Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Capítulo Final - Indestrutível


A princípio a jovem androide Mekare, o último autômato arquitetado pela vacilante e intrincada mente humana, achava realmente que estava diante de um espelho: seu sistema operacional estava programado para reagir situações como aquelas usando movimentos rápidos que poderiam ser imitados pelo reflexo, assim ela constataria sua segurança perante a cópia que se punha de pé diante dela. Mas dessa vez, o leve movimento de sua delicada mão direita não foi repetido na superfície espelhada à sua frente, justamente por aquilo não se tratar de um espelho, mas sim algo sólido, feito exatamente dos mesmos materiais que ela:

Pele falsa e perolada, dura como pedra, lisa e perolada como porcelana. Ossos de titânio entrelaçados por fios de cobre, ouro e prata, condutores da força que os mantinha unidos e de pé. Músculos e nervos falsos, sintéticos, compostos minuciosamente com uso de nanotecnologia, sensores internos disfarçados, programados para fazerem varreduras e scanners na atmosfera, no ambiente, para capturarem cada detalhe do mundo à sua volta. Rios de dinheiro gastos em tecnologia de ponta, algo quase alienígena, financiado por empresas Russas, Árabes, Chinesas e Americanas filiadas à ESFERA.

Mas pouco importava do que aquilo era feito: aquele que veio antes de Mekare estava parado diante dela.

O rosto era o mesmo, exatamente o mesmo: olhos apertados, nariz pequeno e arrebitado, boca em forma de pétala sempre entreaberta, sobrancelhas arqueadas nas extremidades dando um ar sóbrio e ao mesmo tempo vingativo às feições, queixo arredondado. Era exatamente o rosto de Mekare, mas o corpo era bem diferente, apesar de a altura ser praticamente a mesma; 1,60. Não havia seios e a cintura não era tão acentuada, sua cópia não possuía seu collant preto, nada de “maiô”. Ele estava de boxer, cuecas boxer. Na verdade estava muito mais para um calção de banho, indo pelo tecido, este tão colado ao corpo que deixava explícita a sua assexualidade robótica.

O peitoral era bem definido, e sua barriga separada em seis perfeitos gominhos, ombros largos e braços arqueados ao lado do corpo como os de um nadador profissional: tanto movimento repetitivo transforma os braços em verdadeiros remos, nadadeiras, mas no caso daquele androide, este havia sido feito assim. Sua anatomia de nadador era de fábrica, e aquilo avançou para cima de Mekare com um tipo de fúria fria e psicopata que foi incrivelmente capaz de pegá-la de surpresa, ela que previa cada movimento de tudo o que dançava a sua volta. Em dois segundos seu corpo havia feito uma cratera na parede dos fundos, e seu sistema, sofrido um terrível apagão.

Sua cópia masculina saltou sobre o último humano vivo na face da terra como se isto fosse apenas um obstáculo qualquer, e não a parte humana do supercérebro ESFERA, aquele que esteve adormecido durante praticamente todo o último milênio. Aquilo não significava nada para ele, algo à parte, totalmente avulso ao seu verdadeiro alvo: Mekare, o projeto M3K4-R3, aquele que deve ser destruído. O resto poderia esperar, e assim ele caminhou tranquilamente até a cratera feita na parede, para retirar o corpo do androide desacordada de lá e lançá-la contra a outra extremidade do salão. Mekare abriu uma vala no chão, e atingiu a base do portal triangular.

O SISTEMA SE RECUPEROU DE UM ERRO INESPERADO, ÚLTIMA SESSÃO RESTAURADA.

Mekare despertou assustada com todos os sentidos sobrecarregados, como uma pessoa que acorda de um desmaio repentino: ela saltou para o teto e lá ficou atarracada num canto feito uma aranha fugindo da morte. Por pouco não foi atingida pelo poderoso punho daquele autômato desconhecido, mas tão semelhante a ela.

Quando este notou a ausência de seu alvo, vasculhou o salão e encontrou-a imediatamente, voou até ela como um jato, mas foi rebatido como uma bola de vôlei pelas costas das mãos da androide, atravessou o local quicando. Mekare não duraria muito nessa luta: ela fora programada para se defender, nunca para atacar, revidaria qualquer golpe, rebateria qualquer objeto lançado contra ela, pararia uma bala na metade do caminho com a palma da mão se fosse preciso, mas numa batalha seu programa apenas preservaria a integridade física, e aquilo acabaria matando-a!

