Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

domingo, 13 de maio de 2012

PARTE QUINZE: O VAI-VEM DAS ONDAS!


- Como assim? – foi a única coisa que o Professor Umbrella conseguiu dizer, ainda estava atordoado demais com a voz ancestral em seus sonhos, tão quanto estava por Hikikomori ter a sua mão acalentada entre os dedos dela. Ela nunca havia tocado assim em nem um deles, era um pouco perturbador sentir a pele quente e macia da extraterrestre sybila junto da sua pele humana tão grossa perto da seda que recobria os músculos das mãos delicadas de Hikikomori, era um toque doce e celestial.

- O que está acontecendo? – Ray Ann levantou-se esfregando os olhos ao mesmo tempo em que tentava desembaraçar a moita de cachos em que seus cabelos haviam se transformado. Ela mais parecia uma medusa agora.

- Ai, não dá pra esperar amanhecer não? – Fábia pegou um pufe enorme e jogou na própria cara tentando escapar do barulho.

- Aqui é sempre de dia, se esqueceu que eles têm dois sóis? – lembrou Pietro se espreguiçando, embaralhando a frase com um bocejo.

- Vocês precisam sair daqui imediatamente! Não podem ficar aqui mais um minuto! – o holograma de Rajakumari projetado em cima da bancada que dividia a enorme câmara redonda do apartamento oscilava e ondulava como se estivesse embaixo d’água. De certo modo, ele estava sim.

- Mas lá fora é tudo água! – exclamou Donnick, ainda grogue tentando se situar. – vamos todos morrer afogados se tentarmos sair daqui!

- Eu impermeabilizei a torre inteira e estou esperando vocês aqui embaixo! – a porta em formato oval ladeada por dois cilindros transparentes onde algas marinhas coloridas dançavam entre bolhas de ar ergueu-se com um ruído pneumático. A passagem estava livre, eles podiam correr, mas ainda estavam muito sonolentos e apreensivos. – por favor! Vocês precisam acreditar em mim! Eu não sou inimiga! Se continuarem presos aqui acabar como os últimos visitantes do nosso planeta!

Rapidamente o sono se foi, como se espantado por uma carranca indígena assustadora, rapidamente o Apocalipse Club já estava bem desperto e todos de pé, os músculos retesados e a postura curvada em posição de defesa, preparados para qualquer coisa que pudesse vir. Apesar de já estar de pé e completamente sóbrio Christopher ainda tinha seus dedos enlaçados pelas mãos delicadas de Hikikomori, ela não o estava soltando por nada no universo, o que era de certo modo assustador, pois a postura que a Sybila havia assumido era totalmente materna e defensora quanto a ele.

- Mas você disse que...

- Eu menti! Eu menti porque achava que com vocês seria diferente! Eles estudam o seu planeta, eles sabem quem vocês são! Eu preciso tirá-los daqui, depressa! – a voz da pequena e cor de rosa Rajakumari estava ficando carregada de desespero. Seu holograma então esmaeceu aos poucos até que não restava mais nada além de um reles espectro luminoso pairando no lugar onde antes ela estivera.

- Temos escolha? – Donnick virou-se pra Chris. Aparentemente ele era o líder eleito no momento porque todos o fitavam com uma expectativa máxima no olhar, no aguardo de que ele fosse tomar a decisão mais sensata para o momento. Era uma situação difícil.

- Não temos. – ele abaixou os olhos, pensativo – se não formos lá nunca saberemos se ela está falando a verdade ou não.

Os outros apenas confirmaram a decisão movimentando a cabeça de leve, as bocas formando linhas firmes de apreensão. Tudo parecia mais sombrio àquela meia luz negra, e então um a um eles foram deixando o cativeiro mais luxuoso que já tiveram até então. Comparado ao que haviam sido as gaiolas e jaulas sujas de Hyeol-Aeg aquele lugar era um hotel de luxo, o aperto no peito em deixar para trás tal conforto foi inevitável. Há tempos eles já não sabiam o que era uma boa hora de sono, uma ceia digna de um humano ou um momento tranquilo de descontração. Os nove meses que se passaram no Cruzeiro Espacial Delta foram tão atordoantes, era como estar aprisionado num quarto do pânico, o conforto era mínimo e a “comida” não era nada saborosa. Fábia foi a última a deixar o lugar. As pontas lilases das suas madeixas ondularam quando ela deu as costas para a câmara redonda.

