoso caso algo saia do controle, nem por uma falha mínima que seja!

O corpinho de lesma do mar espremido dentro da réplica robótica de copépode retorceu-se de pavor e deixou o lugar nadando rumo às frestas no teto, deixando para trás os destroços naufragados da primeira nave que chegou àquele planeta selvagem, muito antes de Muttu ser erguida. Quando os Nammajana ainda moravam nas costas da serpente Dirgha, e tudo era ignorância.

A floresta de algas era muito mais tenebrosa ali, perto das fossas e fissuras abissais onde os renegados moravam, próximo das raízes das quilométricas algas azuis e entre as pedras vulcânicas pontiagudas. Ali embaixo todo o tipo de criatura nociva se retorcia em busca de alimento, crustáceos minúsculos fingiam ser um só piscando como vaga-lumes, criaturas ostentando pescoços compridos e seis patas espalmadas como remos que se esticavam repulsivamente para fora dos seus cascos vasculhavam por entre os galhos roxos de alguma planta aquática, procurando o que comer. Kraken cuidou de sair dali o mais depressa possível, não queria virar o almoço enlatado de alguma fera marinha.

Após um tempo que pareceu longo demais para a espera humana, mas que provavelmente não passara de poucas horas para um Nammajana – Ray jurou de pés juntos que um dia inteiro se passou, tentaram averiguar através do tablet de Augusta, mas o aparelho estava descarregado havia algum tempo. – o grupo de Christopher Umbrella foi surpreendido por um banquete enviado até eles de forma misteriosa: flashes luminosos os cegaram por alguns instantes e em seguida o balcão perolado branco que dividia a enorme câmara redonda estava permeado de longas travessas em forma de meia lua ornamentadas por algas marinhas coloridas que transformavam os “pratos” do cardápio em verdadeiras alegorias. Pareciam mais esculturas do que alimento.

Isso sem contar que algumas coisas ali servidas eram realmente muito estranhas e até um tanto repulsivas. Havia uma espécie de foca azul em miniatura – talvez algum tipo de peixe – numa bandeja feito um leitão à pururuca, e não muito longe da criaturinha também jazia tostada uma verdadeira barata gigantesca com pinças de lagosta e antenas retorcidas em espiral. O cheiro que ela exalava não condizia a sua aparência: enchia a boca dos famintos viajantes do espaço de água. Talvez os pratos mais aceitáveis do self-service alienígena marinho eram peixes mutantes levemente semelhantes aos que existem na terra e coisinhas roxas enormes que pareciam camarões. Fora uns rolinhos de alga colorida que lembrava sushi.

Uma mensagem holográfica exibida logo em seguida lhes dizia que análises feitas com o DNA de fios de cabelo e restos de pele morta tornaram possível que identificassem os nutrientes necessários nos alimentos para que o organismo humano funcionasse perfeitamente, e baseado nessas análises um banquete de boas-vindas estava sendo oferecido aos visitantes do planeta.

- Se estamos embaixo d’água, como eles conseguiram cozinhar este alimento? – Fábia largou os palitinhos que seguravam seu sushi por um instante para indagar algo que não lhe saíra da cabeça desde o primeiro vislumbre da refeição.

- Cale a boca e continue comendo – Augusta enfiou um bolinho verde goela abaixo da garota antes que ela levantasse mais dúvidas que a fizesse ficar mais receosa para com aquela comida do que já estava.

E as surpresas não pararam por aí: após o banquete – que foi saboreado primeiramente com apreensão e desconfiança para logo depois virar uma disputa de glutões – tubos brancos desceram do teto e os envolveram em prisões claustrofóbicas durante alguns minutos. Neste meio tempo eles foram borrifados por uma fumaça cor de rosa vinda de cima, uma espécie de ácido que derreteu cada peça de roupa que usavam camada por camada até deixá-los completamente nus. A única que conseguiu escapar da armadilha foi Hikikomori, rápida demais para ser surpreendida, tentava libertar seus companheiros que estavam aos berros com seu poder de telecinese, sem sucesso. A hora da morte havia chegado então, eles derreteriam até virar sopa humana, era o que pensavam, mas antes que a fumaça pudesse prejudicar seus organismos, os tubos que os aprisionavam retrocederam ao teto.