- M3K4-R3, reprogramar firewall – a voz da ESFERA atingiu seus sensores sonoros em cheio: seu modo de batalha estava sendo ativado finalmente! – desativar modo de defesa. Ativar modo de ataque. – a inteligência mais poderosa do mundo havia sentido a necessidade de Mekare em revidar, e usando sua voz humana, alterou a configuração interna da androide. Imediatamente, sua escura pupila cibernética dobrou de tamanho, tornando-se vermelha como sangue, e o minúsculo anel da íris cinzenta começou a girar numa velocidade absurda. Era o modo de batalha ativado.

A ESFERA pressentiu o perigo que aquele campo de batalha estava representando agora, e como se o chão se dissolvesse em areia movediça, seu corpo humano foi engolido em questão de segundos por ele. O outro androide já se erguia novamente com dois enormes canhões de laser que haviam surgido às suas costas e estavam apontados diretamente para Mekare. Sua visão robótica mantinha um alvo certeiro sobre ela, que num instante já não estava mais ali, indefesa, parada, esperando a morte. Ela havia desaparecido.

O scanner vasculhou por todo o local e nem sinal dela, durante cinco segundos a respiração do mundo pareceu ficar suspensa, até a poeira e os destroços que a batalha havia levantado no ar pareciam parados no espaço. E repentinamente, o androide aniquilador viu-se engasgado por um braço biônico que tentava forçar sua cabeça fora: Mekare estava atracada ao seu lombo como uma viúva negra mortal abatendo o macho da espécie! E como os dois eram parecidos! Olhando de longe pareciam dois gêmeos, duas crianças brincando, se divertindo sem maldade alguma quando na verdade estavam lutando pela vida.

Uma vida com a qual o invasor pouco se importava. Seus reflexos, seus movimentos, tudo parecia muito frio e calculado, ele era uma estátua viva que acordara disposto a tudo para matar, até mesmo arriscar a própria existência. Sua integridade física era um detalhe à parte, seu olhar era vazio como o de um peixe, era como Arnold Schwarzenegger em O Exterminador do Futuro, porém mais baixo menos musculoso e menos bruto. Era como uma criança sem alma, e seus canhões de laser destruíam tudo ao redor aleatoriamente enquanto ele se debatia tentando retirar a fera presa às suas costas.

Mekare arrancou um a um dos canhões e os atirou longe antes que eles fizessem desabar a estrutura já condenada do salão branco milenar, ancestral. Iniciou-se uma série ritmada de poderosos murros na cabeça de sua duplicata, qual meteu as mãos nas costas, agarrou-a pelo maiô e atirou-a a metros de distância: seu corpo capotou furiosamente e escapou pelo portal triangular até a antecâmara repleta de velhas lâmpadas fluorescentes flutuando no vazio. Estas foram acionadas por algum mecanismo oculto e tão antigo que demorara todo esse tempo para funcionar: ela havia atravessado aquele lugar antes e elas não haviam acendido. Mas agora estavam acesas e mostravam o androide rival vindo em sua direção como um projétil a toda velocidade.

Antes que batesse contra a parede, Mekare usou o braço direito para frear seu corpo cravando-o no chão, abrindo uma vala profunda: sua travessia estourou o que havia restado das lâmpadas dependuradas no vazio. Inteligente, usou o apoio para girar o corpo em movimento horário na horizontal, numa estratégia de luta que usou para chutar o seu rival para longe com toda a força. O corpo dele atravessou quilômetros de câmaras subterrâneas adentro, o que não havia acontecido anteriormente graças às paredes reforçadas do salão onde a peleja havia começado.

- Ele é seu irmão, Mekare – disse a voz sigilosa da ESFERA. – ele é o projeto anterior. Seu antecessor. Foi pensado, projetado e construído pelas mesmas geniosas e habilidosas mãos que colocaram cada um dos seus parafusos e molas em seus respectivos lugares.

Mekare permaneceu atenta à voz que lhe falava, ignorando totalmente o perigo que aquele distante som de turbinas representava.

- A ele foi dado o nome de Meroke, a última palavra em tecnologia de ponta: o robô capaz de aprender, gravar e imitar a atividade humana. A perfeição robótica em todos os sentidos, somente inferior à mim, a ESFERA, por não ter sentimentos, por não ter um lado humano... – um brilho azul distante surgiu no longínquo fundo do túnel aberto artificialmente pelo corpo de Meroke chutado para longe pela irmã – E este foi o grande erro daqueles que o criaram. Sem sentimentos de remorso ou culpa, mesmo que falsos e programados para virem à tona após o erro, os homens haviam construído um psicopata de ferro, armado até os dentes com um arsenal poderosíssimo embutido... Grande terror foi o que se abateu sobre Neon City daqueles tempos, e grande alívio veio após desativarem tal autômato que havia sido infectado por um vírus misterioso...