A descida ao térreo foi um tanto complicada, a estrutura interna da torre lembrava o interior de uma concha, era espiralada, lisa e macia. Uma superfície perolada impecável que brilhava e refletia rostos e formas disformes, assustadoras a cada curva, mas eram apenas seus reflexos em movimento na fuga nervosa. Corações eram bombas-relógio a cada mínimo barulho estranho ecoando nas paredes distantes e no teto côncavo alto daquele corredor inclinado, um verdadeiro desafio era manter-se equilibrado sobre seus próprios pés naquelas condições, era como chafurdar no sabão. Sorte que as paredes eram repletas de furos, talvez fosse através deles que a água era drenada. Neles, os viajantes do espaço procuravam apoio para não transformarem a descida num tobogã acidental.

Os andares não possuíam divisão, eram todos interligados por aquele túnel serpeante sem fim, e aparentemente o único cômodo daquele lugar era o apartamento onde eles estavam há alguns minutos atrás: não havia portas ou aberturas adjacentes ao longo da descida, nada além dos furos nas paredes e grafismos orientais esculpidos no material perolado adornando o teto de forma delicada e frágil. E então o final, um túnel sem saída.

- Ótimo, todo mundo voltando – Pietro que vinha logo atrás exclamou antes mesmo de fazer a última curva.

- Não, esperem um pouco! – era a voz de Rajakumari outra vez, ecoando de algum lugar acima deles. – abram bem os braços, vocês vão receber um spray especial impermeabilizante!

- Mas do que ela está fa...

Antes que Ray pudesse terminar a frase eles foram borrifados violentamente pelos buracos nas paredes que esguichavam jatos de spray cor de chiclete diretamente em seus rostos. As exclamações de indignação e susto foram inevitáveis, inclusive alguns palavrões, foram pegos de surpresa demais para ficarem calados.

- Isso vai impedir que vocês se molhem lá fora e ainda vai permitir que vocês se locomovam rapidamente sem o empecilho da água durante um curto período equivalente a 12 horas no relógio terrestre!

- Que tipo de tecnologia louca é essa?! – exclamou Augusta esfregando as mãos, estavam secas e pueris.

- Que tipo de bruxaria louca é essa, você quer dizer! – corrigiu Pietro

- Agora sim, vocês estão prontos para vir para fora!

- Não, não, não espera um pouco não!

Capacetes de oxigênio caíram do teto sobre eles pendurados em finas cordas transparentes, eles os puseram na cabeça numa velocidade desesperadora antes que o lugar inundasse por completo e se vissem submersos permanentemente. O desespero era contagiante. Eles haviam feito testes de mergulho na academia aeronáutica de treinamento na Rússia, caso algo desse errado durante o lançamento do foguete e eles tivessem de porventura encarar uma situação marinha. Serviria também para o retorno à Terra caso a nave viesse a cair no mar, mas simulação e realidade eram coisas totalmente diferentes.

- Não se preocupem quanto a pressão da água, a gravidade no nosso planeta é várias vezes menor comparada a sua, logo os litros de água não pesam tanto e não há pressão externa significativa nos corpos de vocês!

Para surpresa deles o ambiente não foi inundado como era previsto, mas a parede inteira à esquerda tornou-se completamente transparente e líquida, exibindo com exuberância o mundo exterior, os picos cristalinos e pontiagudos das torres de Punyapuri e seu pátio mais interno. Só assim eles perceberam o quanto estavam isolados do resto de Muttu: enquanto o além do círculo mais interno da cidade sagrada transbordava de atividade com veículos e vultos indefinidos cruzando as águas em alta velocidade a área onde eles se encontravam mais parecia um deserto, uma cidade fantasma inundada e abandonada, coberta de limo, algas e corais alienígenas de uma ponta a outra.

De cara eles foram recebidos por um pátio enorme coberto por algas vermelhas (que mais parecia grama cobrindo um descampado) onde pequenos répteis verdes nadavam caçando o que comer. Punyapuri tinha o formato de alvo, logo eles se encontravam bem no centro deste alvo, seus pavilhões de torres formavam círculos que fechavam e isolavam uns aos outros, o acesso aos círculos mais internos dava-se através de belos arcos ornamentados com relevos da cultura Nammajana, tudo ali inspirava o extremo oriente, o deserto, porém completamente submerso.

- Parece um palácio indiano afundado! Como é belo! – Fábia estava encantada – não havia percebido isso da primeira vez em que estivemos aqui.

- Esse lugar estava lotado de cabeças de lula de uma ponta a outra, não dava pra ver nada mesmo – Pietro deu de ombros e caminhou em direção a parede transparente, esticando o pé direito para fora da torre, para dentro d’água, e então foi o primeiro a sentir na pele o peso do oceano que cobria Nammamane. Não era nada muito pesado, em contrapartida não poderia ser chamado de leve, estava num meio termo que durante certo tempo caminhando se sujeitava a gerar um pequeno incômodo, o desconforto de carregar uma mochila pesada. Os outros o seguiram tímidos, Hikikomori foi a segunda a sair.