Numa espécie de exposição ao ridículo coletiva, os companheiros se viram como vieram ao mundo uns na frente dos outros, o que para Hikikomori não era nada demais, afinal de contas ela usava um tapa-sexo de borracha na maior parte do tempo, de modo que ela não entendeu muito bem o porquê dos escândalos e das risadas. Coisas de humanos. Humanos estes que ficaram mais tranquilos ao perceberem que as travessas do banquete foram substituídas por pilhas de roupas novinhas feitas de uma espécie de látex mal cheiroso; que mais tarde revelou-se através do holograma falante ser feito do muco que uma criatura gigantesca chamada Balli soltava enquanto rastejava no fundo do oceano feito uma lesma. Eram coladas ao corpo, azuis, elegantes e dotadas de ombreiras pontiagudas, carregavam o símbolo de Nammamane, a gota azul, no meio do peito e eram absurdamente resistentes também, aquela borracha esticava infinitamente e sempre voltava ao lugar, além de serem aerodinâmicas e terem a superfície tão lisa quanto sabão.

- Tudo bem, e agora, o que vai vir?

A pergunta do Professor Umbrella foi respondida pelo silêncio e pela monotonia que veio logo em seguida. Nada aconteceu durante um longo e tedioso tempo em que o grupo se deixou hipnotizar pelo novo documentário exibido no holograma em forma de vírgula. Dessa vez nada sobre a vida sexual das Prani ou a força magnética que mantinha os blocos de pedra flutuando entre as nuvens, agora era algo novo: dragões marinhos enormes, réplicas gigantescas daquelas criaturas pitorescas que habitavam a costa sulista australiana residiam naquele planeta, com a aparência não muito diferente da dos seus pequenos primos terrestres, se reproduzindo aos montes entre as algas azuis da floresta que cobria quase 90% do planeta. Ali eles eram chamados de Ganya e mediam tanto quanto um verdadeiro dragão marinho deveria medir.

◊◊◊

Nós éramos muitas. Todas fêmeas. Não sabíamos como havíamos surgido ou como chegamos àquele tamanho, mas tínhamos consciência da nossa existência e do laço que havia entre cada uma de nós. A maior de nós tinha mais de cem quilômetros de comprimento, as ondulações vagarosas e delicadas do seu corpo que a impulsionavam para frente faziam com que sua passagem através da floresta de algas fosse longa e duradoura, devido ao seu tamanho colossal. Vivíamos em paz, tudo o que precisávamos para viver estava ali; as algas que cobriam o planeta inteiro de uma ponta a outra.

Estas quando morriam e subiam à superfície aos montes eram torradas pelos nossos sóis e se tornavam muito mais atrativas e deliciosas para nós. Íamos a superfície disputar as ilhotas de algas saborosas que flutuavam ao sabor das marés, só não íamos aos pólos onde a água era rasa e a superfície congelada. Encalharíamos e morreríamos em pouco tempo ao cair nesta armadilha natural.

Assim vivíamos em paz, naquela época não havia contagem de tempo, de modo que não existia o agora, o depois, o amanhã ou o ontem. Nunca conferimos a nossa idade e nem medíamos o passar das eras, a única preocupação era o alimento... O alimento que nos fez entrar em guerra umas com as outras. Nunca precisamos do elemento masculino para nos reproduzir, gerávamos uma vida nova a nosso bel-prazer, mas isto só acontecia uma única vez. Cada uma de nós só poderia dar origem a um único indivíduo novo, separando-se da metade final das nossas longas caudas.

Este método de reprodução acabou superpopulando nosso planeta, que sequer possuía um nome ainda. Logo o alimento foi ficando escasso, e as algas se acumularam e prosperaram nos pólos aonde jamais íamos. O que aconteceu a seguir você já deve imaginar. Mortes em massa, lutas violentas que tornavam as profundas águas turvas por muito tempo, provocando maremotos e ondas gigantescas nas superfícies, tendo sempre um desfecho trágico para uma de nossas irmãs. Ou para duas.

Logo nos tornamos pontinhos solitários em nossos mares infinitos, temendo umas às outras, evitando o contato, procurando qualquer broto de alga que pudesse nos alimentar. E então aconteceu.

Eu dei origem ao primeiro Nammajana, e depois deles, milhares de outros vieram.

Eles já existiam há muito tempo dentro dos nós, não como parasitas, mas como parte da nossa flora intestinal, limpando a parede dos nossos sete grandes estômagos, se alimentando das impurezas que ingeríamos junto com as algas e nos mantendo saudáveis. Eu os regurgitei porque senti sua presença dentro de mim, eles falavam comigo como minhas irmãs falavam, através do pulsar gerado pelas suas existências. Eu não podia deixá-los ali. Pus todos para fora, e eles rastejaram sobre meu flanco e fizeram das cavidades entre as minhas escamas o seu lar. Se alimentando das impurezas que impregnavam meu lombo enquanto eu os protegia dos predadores que haviam então surgido da lama abissal e já ocupavam o fundo do oceano ostentando uma fome voraz.