A distante luz azul que brilhava como uma estrela logo tornou-se um facho como o de uma lanterna e seguiu-se de um jato laser poderoso e intenso do qual Mekare desviou pouco antes de atingi-la em cheio e fazê-la em pedacinhos. Ela lançou-se para cima com um impulso poderoso alçando-se a quilômetros de distância, descobrindo então que a antecâmara das lâmpadas era nada mais nada menos do que um profundo fosso que dava acesso ao coração do subterrâneo do Setor 13. Meroke vinha logo atrás como um foguete, olhar para baixo era vê-lo se aproximar a toda velocidade como um metrô descontrolado subindo violentamente na vertical.

Mekare não esperou que ele se aproximasse mais, virou-se em meio à subida, abrindo automaticamente dois compartimentos ocultos nas costas de seus antebraços: de lá, duas metralhadoras despontaram atirando incansavelmente contra o alvo, fazendo ecoar o som ritmado de seus tiros por toda a extensão do fosso. Um ser humano normal teria ficado surdo em tal situação, os tímpanos teriam estourado. Os sensores sonoros de ambos estavam sobrecarregados, e isso colaborou para o próximo passo de Mekare, pois deixou Meroke completamente desnorteado.

Eis que ela então fez o caminho inverso e mergulhou fosso abaixo, atingindo-o em cheio na barriga e agarrando em seguida, fazendo-o curvar-se como uma vírgula sobre seu ombro. Os dois foram em direção ao solo como um cometa, cujo impacto abriu tamanha cratera capaz de abalar completamente a estrutura interna daquele enorme formigueiro que era o submundo.

Enquanto chovia poeira e destroços, aqui e ali despontavam labaredas de chamas vermelho-vivas e descargas elétricas azuis potentes. A voz da ESFERA falava em alto e bom som, revivendo uma memória, uma lenda, um mito profetizado...

- ... Aquela que o contaminou foi a mesma que o desativou! Ela a quem veneraram após a queda de Meroke, o Terrível. Ela que se tornou obsoleta após a criação de Mekare. Ela que num impulso desligou seu sistema e roubou-lhe o cartão de memória. Ela a quem chamam de “A Mestra”, mas que já atendeu por um nome muito mais antigo! – fez-se silêncio, e outra vez o mundo inteiro suspendeu sua respiração. Os rostos de Meroke e Mekare estavam tão próximos que faíscas azuis e descargas elétricas corriam livremente de um corpo ao outro. – CVALDA! A PRIMEIRA ANDROIDE DE TODAS!

No instante em que a voz da ESFERA cessou, a língua exposta de Meroke tornou-se um ferrão de metal, e num rápido movimento, grudou seus lábios aos de Mekare. A porta USB principal foi ocupada pelo dispositivo invasor num beijo da morte. Uma máquina se conectou à outra e o vírus de computador mais poderoso do mundo foi descarregado no sistema operacional de Mekare, contaminando cada um dos comandos, invertendo sua programação, virando-a do avesso numa tempestade devastadora.

Mas Mekare era o modelo superior; a adaptação, a evolução da tecnologia, o robô perfeito, de modo que seus criadores imaginaram, no momento em que a programaram, o risco que ela estaria correndo vivendo num mundo onde um perigoso vírus poderia revertê-la de pacífica companheira a uma máquina mortífera de guerra. Isso fez com que o laboratório desenvolvesse um antivírus tão poderoso quanto o arquivo executável mal intencionado que havia danificado o projeto antecessor ao M3K4-R3, o parasita que infectou o sistema de Mekare nestes poucos segundo através de um beijo da morte não contava com isso.

AMEAÇA DETECTADA: VARREDURA EMERGENCIAL ATIVADA.

Como num tsunami devastador, o sistema operacional foi percorrido por uma onda que varreu e recuperou cada uma das chaves de comando infectadas e revertidas, transformando sua alma cibernética novamente, trazendo a verdadeira Mekare de volta. O mal estava sendo erradicado de cada pasta, de cada arquivo, de cada programa. E o antivírus não se limitou apenas ao sistema operacional dela, usou a conexão USB para invadir o sistema corrompido de Meroke e o limpou violentamente, descargas elétricas poderosas percorreram os dois corpos e ricochetearam nas paredes ao redor até que tudo tornou-se silêncio e escuridão...

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Iniciar Projeto M3K4-R3

Iniciar Projeto M3R0-K3

Ambos os sistemas foram reiniciados, agora livres de qualquer infecção: o vírus mais poderoso do mundo havia sido erradicado pelo antivírus mais poderoso do mundo. A primeira coisa que Mekare viu quando a luz refletida nos objetos atingiu sua retina artificial em forma de imagem foi o rosto magro do homem que um dia havia sido parte da ESFERA. Estava sentado ao seu lado, no escuro, usando uma mortalha branca: parecia muito mais um fantasma do que uma criatura viva. Ele a observava com ar sábio e atencioso, como se aguardasse seu despertar pacientemente.