- Vamos! Vocês têm de ser rápidos! – Rajakumari estava do outro lado saltitando serelepe, agora sem o seu aparelho respiratório e embaixo d’água parecia muito mais leve e livre que de costume, quase uma gazela de seis patas. A pedra encravada no meio da testa da criatura estava muito mais brilhante agora, talvez fosse a água ou os raios de sol coloridos que a refração criava projetando-se através dos cristais em forma de lágrima no alto das torres da cidade sagrada. – os meus amigos não podem ser vistos aqui, eles são um alvo fácil!

Só então o Apocalipse Club percebeu que estava cercado por um grupo de cinco Nammajanas muito maiores e mais altos que os habitantes comuns de Muttu: suas pernas compridas de girafa eram mais grossas e seu corpo e suas cabeçorras cefalópodes não eram tão desproporcionais um ao outro, mas o mais peculiar em todo o conjunto da obra grotesca era que a pele das criaturas possuía uma tonalidade azul nauseabunda, de lombo listrado num verde marinho grotesco. Eram bem mais monstruosos que os Nammajanas normais, se estes lembravam um cavalo de raça no tamanho os que se apresentavam agora lembravam robustos cavalos selvagens, os três pares de olhos nas laterais da longa cabeça em formato de berinjela estavam presentes ali também, em tonalidades amareladas mais fortes, mais vivas.

Só assim Christopher pode notar que Rajakumari também tinha listras pelo corpo, tímidas áreas um pouco mais claras em seu corpinho de potro cor-de-rosa.

- Não se assustem, por favor! – Rajakumari correu até o local para prostrar-se entre os dois grupos – eles são amigos também, o povo os chama de Malina, impuros, mas eu apenas os chamo de Snehita, amigos.

Ela pareceu sorrir outra vez enquanto se enroscava feito um gatinho filhote entre as pernas do Snehita mais alto, o do meio que os encarava com ferocidade no olhar. Seus tentáculos gordos ondulavam nervosos na água, a tensão por estar ali, no olho de Muttu, no coração do território inimigo emanava deles como uma onda em vibrato. Eles estavam tensos, nervosos e ansiosos para sair dali antes que algo realmente terrível acontecesse.

Os humanos ainda não haviam se adaptado àquela aparência grotesca dos habitantes das profundezas daquele novo planeta, de modo que aquela versão alternativa dos Nammajana estava causando arrepios pela pesada aparência rústica e selvagem que carregavam. O espetáculo de estar embaixo d’água sem se molhar (a água formava uma espécie de película prateada ao redor dos seus corpos magicamente, eles estavam perfeitamente secos e impermeáveis embaixo daquele filme invisível que os protegia) se tornou algo completamente periférico e relevante perante aqueles cinco monstros que os observavam com olhos injetados de selvageria. Talvez fosse o habitat natural das criaturas que as tornava tão grotescas.

- E como nós vamos sair daqui? Não to vendo nenhum aeromodelo de fuga subaquática! – Augusta jogou os braços para o ar, em seguida repetiu o mesmo movimento várias vezes, resmungando consigo mesma e esboçando um sorrisinho bobo no canto da boca. Se movimentar ali embaixo protegido pelo spray impermeável não era como estar ao ar livre, mas também não era como estar realmente embaixo d’água. Obviamente os movimentos se tornavam mais retardados, mas não tanto quanto era o comum em estar rodeado de oceano por todos os lados.

Era um tanto divertido e bobo ao mesmo. Uma sensação indescritível, quase fez Augusta perder a noção da realidade de tanto girar testando sua nova habilidade. Os outros ainda estavam um tanto apreensivos quanto àquilo, mesmo usando os capacetes de oxigênio teimavam em prender a respiração algumas vezes.

- Nós pensamos em tudo, apenas observem! – Rajakumari desenroscou-se das patas do seu protetor, pôs-se na pontinha de seus pezinhos artrópodes e produziu um som semelhante ao canto dos golfinhos. Imediatamente um manto sombrio os envolveu, uma sombra tapou os raios de sol que atravessavam a superfície para iluminá-los – esta é Stingrevel! Deem um olá pra ela pessoal!

Uma enorme baleia-arraia desceu rodopiando ao redor da torre onde uma vez os viajantes do espaço foram prisioneiros, agora em uma fuga urgente rumo ao desconhecido.

- Preparem-se, a viagem vai ser longa! – Rajakumari parecia tão apreensiva e nervosa quanto seus companheiros Snehita, mas ao mesmo tempo carregada de uma jovialidade confiante. Era hora para isso. Para confiar.