Adoraram-me então como sua deusa e deram a mim o posto de criadora do mundo. Minhas irmãs ainda vivas acompanharam tudo de longe, e aqueles que viviam dentro delas também sentiram a mudança. Eles vieram para fora naturalmente sem que elas os cuspissem, mas estes não eram tão inteligentes quanto os meus, eles eram rústicos, primitivos, violentos, competitivos e nada pacíficos. Suas disputas por território acabavam matando suas criadoras, minhas irmãs. Somos organismos frágeis apesar de gigantescos, e precisamos de equilíbrio e paz para sobreviver, com o estresse das batalhas constantes em suas escamas, minhas irmãs morreram um a uma até que me tornei a única exemplar viva da nossa espécie.

Vi-me rodeada por uma nova floresta de algas que havia crescido repentinamente e tomado metade do globo, agora transbordando de vida, novas espécies haviam surgido e povoado recifes inteiros. Aqueles que habitavam os lombos de minhas irmãs migraram para a lama profunda e lá habitam até os dias de hoje, porque eles se recusaram a fazer parte da nova civilização que o Arquiduque Paguru pretendia criar aqui neste planeta.

Ele veio do espaço acompanhado por um cortejo infinito de naves, trazendo consigo seus soldados Sem Rosto que podiam mudar de forma quando tivessem vontade. Não demorou para que fizesse contato com o povo pacífico que vivia entre as minhas escamas e implantasse seus ideais nas mentes liberais e compreensivas daqueles que ele batizou de Nammajana. Aib’Paguru trouxe sua língua, seus costumes e suas leis para o nosso vasto oceano. Até então eu ainda era a deusa e o próprio Arquiduque exigia que me tratassem sob a alcunha de Mãe Dirgha, a Original. Mas isto só custou o tempo que meu povo levou para descer das minhas costas. Desceram porque engolia os mortos e os consumia em respeito às suas famílias, para que eles se tornassem parte de mim e não morressem definitivamente, disseram que eu também devorava os vivos cruelmente, Nelesive, mentira. Até então essa palavra não existia entre nós.

Quando dei por mim, os estava servindo de protetora, guardando os arredores de Muttu já erguida e espantando as feras das florestas que teimam em se aproximar das construções peroladas erguidas neste mineral do qual nosso solo é rico. Minha sombra sempre pode ser vista vagando no azulado horizonte distante, numa melancolia eterna que se materializa no meu canto. Um canto que poucos podem ouvir.

Um canto que você ouviu, Cavaleiro. Um canto que você ouviu, Christopher. Christopher Umbrella.

- Ela estava falando com você, não estava? – a voz de Hikikomori o trouxe de volta de seus sonhos. Ele estava tão zonzo que o mundo a sua volta diluía em tons marinhos e voltava a ser concreto numa velocidade nauseante.

- Quem estava...?

- A serpente, Dirgha. Ela estava falando com você enquanto dormia. Eu ouvi os pensamentos dela através dos seus. – Hikikomori estava parada em pé ao seu lado lhe velando mais uma vez, num dejàvu de algo que realmente já havia acontecido, em outro lugar, em outra época.

- Do que você está falando? – ele levava às mãos à cabeça e piscava constantemente tentando se livrar da tontura. Nunca se sentira tão cansado na vida. O ambiente ao redor estava imitando a noite, a enorme fachada de vidro do apartamento estava completamente vedada e a luz do lugar havia sido reduzida a um ponto de semi-escuridão tranquila e aconchegante.

- Agora sei o que era aquele pulsar incessante, eram ondas cerebrais emitidas pela deusa-serpente. Ela estava tentando fazer contato esse tempo inteiro, mas parece que só a sua mente é capaz de captá-la. Você está vibrando na mesma sintonia que ela! – Hikikomori agachou-se ao lado, pegou a mão do Professor delicadamente retirando-a da sua testa e segurando-a entre as suas mãos. Os olhos dela estavam brilhantes, ela estava maravilhada por ter encontrado uma criatura tão fascinante quanto Mãe Dirgha, e mais ainda por saber que o Cavaleiro de Ouro possuía uma conexão com ela. – é incrível...

- Vocês precisam sair daqui – a voz eletrônica de Rajakumari invadiu seus ouvidos alto demais. A pequena Nammajana havia se materializado em cima do balcão iluminada pela luz azul fantasmagórica que vinha de cima. Aqueles que dormiam sobre os pufes do gigantesco estofado circular acordaram-se sobressaltados com o susto, a criaturinha estava sendo projetada por um holograma. – imediatamente!

Continua...









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