Um vulto pôs-se de pé imediatamente ao seu lado num movimento rápido e automatizado; era Meroke. Agora não representava ameaça alguma, era como se seu sistema houvesse iniciado pela primeira vez, sua memória estava completamente limpa, e ele estampava um sereno sorriso no rosto, como previsto em seu programa. Nada lembrava a arma de guerra fria e mortal que havia sido há algumas horas atrás, nada lembrava o monstro em que o vírus havia o transformado. Seu disco rígido havia formatado, era exatamente o que iria acontecer à ela se o cartão de memória não fosse encontrado urgentemente.

- Olá, eu sou Meroke! – cumprimentou numa voz sonora e metálica, como se ressoasse dentro de um cilindro de metal. – qual o seu nome, senhorita? – estendeu a mão para a irmã gêmea, que a apanhou pelo pulso e usou-a como apoio para pôr-se de pé. Ambos tinham a mesma altura.

- Esta é Mekare, sua irmã gêmea – fez a ESFERA, erguendo-se. – ela foi criada a partir do mesmo modelo que o originou, o metal que molda seus ossos é o mesmo metal que sustenta a estrutura robótica dela. Juntos, vocês são um só.

Os dois androides gêmeos permaneceram ali, quietos, eretos, estudando um ao outro como se fosse a primeira vez, observando, aprendendo, absorvendo suas características. Mekare tinha o rosto completamente inexpressível, seus olhos piscavam de forma ritmada como se houvesse despertado de uma ilusão, seus longos cílios cinzentos batiam como as asas de duas borboletas, Meroke por sua vez permanecia com um sorriso sereno estampado no rosto.

Eles estavam se conhecendo.

Mekare ergueu sua mão direita espalmada e aproximou-a do rosto do irmão. Ele imitou o movimento com delicadeza e segurou a face esquerda da irmã como se fosse uma joia rara e inestimável. Num movimento sincronizado, o elo se desfez, e ambas as mãos afastaram-se dos gelados rostos artificiais para se tocarem no vazio que havia entre eles. Uma corrente elétrica atravessou de uma palma a outra, e por um minuto as duas unidades distintas foram uma só.

- Prazer em conhecê-lo, Meroke – e pela primeira vez desde que despertara naquela estranha manhã, naquele mundo deformado e destruído pelo peso dos séculos, o rosto perolado esboçou um sorriso.

Os rostos idênticos voltaram-se vagarosamente para o homem ali ao lado, parado em sua mortalha branca como um padre abençoando a irmandade, aquele que já fora e ainda era a metade humana da ESFERA: os cabos conectados à sua cabeça haviam sido retirados, e em seus lugares havia pequenas perfurações sangrentas que ao longe lembrariam seis pequenos sinais enfileirados, três em cada lado do crânio. Porém, sua coluna vertebral ainda estava ligada à máquina, os neurônios que atravessam seu núcleo ainda estavam conectados a ela, e tremenda foi a dor e o choque de desvincular-se daquilo a que estavam unidos durante todos aqueles séculos. Rios de lágrimas jorraram, dores do corpo e dores da alma se misturaram num único lamento terrível: a ESFERA estava se dividindo em duas, um pedaço daquele ser estava sendo deixado para trás.

Ora, uma criatura meio humana e meio máquina ainda é uma criatura. É a evolução da raça humana e seu último exemplar vivo, a convergência final. E agora ela estava em mitose. Se dividindo como uma célula, mas não em duas partes iguais. A partir daquele momento ele, o homem, voltava a ser quem fora há quase dois mil anos atrás, Don Hills, o último Apocalíptico vivo. A ESFERA agora se tornara duas partes completamente diferentes.

- Vamos até Cvalda juntos, os três – fez, após pôr-se de pé com dificuldade e enxugar suas lágrimas sofridas. Havia nascido de novo.

- Como chegaremos até ela? – perguntou Mekare, confusa, ainda segurando a mão do irmão.

- Afastem-se – pediu Don Hills, esticando as mãos para frente. Os androides obedeceram, e no mesmo instante seus sensores internos foram invadidos por estranhas ondas de partículas elementares desconhecidas. Algo que eles já haviam sentido antes, provavelmente emanando de outros seres humanos, mas que não fora armazenado em suas memórias por tratarem-se de informações completamente relevantes que jamais interfeririam no funcionamento de seus cérebros eletrônicos. Aquela estranha força que tomou conta do lugar era a poderosa onda cerebral de Don Hills. Após um milênio inteiro perdido entre sonhos e mundos distantes ele havia aprendido e desenvolvido poderes paranormais, estimulado seu cérebro ao máximo de modo que mesmo desconectado da máquina ainda fosse dono de habilidades sobre-humanas e velocidade inigualável de cálculo. Seu lado máquina ainda falava alto mesmo estando distante.