◊◊◊

- Eles fugiram meu senhor! – a réplica robótica de Nammajana adentrou o recinto tremendo, descompassado, fora de controle, tropeçando entre as pernas e agitando os pequenos animais marinhos que viviam ali embaixo se alimentando dos detritos nas paredes e no piso daquela câmara submarina apertada. – Acabaram de ultrapassar os limites de Muttu e adentraram a barreira de corais, estão sob o poder de um grupo de Malina!

Algo revolveu-se na escuridão furiosamente, como se sugando a água com toda a força para soltá-la logo em seguida numa lufada de água suja que jogou o robô pilotado pela lesma do mar ao chão. A criatura que o controlava deu um gritinho ao se sentir atingido pela maré em fúria, e ao atingir o lodo do chão com um baque metálico surdo abafado pelos litros de água que o envolviam, uma sombra montanhosa projetou-se sobre ele, tapando as únicas e finas tiras de luz que atravessavam as falhas no casco da nave audaciosamente para iluminar a cova profunda onde Aib’Paguru se escondia. Dois olhos vermelhos brilharam nas sombras.

- Quem os ajudou? – a voz gutural perguntou apenas uma vez, parecia calma apesar da aura ameaçadora que ela emanava. – eles jamais adentrariam sozinhos na cidade sem levantar suspeitas.

- Rajakumari! A sua preterida! Ela os colocou no papo de uma das Stingrevel e os trouxe para dentro sem levantar suspeitas!

Fez-se um tenebroso silêncio durante um longo tempo. Tempo este em que o pequeno Kraken oculto no interior na cabeça de metal de Nammajana robô se manteve tenso, apreensivo, esperando ser esmagado a qualquer momento pelas poderosas pinças de lagosta do seu mestre, o que não aconteceu. A sombra avolumada de olhos vermelhos foi diminuindo aos poucos enquanto a coisa retornava ao seu posto no fundo da câmara lodosa.

- Você já sabe o que fazer. O que sempre fazemos em caso de fugas.

- Mas, meu senhor, sua Rajakumari está entre eles, se o fizer ela...

- Apenas obedeça a minha ordem. Rajakumari está precisando se lembrar dos seus limites.

O robô arrastou-se para fora da câmara submarina cuidadosamente enquanto gemia.

- Às suas ordens, meu senhor, às suas ordens, meu soberano sabe o que faz.

Algo gorgolejou na escuridão, e então o par de faróis vermelhos se apagou.



- Quando eu disse a vocês que não era nascida na época em que outros visitantes do espaço vieram até nós, eu menti, porque queria protegê-los, achava que por serem humanos, provenientes de um planeta tão distante e alheio às coisas que acontecem fora da sua galáxia, seriam poupados do que aconteceu aos outros – Rajakumari estava sentada como um cão, apoiada nas patas traseiras. Enquanto as duas do meio equilibravam seu peso, seus membros superiores gesticulavam nervosas tentando explicar a situação. Hikikomori estava sentada logo ao lado da pequena Nammajana, com as mãos em seu lombo pegajoso tentando incentivá-la a falar.

- E o que aconteceu aos visitantes anteriores? – Ray Ann perguntou, sua voz saindo quase tão robótica quanto a de Rajakumari, através dos pequenos alto-falantes exteriores protuberantes no capacete de oxigênio. Tudo ali dentro do papo da baleia arraia era azul e úmido, era como estar no ventre materno outra vez, observando as luzes e as formas do mundo exterior através da pele fina da bolsa de armazenamento de alimento da criatura enquanto se habita etereamente a placenta. Eles já estiveram em uma situação parecida, porém da última vez estiveram protegidos da água no interior do Cruzeiro Espacial Delta.

- Eles foram mortos, obviamente. – ela gorgolejou e começou a produzir estalos ritmados e melancólicos com a boca oculta várias vezes, talvez isto significasse choro em sua espécie porque Hikikomori também começou a acalentá-la com mais vigor. Houve então um som como um forte respirar e ela prosseguiu – eram quase todos piratas espaciais que caíram por acaso na nossa órbita, o planeta está sempre camuflado, vocês sabem, então estão sempre caindo coisas no nosso oceano.

- Você falou algo sobre eles conhecerem o nosso planeta, saberem quem somos... – começou Donnick, aproximando-se um pouco de Rajakumari para ouvi-la melhor. Por algum motivo o sinal dos comunicadores ficava muito fraco ali dentro do papo da Stingrevel, de modo que poucos centímetros de distância entre eles e o aparelho vocalizador de Rajakumari fazia muita diferença. Todos podiam se ouvir ao mesmo tempo dentro dos seus capacetes, e apesar de muitas horas haverem se passado ainda permaneciam protegidos por uma película invisível e impermeável.