Seu corpo alçou-se no espaço, e os androides o acompanharam usando seus próprios propulsores à jato implantados na sola de seus pés. O piso abaixo deles abriu-se revelando um fosso muito mais fundo e obscuro de onde uma lufada poderosa de ar subiu arrebatadora. O som de hélices e turbinas potentes fez-se ouvir de uma ponta a outra, e da escuridão uma aeronave alienígena surgiu. Era como um helicóptero sustentado por duas turbinas, uma de cada lado das suas estranhas asas curvas como as de uma gaivota no horizonte. As portas laterais abriram-se com um ruído pneumático, e sem pensar duas vezes, os três entraram, rumo à batalha final.

Mekare recuperaria seu cartão de memória, esta era sua meta, sua principal missão. Ela precisava saber quem era, ela tinha o direito de saber.

VOCÊ POSSUI DEZ HORAS ATÉ A FORMATAÇÃO DE EMERGÊNCIA


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A intensa batalha havia causado sérios danos em ambos os organismos genéricos, de modo que reparos tiveram de ser feitos por Don Hills ao longo da viagem. Meroke foi o que mais sofreu danos, o irmão mais velho de Mekare teve de ser desmontado pelo menos duas vezes e muitas peças tiveram de ser reparadas, isto levou três longas horas. Mas a demora não foi sinônimo de dificuldade alguma, e sim da quantidade de reparos a serem feitos. A habilidade paranormal da parte humana da ESFERA se estendia muito além de mover a matéria com a força do pensamento ou ligar máquinas usando ondas cerebrais: as coisas se concertavam sem que ele nem mesmo tocasse nelas, peças minúsculas se desfaziam em pedaços menores ainda, cabos rompidos se restauravam em questão de segundos.

- Como você consegue fazer isto? – Mekare estava curiosa, observando o interior eletrônico do estômago do irmão. Ali, as engrenagens giravam a todo vapor.


Don sorriu.

- Não é tão difícil quanto parece – fez.

- A humana que conheci não sabia fazer esse tipo de coisa, os outros humanos também não.

- O cérebro humano, Mekare, é algo bem mais complexo do que você imagina. Ele é a força mais poderosa do universo. – sua voz fluía livremente pela boca enquanto seus olhos vítreos controlavam os ligamentos que precisavam ser consertados. Mekare viu minúsculos fios de cobre se grudarem com estalidos luminosos. – os cientistas antes de mim já sabiam disso, mas o homem em si nunca foi capaz de alcançar a consciência plena e o estágio avançado que precisava para ter controle total sobre sua mente... No momento em que me conectei à máquina, isso aconteceu, e eu fui capaz de tudo e muito mais. A precisão de cálculo de um computador combinada à potência do cérebro humano me tornou algo que nenhum ser humano jamais sonhou ser. Eu próprio sequer sei o que sou agora. Sou um erro ou talvez o maior de todos os acertos.

Mekare permaneceu calada enquanto processava e armazenava aquelas informações. Era tão estranho para ela ver um humano vivo naquele mundo hostil lá fora. O ar estava tão contaminado que uma inspiração dele fora da aeronave o mataria em poucos minutos, ele parecia tão frágil e ao mesmo tempo tão forte. Tinha a mesma expressão serena, doce e sábia da Criadora. Os seres humanos eram criaturas magníficas, e o último da espécie estava ali diante dela.

- Você sabe a localização de Cvalda? Sabe quem ela é?

- Sei sim, e você também sabe, logo irá se lembrar de tudo.

- Estamos muito longe dela?

- Não tanto quanto você imagina...

A viagem durou cinco longas e arrastadas horas debaixo de um céu pesado e escuro, carregado de nuvens negras e tóxicas. Os arranha céus em ruínas do Setor 13 se estendiam por quilômetros ao longo do que fora o leito de um rio há milênios atrás, cobria uma área enorme, faixas infinitas de solo envenenado serpenteando sobre o mundo, pilhas colossais de sucata cobriam o concreto da cidade perdida como as dunas de um deserto invasor devora um vilarejo em questão de meses, se misturando aos prédios numa simbiose mórbida e melancólica. A sucata comia o que um dia fora o olho do mundo.

A nave sobrevoou o porto, e de relance Mekare e Meroke puderam ver, com os rostos colados ao vidro, as balsas chegarem através da água pastosa, verde e borbulhante de profundos córregos remanescentes do que um dia fora o maior rio do mundo. Esqueletos fossilizados de animais gigantescos sobressaíam da terra escura como espigões. Frágeis e ao mesmo tempo letais.

Sobrevoaram também as mineradoras em busca da fortaleza voadora: o rastro estava quente. Profundos sulcos foram abertos na terra pelos megálitos usados como âncoras pelo estádio de futebol flutuante. Máquinas colossais extraíam o calor da terra e o escoavam através de calhas de pedra para dentro de processadores e caldeiras gigantescas, que aqueceriam as turbinas e as colocariam para funcionar, alimentando as baterias do mundo inteiro com a ajuda de cabos e linhões condutores poderosos. Estruturas que entrelaçavam o globo como arame farpado de norte a sul.

- Não estamos longe – avisou Don Hills, os olhos fixos no horizonte. As ruínas de Neon City já findavam, deixadas para trás. Quilômetros de um deserto arenoso salpicado de sucata se estendiam mais à frente, no extremo norte, e flutuando como um minúsculo ponto preto no céu distante, a fortaleza voadora tentava escapar a toda velocidade. Um vulto escuro dançava ao redor dela, longo e mortal, espiralando no ar como uma sanguessuga na água suja do pântano. Mekare semicerrou os olhos.

- Midgardsormen – sibilou.


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A proximidade com a fortaleza voadora tornava o cenário mais perigoso ainda, apesar da metade posterior de um porta-aviões estender-se para fora feito uma língua sinalizando e convidando a aeronave ao pouso com suas luzes vermelhas. O processador de sucata em forma de dragão serpenteava violentamente ao redor, produzindo seu costumeiro som misto que variava entre retro escavadeira e dinossauro. Provavelmente não tinha permissão para atacar e isso o estava deixando irritado, espiralava muito próximo à nave, quase de raspão, poderia abocanhá-la com um rápido movimento, mas não o fazia embora a tentação fosse grande.

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Don Hills colocou uma máscara de gás, havia previsto o movimento da furiosa Mekare, que usando apenas um punho estourou a cabine de vidro com um soco e saltou para fora do helicóptero violentamente, lançando-se no ar como um míssil. Midgardsormen passou exatamente debaixo dela naquele momento, o que acabou servindo para tomar impulso e saltar mais alto ainda, o que a levou a cair agachada exatamente no meio da pista de pouso que se esticava para fora da lateral da fortaleza voadora como uma península. Sua queda abalou abriu uma cratera levantando uma grossa nuvem de poeira...

Conforme a nuvem de poeira foi se dissipando graças ao vento da tempestade que viria a seguir, um vulto negro de aproximadamente dois metros de altura entrou em seu campo de visão e foi pego pelo scanner, detectando sua silhueta com precisão. Tinha os ombros largos e os braços compridos, desproporcionais, e a cabeça pequena demais para o corpo. Sua cintura lembrava a de um manequim, tão fina que era.

A névoa então tornou-se tão fina que o sistema de Mekare pode compreender o que estava de pé, ali, diante dela. Era uma androide, mas uma androide muito, muito velha, mais velha até que Negasjatingaron: seus circuitos estavam todos à mostra, seu busto de ferro era como uma armadura velha protegendo a parte importante do esqueleto: o peito, que guardava grande parte dos componentes mais importantes e funcionava como a CPU, diferente de Mekare que tinha sua parte mais importante protegida pelo crânio de metal.

Outra característica estranha daquele velho autômato era a borracha negra remendada que recobria sua nuca, seu pescoço, as laterais do rosto, os ombros e o colo. Um capacete protegia a parte superior de seu crânio cibernético onde as engrenagens giravam ruidosamente, por baixo dele escapavam fios de cabelo artificial escuros, sedosos e brilhantes, mechas curtas e repicadas. O que ficava à mostra – aparentemente a única coisa conservada naquela sucata ambulante – eram as feições humanas do nariz, dos lábios e do queixo. Uma pinta escura sobressaía sutilmente acima da carnuda boca vermelha. Seria um rosto sedutor se não tivesse os olhos cobertos pelo capacete: seu visor de metal possuía dois glóbulos de vidro vermelhos, um pequeno e um grande juntos num único lado da face.

Aquilo lembrava, de forma mórbida, os olhos de uma aranha que acabara de apanhar a mosca em sua teia.