- Sim, eles sabem tudo sobre quase todos os sistemas planetários da região e dos arredores, os senhores que os dominam, seu povo, o modo como eles funcionam. – Rajakumari gesticulava com mais vivacidade agora – eu só sei do que sei por que passei grande parte da minha vida entrando sem ser vista nos laboratórios de pesquisa de Punyapuri revirando os computadores, lendo textos antigos e observando mapas estelares. Grande parte do conhecimento que nossos bancos de dados armazenam vieram de antes, muito antes, Aib’Paguru trouxe consigo quando nos salvou da ignorância, o resto foram adendos e apêndices que nossos estudiosos acrescentaram... Afinal eles precisavam saber do que estavam se protegendo, do que havia lá fora...

- E como você soube que eles estavam planejando fazer conosco o mesmo que fizeram com os outros? – perguntou Augusta, ainda tentando se acostumar com aquelas pequenas criaturinhas semelhantes a compridos peixes passeando pra cá e pra lá no interior da baleia arraia comendo os restos de alimento esquecidos por ali.

- Da mesma maneira que eu fico sabendo de quase tudo em Punyapuri, ouvindo pelos cantos...

- Espera um minuto... – Pietro pôs-se de pé com dificuldade e caminhou até a Nammajana sentada, ela o olhou curiosa como um gatinho e tombou a cabeça para o lado. Já estavam se acostumando à sua aparência um tanto grotesca e quase a achando fofa – você não é quem nos disse que é, não é mesmo? Você não é pesquisadora nem nada daquela história toda?

Ela abaixou a cabeça.

- Não, lamento.

- Quem é você afinal? – perguntou ele outra vez, ajoelhando-se ao lado dela.

- Eu sou Rajakumari Paguru, filha de Aib’Paguru.

O ar foi suspenso. Nenhum deles conseguiu respirar por alguns segundos, não por falta de oxigênio, os capacetes estavam produzindo bem separando as moléculas de oxigênio do hidrogênio na água que os cercava.

- Como é que é? – foi tudo o que Christopher conseguiu dizer antes de um impacto violento jogá-los com força contra a parede elástica mais próxima: foi como estar dentro de uma bexiga e ser lançada de encontro a borracha, seus rostos e membros ficaram todos impressos do lado de fora numa massa irregular de corpos envolvidos em plástico azul, quase uma obra de arte.

- O QUE... O QUE TÁ ACONTECENDO?! – Fábia foi a primeira a gritar quando o monte de corpos se dispersou e tentou manter o equilíbrio. Outros impactos vieram logo em seguida, não tão fortes quanto o primeiro mas com força o suficiente para fazê-los sentir-se no interior de um pula-pula gigantesco.

- Estamos sendo atacados! – fez Rajakumari, estava atracada às costas de Hikikomori que também lutava para manter o equilíbrio. – OH, POR DIRGHA! UM DOS SNEHITA FOI MORTO!

- Como ela sabe disso?! – Ray tentava se levantar sem sucesso, sempre acabava indo ao chão outra vez.

- As criaturas deste oceano estão todas interligadas – os longos cabelos de Hikikomori começaram a ondular e flutuar na água, seria o efeito do spray passando? Já haviam discorrido doze horas desde que eles partiram de Punyapuri? – umas mais que as outras. Por serem da mesma espécie, porém de raças diferentes, Rajakumari está conectada aos seus semelhantes com mais força!

- A STINGREVEL ESTÁ MORRENDO! – a pequena Nammajana apavorada iniciou outra série de estalos com a boca, mais rápidos e mais nervosos que os anteriores, eles produziam vibrações através da água que reverberavam contra os corpos mais próximos, fazendo-os vibrar em sincronia com aquele som de dentro pra fora. – VOCÊS PRECISAM AJUDÁ-LA! ELA VAI MORRER!

- Não temos mais armas! – Donnick gritou.

- Estamos presos aqui dentro, ela não vai abrir a boca para nós sairmos, lá fora somos inúteis! – exclamou Augusta tentando enxergar alguma coisa através da pele fina do papo do animal. Lá fora, os quatro Snehita restantes lutavam contra o inimigo invisível, a baleia arraia atravessava um campo de algas coloridas multiformes e os golpes estavam vindo do nada, deixando aqueles que estavam montados no lombo da criatura completamente desnorteados. O primeiro a morrer teve a cabeça perfurada por algo e caiu de cima da Stingrevel numa cena mórbida onde seu sangue cor-de-rosa neon manchou toda a água ao redor em uma nuvem para em seguida cair no meio do caminho, afundar para sempre rumo à lama de onde aquelas algas quilométricas brotavam.

Não demorou muito para que outro fosse atingido por um golpe certeiro, este decepou suas quatro pernas e o lançou no campo de algas ao redor sem muita cerimônia, violento, mórbido e pavoroso. Rajakumari produziu um som aterrorizante que reverberou no interior da baleia arreia feito o gongo de um sino, um misto de relincho, choro e grito que forçou todos a taparem os ouvidos, Hikikomori principalmente, de todos ela era a que possuía os ouvidos mais sensíveis, de modo que ficou tão tonta que foi ao chão pouco antes de um dos golpes externos acertarem o papo da Stingrevel, rasgando feito uma lâmina.

Imediatamente as paredes se tornaram flácidas e frágeis, feito papel de seda, se rasgando ao menor movimento do grupo que escorregava rumo à brecha aberta na lateral, esta os sugava para fora, para o campo de algas multicoloridas, para a morte. A pobre baleia arraia choramingava dolorosamente seu castigo desmerecido, sua morte prematura, seu fim trágico e cruel. Seu sangue nobre, dourado, fluía em faixas como flâmulas ao vento, tingindo a água ao redor num banho de ouro espetacular, ela afundava cada vez mais, seus enormes olhos negros se fechavam aos poucos enquanto seu fôlego se esvaía. O Apocalipse Club lutava para se manter estável dentro dela, estavam todos agarrados à língua da criatura que já não se mexia mais. Os Snehita sobreviventes então saltaram para os galhos das algas no caminho e salvaram suas vidas.

Deles apenas um sobreviveu, os outros foram mortos e devorados pelo inimigo invisível. Um banho de sangue arco-íris num campo de algas infinito e colorido. O corpo sem vida da Stingrevel afundava levemente, sem pressa rumo ao fundo do oceano, descendo cada vez mais, perdendo a luz, perdendo a cor, deixando para trás o mundo mais superficial e fazendo enormes criaturas símias cobertas por escamas brancas saltarem assustadas para longe, temendo o objeto estranho que vinha de cima, dragado pela escuridão. As algas só eram coloridas perto da luz, seus galhos eram vivazes e fulgurantes lá em cima, ali embaixo seus caules e folhas eram azul-escuros, verde-musgo ou completamente pretos. Todo o tipo de criatura rastejava e nadava entre eles transitando ou lutando pelo seu alimento.

A chegada do cadáver da Stingrevel agitou as profundezas.

- Está tudo tão escuro! – Fábia agarrou-se ao braço de Pietro.

- Temos que sair daqui imediatamente! – alertou Hikikomori pondo-se de pé com dificuldade. O corpo da baleia arraia havia caído de costas, de modo que eles pisoteavam o céu da bocarra da criatura agora. – logo os carniceiros virão comer a carcaça da criatura e podemos acabar virando jantar deles também!

- Você fala como se vivesse aqui debaixo! – fez Augusta um tanto revoltada, estava começando a se sentir molhada, o efeito do spray róseo estava cessando aos poucos, de modo que os movimentos de todos estavam começando a ficar mais lentos graças ao empecilho do atrito com a água, diminuído pela fórmula rosada mágica.

- Só digo o óbvio, tudo aqui é comida de alguma coisa, perdidos aqui fora somos base da cadeia alimentar como qualquer criatura que...

- Esperem um pouco! – Christopher tentou gritar acima das vozes que discutiam calorosamente, obtendo sucesso, todos pararam para ouvi-lo. Rostos sombrios voltaram-se em direção ao seu vulto na escuridão azulada. – onde está Rajakumari?!

Fez-se silêncio.

- Oh, não! Ela deve ter sido puxada para fora quando o último golpe rasgou o papo da baleia arraia! – exclamou Augusta, arriscando aproximar-se da abertura flácida a poucos metros de distância. Então para espanto do grupo o papo da criatura começou a murchar sobre eles, os cobrindo com um manto pesado de pele e veias, se não saíssem de lá imediatamente morreriam sufocados em poucos segundos, esmagados pelo peso da pelanca animal se retraindo perante a morte, se recolhendo para iniciar o processo de decomposição. Não tiveram escolha, usaram as unhas para arregaçar a passagem e vir para fora.

O castelo pula-pula havia secado para sempre, e eles estavam perdidos no meio das trevas cercados pelos enegrecidos caules finos e tortos das algas coloridas, envoltos numa meia-luz azul que tornava qualquer vulto uma ameaça de morte. Quilômetros infinitos de lama negra e detritos orgânicos onde criaturas semelhantes a vermes brancos se arrastavam em busca de alimento se estendiam em todas as direções. Os capacetes de oxigênio acenderam um a um como lanternas alaranjadas, os sensores de escuridão foram ativados, logo eles pareciam um grupo de balões brilhantes flutuando nas sombras. Todas as criaturas curiosas que se aproximavam na surdina afastaram-se da luz, assustadas.

- Se descermos da carcaça da baleia, vamos virar almoço não vamos? – perguntou uma chorosa Fábia ainda agarrada ao braço de Pietro. Estava começando a fazer muito frio, eles estavam começando a se molhar, e os milhares de litros de água acima das suas cabeças começava a pesar um pouco mais.