Num rápido movimento, ela apanhou Mekare pelo pescoço e a ergueu no ar. Por mais que ela lutasse com todas as forças, aquela coisa que a havia apanhado era muito mais poderosa que ela. Meroke tentou intervir na batalha mas foi feito em pedaços antes mesmo de estar próximo o suficiente: foi pego no ar por uma espécie de escudo invisível que o desmontou como um boneco velho de plástico. Mekare estava completamente perdida, Meroke era tão forte quanto ela e fora destruído em poucos segundos sem sequer ter aproximado o bastante! Aquilo doeu fundo em algum lugar. Se ela possuísse uma alma, talvez sentiria a morte do irmão, se ela possuísse lágrimas talvez choraria ao ver a cabeça de metal com o rosto tão semelhante ao seu rolando aos seus pés. Mas aquilo só parece aumentar sua fúria e fazê-la contorcer-se mais.

- Você é Cvalda – não foi uma pergunta, foi uma afirmação.

- Calada – disse, friamente, a velha androide que a engasgava – você não vai levá-la de mim, nunca mais. Eu permiti isso uma vez, não permitirei de novo. Ela é minha, somente minha.

- Me devolva meu cartão de memória! Eu ordeno!

- Você não ordena nada, você é uma máquina como eu, não exerce nenhum poder sobre mim.

- Eu quero meu cartão de memória!

- Nunca foi seu. Estas memórias são minhas. Nunca foram suas, você as roubou de mim.

E antes que Mekare pudesse retrucar, foi atirada no ar como isca para gaivotas e apanhada pela bocarra cheia de dentes de Midgardsormen.



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Primeiro seu corpo – à prova de fogo, graças aos atributos de sua pele perolada repelente de calor e umidade – desceu rolando um tubo em chamas. Tudo era inferno ao seu redor, seu collant logo derreteu e tornou-se um nada, seus cabelos chamuscaram perigosamente em seguida. Sem alternativa, ela socou a lateral daquele tubo da morte antes que ela despencasse num profundo túnel repleto de serras e compressores de sucata que picotavam e amassavam o metal derretido para transformá-lo em globos maciços. Estes eram acumulados no último vagão de Midgardsormen e “desovados” por assim dizer, logo em seguida.

Arrastou-se para fora dele e ativou p mecanismo de nano-heal: micro-organismos cibernéticos reconstruíram seus cabelos, seus cílios e seu collant num piscar de olhos. Só percebeu depois que estava numa tubulação paralela anteriormente usada para reparos no processador de sucata, e sem pensar duas vezes, socou a lateral interna dele até que um grande rasgo abriu-se para o céu aberto.

Mekare lançou-se para fora, virou-se no ar em câmera lenta e atirou a toda potência contra o encouraçado de Midgardsormen, voou por toda a extensão do monstro de metal metralhando e lançando mísseis que foram abrindo enormes buracos e profundas feridas na sua casca. Logo, o terror do novo mundo nada mais era do que trinta metros de puro ferro retorcido e em chamas, explodindo no ar em um show de fogos de artifício. Uma nuvem vermelha cobriu toda aquela área do céu tempestuoso, raios caíam e ricocheteavam em todas as direções.

Após terminar o serviço, Mekare voltou-se para a fortaleza voadora que já se distanciava, usou o mecanismo de zoom para aproximar a imagem da plataforma de pouso, constatando que a aeronave de Don Hills havia pousado e Cvalda havia feito dele seu prisioneiro: ela mesma estava arrastando-o ao longo da pista iluminada enquanto uma nuvem de cefalópodes e androides menores montados em Planárias escapava das laterais do quartel general e vinha zunindo como um bando de cigarras furiosas em sua direção.

Era um exército inteiro, mas nem isto foi páreo para Mekare. Com um rápido movimento todos os compartimentos ocultos de seu corpo revelaram armas poderosas, desde a ponta de seus dedos das mãos até o último mindinho dos pés: seus seios eram dois canhões a laser, seus braços eram lançadores de mísseis e sua boca um lança-chamas poderoso. Isto atravessou a nuvem de subordinados de Cvalda como um demônio endiabrado quebrando e explodindo tudo, sequer dando chance para que eles pensassem em como revidar.
Chegou à plataforma a tempo de dar um chute certeiro na cabeça da velha androide Cvalda, isto a fez cuspir violentamente um pequeno chip branco. O sistema de Mekare entrou em alerta, aquele era o seu cartão de memória, enfim!

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Uma luta ferrenha teve início ali. Cvalda soltou Don Hills e apanhou a perna de Mekare num movimento quase invisível, girou-a no ar como um velho saco de batatas e lançou-a violentamente contra uma das torres da sua fortaleza voadora, agachando-se logo em seguida para apanhar o cartão de memória cuspido pelo impacto. Seus movimentos eram tão frios e tão robóticos que até mesmo Meroke corrompido pelo vírus parecia mais humano! Ela não demonstrava nada, emoção alguma, era uma boneca viva e inexpressiva.