- Nem vai dar tempo de afundar na lama – respondeu Pietro, tentando manter o equilíbrio na carcaça oscilante do animal. Ela estava afundando aos poucos, e os vermes brancos já se reuniam ao redor dela para saborear sua carne. Só de imaginar que Rajakumari poderia estar perdida por aquele lugar, uma criaturinha tão doce e indefesa quanto ela! Era de partir o coração.

- Temos de encontrar Rajakumari! – fez Ray Ann num acesso de desespero tentando descer da Stingrevel morta a qualquer custo, Donnick a segurou pelos braços e a ergueu antes que ela pudesse fazer alguma coisa. – me solta! Ela está perdida por aí, vai acabar sendo devorada por alguma coisa! – ela se debatia com violência nos braços do capitão, chutava e esperneava ao mesmo tempo. Pietro correu em auxílio imediatamente tentando contê-la. Hikikomori olhava para cima, para o colorido suspenso, para a fraca luz que vinha da superfície tentando encontrar uma saída enquanto os humanos se digladiavam. Logo estavam os seis estavam atracados numa estranha luta corporal sem sentido, a pressão psicológica da situação os estava matando e o cadáver afundava cada vez mais, logo eles não teriam onde ficar. Os símios brancos cobertos de escamas se aproximavam na surdinha com seus olhos negros, curiosos, observando tudo de cima com cautela. A Sybila percebeu sua aproximação.

- Temos companhia – apontou na direção de um dos vultos dependurado em uma das ramificações das algas, não tão longe, mas perigosamente perto. A luz que vinha de cima tornava sua sombra maquiavélica sobre eles, a luz conjunta que os capacetes emanavam iluminava parcialmente o corpo magro e esguio, o rabo longo e a cabeça chata. O restante do grupo congelou de medo.

- Alguém espanta esse bicho, por favor, eu estou ficando assustada com o modo como ele está nos olhando – Fábia se escondeu atrás de Christopher, que porventura era o mais próximo da criatura, pouco à frente de Hikikomori. A criatura escorregava lentamente no caule fino da alga, estava cada vez mais próxima.

- Ele tem algo nas mãos, veja – alertou a Sybila, mostrando o leve brilho de algo que a criatura carregava entre seus dois dedos grossos e longos. A esta altura ele já estava tão próximo ao Professor Umbrella de modo que cada detalhe do seu corpo era perceptível. Tão estranho e ao mesmo tempo tão comum, pacífico. Pendurado no galho seco mais baixo então, ele estendeu a mão em direção ao homem, este estendeu a sua em resposta. Algo escorregou entre os dedos da criatura para a sua palma aberta, e aproximando o objeto estranho da luz alaranjada e fraca de seu capacete, o coração foi a mil. Era o pingente, a pedra de Rajakumari, agora completamente sem brilho, sem vida.

Uma lágrima escorreu pelo canto dos seus olhos.

- Rajakumari... – sussurrou a Sybila por cima do seu ombro, observando a pedra sem cor – está morta.

O silêncio que precedeu o choque só foi quebrado pela agitação da cavalaria fulgurante de enormes dragões marinhos montados por exuberantes Nammajana vestindo armaduras feitas do casco grosso de algum crustáceo vermelho e repleto de espinhos. Um deles carregava o corpo inerte da pobre Rajakumari nos braços. Pobre Princesa Paguru, que teve a vida ceifada pelas pinças do destino em nome dos seus ideais tão prematuramente. Tinha pouco mais de 200 anos terrestres, quase nada para um Nammajana. Os cavaleiros de dragões marinhos lançaram suas redes, capturando o grupo inteiro de uma só vez, um jato azul de tinta lançado pela arma de um deles os cegou por completo. A partir daí tudo foi escuridão e sacolejar infinitos, até que as luzes etéreas de Punyapuri brilhassem outra vez sobre seus rostos, apreensivas e desconfortáveis horas depois.

◊◊◊

- Então a pequenina se foi... – o vulto púrpuro se avolumava sobre o corpo inerte e flácido de um potro Nammajana inanimado. A pedra sem vida que antes reluzia ostentada pela pequena princesa de Muttu ainda estava entre os dedos de Christopher, dura e fria. Suas mãos e pés amarrados dolorosamente por fortes cordas negras, feitas de alguma borracha, provavelmente o mesmo material de suas roupas, modificado de alguma forma para ficar mais resistente e menos elástico. Seus amigos jaziam na mesma posição, cabisbaixos, submissos, oprimidos, olhos fechados. Apenas Hikikomori mantinha-se séria, olhando firme para frente. Seus longos cabelos que escapavam por debaixo do capacete de oxigênio ondulavam brilhantes na água às luzes do pátio mais interno de Punyapuri. Cercados estavam por um exército de Nammajanas armados até os dentes (se é que eles os tinham), lanças pontiagudas e armas potentes estavam apontadas em sua direção enquanto as torres sagradas da cidade interna os velavam no que provavelmente seria o fim de uma aventura. Ou de um pesadelo. Estava tudo acabado, de qualquer forma. – jamais poderei chorar a morte dela por não possuir dutos lacrimais nem nada semelhante que pudesse... Expressar tal dor em meu organismo.

O vulto púrpuro coberto por espinhos então pôs-se de pé. Ainda estava de costas para o grupo, para o seu exército, sua voz era profunda e marítima, calma, porém ameaçadora, inspiradora de respeito, como uma gruta açoitada pela maré.

- Não se preocupem, eu não tenho intenção nenhuma de matá-los, humanos – ele pareceu rir – muito menos a Sybila, ex-Arquiduquesa e inimiga número um do império procurada nos quatro cantos do universo.

Hikikomori pareceu enrijecer. A montanha crustácea prosseguiu:

- A morte de vocês não tem utilidade alguma para mim, se eu os matasse agora estaria matando apenas por prazer, e eu já não faço isso há muito tempo – ele finalmente virou-se de frente para os cativos amarrados feito porcos, ajoelhados como escravos à venda em meio ao pátio coberto pelo gramado de algas rubras. Era um homem lagosta em todos os sentidos, parecia estar usando um elmo, mas aquela era a estrutura real do seu crânio. O corpo coberto por uma rígida carapaça quase monstruosa, não possuía mãos e sim pinças, robustas pinças brancas afiadas. Ele não era completamente roxo, apenas seu lombo e o elmo que emoldurava seu rosto possuía aquela cor forte. Suas antenas ondulavam na água enquanto ele se arrastava sob seis patas afiadas de aranha, um monstro que inspirava terror a cada movimento. – Rajakumari, minha pequena, morreu para proteger a vida de vocês. Matá-los seria como desonrá-la, desonrar a sua memória, e eu não suportaria mais esta desonra em minha vida longa e solitária.

O grupo de cativos o observava com curiosidade e ao mesmo tempo apreensão; estavam prevendo a hora em que aquelas pinças enormes decepariam seus pescoços como uma tesoura parte um canudo ao meio.

- Quando cheguei a este planeta, pensei que fosse apenas mais um mundo a conquistar. Mas havia algo de mais profundo, mais complexo nestas águas, algo que estava além da minha compreensão. – ele soltou uma nuvem de bolhas através da boca, seu rosto lembrava algo aquilino ao mesmo tempo em que referenciava um quelônio, o que era estranho. – por algum motivo eu sabia que deveria fazer este mundo prosperar, protegê-lo de coisas malignas como eu, dar um fim ao meu reinado de terror me estabelecendo para sempre num lugar pacífico. Nunca entendi o que era esse sentimento, talvez nunca entenda, mas Rajakumari entendia. E agora ela se foi... – ele produziu outro som semelhante a uma risada e mais nuvens de bolhas subiram – ela sequer era uma Nammajana natural, nascera em laboratório, da união do meu DNA com o DNA de Mãe Dirgha. Era ela que me permitia controlar a deusa serpente. Agora que Rajakumari está morta, Dirgha pode nos destruir a qualquer momento. A fúria de uma deusa ancestral há de cair sobre nós mais cedo ou mais tarde...

Um longo período de silêncio seguiu-se.

- Avarannu ḍrāp – balbuciou o Arquiduque. A réplica robótica de Nammajana que os velava, a mesma que se apresentara como o próprio Aib’Paguru em sua chegada ao novo mundo, usou suas pinças para libertá-los um a um. Estavam livres então. – não possuo motivos para matá-los, e não sou eu quem vai tentar impedir o caminhar do destino. Vocês possuem uma missão, e vocês devem acreditar nela, ir até o fim... Mesmo que no final as coisas não sejam realmente aquilo que parecem. – ele lançou um olhar suspeito com seus olhos saltados em direção à Hikikomori. Apenas Donnick percebeu. – o ciclo da vida trata-se disso, não é mesmo? De uma busca pela verdade. Quem sou eu para impedir o vai-vem das ondas?

Christopher abriu a boca, ia falar algo, mas foi interrompido bruscamente.

- Eu quero que fique com a pedra, Cavaleiro de Ouro. Significaria muito para a pequena Raja. – ele deu as costas para o grupo – infelizmente o Cruzeiro Espacial Delta foi muito avariado, de modo que vocês precisarão de um transporte novo... – o grupo começou a se entreolhar confuso – novas armas, providências, coisas básicas...

Continua...



























































































































































































































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