Mekare recuperou-se rápido e projetou-se para atingir Cvalda no peito, afastando-a de seu cartão de memória. Foi o que aconteceu, e seu corpanzil atingiu a nave em cheio.

A esta altura, a androide de quase 2000 anos estava altamente danificada, sequer se mexia direito. As pancadas que ela havia recebido destruíram seus circuitos expostos e corrompido o hardware que continha a chave do sistema, ela estava se movendo por puro reflexo, e este último recurso foi usado para gerar o campo magnético ultra potente que havia destruído Meroke anteriormente. Para preservar sua vida e a de Don Hills, Mekare apanhou-o pela cintura e saltou para o infinito, alçando-se o mais alto que podia como um foguete: o campo da morte se expandia na mesma rapidez e ficava cada vez mais forte, e então uma estalido quase inaudível findou sua atividade: Cvalda enfim havia pifado. Uma única frase desenhava-se em letras garrafais de pixels na escuridão da sua morte...

OPERATIONAL SYSTEM NOT FOUND

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- Você consegue recuperá-lo? – perguntou Mekare, segurando a cabeça inanimada do irmão entre as mãos.

- Vai demorar alguns dias, mas não será grande problema...

- Você está bem? Me perdoe por não ter perguntado antes.

- Eu estou bem, Mekare, não se preocupe – Don sorriu serenamente atrás da máscara de gás, as maçãs de seu rosto rosadas subindo até os olhos. Mekare sorriu de volta, seu segundo sorriso em dois dias após seu despertar. Seu segundo sorriso em mil anos.


Após inserir o cartão de memória novamente, Mekare lembrou-se de tudo.

Todas as filmagens feitas pelo sistema estavam ali, e informações importantes apreendidas por chaves de comando também. Ela lembrou-se do laboratório, dos cientistas que a construíram, dos passeios nas tardes ensolaradas através dos jardins infinitos do Apocalipse Hall, mansão que a família da Criadora havia herdado dos seus ancestrais. Lembrou-se dos piqueniques no outono farto, das noites chuvosas de inverno, das primaveras perfumadas, climas artificiais gerados dentro daquela grande cúpula de vidro como num útero, que cobria quase um quilômetro de área verde dentro da selva de Neon, e protegia boa parte das ruínas da Velha Macapá.

Lembrou-se de como era bom estar com os seres humanos e aprender junto com eles, lembrou-se dos centros apinhados de gente, das grandes convenções onde ela era a atração e a promessa de um novo futuro. Lembrou-se até mesmo de uma infância que não era sua, porque robôs não possuem infância, mas logo compreendeu: a memória da filha mais nova da Criadora havia sido transferida para seu cérebro eletrônico. A jovem Mekare original morrera aos oito anos da mesma doença misteriosa que dizimara a raça humana, seu marido fora assassinado logo em seguida e o culpado nunca encontrado. Mekare tinha uma suspeita.

Tudo estava ali, memórias que ela viveu e outras que ela nunca presenciou, até mesmo os ataques de um terrível Meroke que vitimaram pessoas e construções importantes de Neon City.

Dois dias se passaram então, e Cvalda foi desmontada.

Seu peitoral, que guardava sua CPU, foi trancafiado num baú de segurança máxima e jogado no fundo dos canais lodosos do litoral, para perder-se na eternidade.

O mundo estava sem uma governante afinal, os robôs logo descobririam e entrariam em anarquia total. Mekare pouco se preocupava com isso, não era da conta dela.

Meroke ainda não estava inteiro quando eles partiram da fortaleza voadora...

- E agora, o que faremos? – perguntou Don Hills. Pela primeira vez em mil anos, estava completamente perdido.

- Vamos atrás de outros humanos, está decidido! – disse Mekare, sorrindo. A cabeça do irmão sorria e mexia os olhos, mas ainda não falava. Estava ali em cima da bancada do laboratório da nave, sempre ali.

- Há uma probabilidade de sobrevivência muito pequena nos extremos norte e sul, o que acha?

- Acho... digno!

Mekare deu uma risadinha. Sem seu cartão de memória isso nunca seria possível, a chave de comando das risadinhas não estavam em seu HD. Don Hills também acompanhou-a na risada, e juntos partiram em busca de um novo amanhã, uma nova missão, um novo objetivo. O cartão de memória de Mekare havia sido recuperado, enfim, o céu tóxico e o solo envenenado do Setor 13 estavam sendo deixado para trás. No céu, uma Aurora Boreal artificial dançava interagindo com as cores quentes do pôr-do-sol, desenhando corações, gaivotas, montanhas, rios, cavalos e ovelhas num mundo quase morto. Havia uma esperança ainda.


FIM










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