Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Eat Yourself

Faltavam pouquíssimas horas para o sol nascer. Aquele corpinho branco e gelado jazia feito uma estátua na areia fria da praia. A brisa leve e insensível do final da madrugada e começo da manhã desferiu lambidas que por incrível que pareçam, eram carinhosas ao rostinho da criança. Ela segurava um balão vermelho, vermelho como sangue quente e novo, e era um pouco perturbador o contraste que aquele artefato, por assim dizer, símbolo da infância e da inocência podia fazer toda aquela paisagem azul, negra e cinza, derrotada pela madrugada escura e feroz, parecer incendiar. Os cabelos escuros da menina foram acariciados novamente pela brisa. Os olhinhos dela, tão grandes e tão melosos pareciam duas balas doces cheias de vida vidradas fixamente no horizonte, num horizonte que aos poucos estava mudando de tom, como se algo ou alguém tivesse deixado cair uma gotinha de mercúrio no mar, e este entrava em reação química lenta, que aos poucos se tornava poderosa. Em poucos minutos aquilo seria um apocalipse, um verdadeiro apocalipse para todas as criaturas da noite.
E a menina sabia disso. Ela sabia de tudo.
Seus dedinhos de porcelana, gordinhos e macios, soltaram o pedaço de barbante que ainda prendia o balão vermelho àquela realidade, triste, vazia e gelada da praia morta e frígida. A vida parecia ter-se mudado dali há muitos e muitos anos. Pedras escuras escarpadas fechavam a areia branca em uma meia lua torta que acariciada com preguiça pelas ondas salgadas do mar calmo da manhã. Os olhos de coruja, inexpressivos e esbugalhados, ao mesmo tempo doces e melancólicos, acompanharam o percurso do balão, do pingo de felicidade que fez o caminho contrário. Mamãe tinha razão, balões são pingos ao contrário! Olha só o formatinho deles!
A garotinha sorriu, e seu rostinho de pedra lisa e branca retorceu-se em algo que poderia significar felicidade. Poderia se ela quisesse, mas aquele não era o momento e nem o lugar para demonstrar qualquer tipo de felicidade. Ela estava se despedindo. Uma estátua em forma de criança, imóvel na areia, dizendo adeus a noite eterna. Parecia um pouco triste, mas ela vai confessar mais tarde que ficou muito aliviada depois que a linha do horizonte se expandiu finalmente.
Ela colocou seu cabelo incrivelmente liso e escuro atrás das orelhas. Limpou a testa de um suor inexistente, talvez fosse apenas nervosismo. Aquele tipo de coisa que nós não conseguimos evitar em fazer quando estamos realmente muito nervosos.
Esperaria o raiar definitivo da aurora de pé ou sentada?
Seria mais respeitoso receber o sol de pé, afinal ele era o Rei dos astros. Era algo realmente muito importante. Ou talvez ele fosse apenas um aglomerado de gases nobres em temperatura altíssima. Mas e daí?! Ela era criança, criança pra sempre. Poderia acreditar no que quisesse.
Levantou-se, afofou o vestidinho branco de bolinhas vermelhas e caminhou lentamente, abrindo sulcos na areia macia em direção às ondas preguiçosas da manhã. Abriu os braços. O balão vermelho, pingo de felicidade ao contrário, pedaço de sangue e chama incendiando a madrugada gelada e frígida, insensível, já estava longe, quase invisível. Mas a vista aprimorada da jovenzinha tornava possível a visão parcial de um reluzente ponto rubro sendo varrido pelo vento leste. Ele recusava-se a ver o que aconteceria. Afinal, acompanhara a mocinha por tanto tempo que tinha se apegado a ela de uma forma que jamais imaginara. Ela era gelada, dura e inexpressiva, mas um coração ainda batia lá dentro, bem fraquinho, quando ela se alimentava daquilo que tinha a sua cor. A cor da vida audaciosa que enfrentava a praia morta.
Abriu os braços. A primeira onda tocou seus dedinhos gorduchos. Ela já sentia a espécie estranha de calor da qual tanto haviam lhe falado, da qual ela andou fugindo durante 120 voltas completas da terra ao redor do sol. De suas experiências humanas, a que mais se assemelhava àquele calor oxidante e inquietante, incômodo, era a vez em que ela caiu sentada num formigueiro, e todas as formiguinhas vermelhas subiram pelas suas pernas e pelas suas costas, ferrando e beliscando e rasgando a pele sem dó nem piedade. Aquilo ardia de verdade.
Mas a ardência foi aumentando conforme a intensidade da luz. E então a pele foi-se rasgando em veios vermelhos e depois amarelos profundos e em brasa. Ela permanecia firme e forte de braços abertos, sem fazer caretas. Era uma mocinha forte e crescidinha, podia agüentar aquilo, podia sim.
- Você já é uma mocinha, nada de fazer caretas na hora de tomar remédio! – dizia a mamãe, vindo com o pote e a colher. Ela sabia o que aquilo queria dizer. Pra agüentar o amargor do óleo de bacalhau, ela colocava brincos, colares, gargantilhas, luvas, chapéus, sapatos de salto e passava o tanto de pó que podia passar. Para citar corriqueiramente o batom vermelho, parecia mesmo sangue espalhado pela boca e pelas bochechas. Mamãe ria. Parecer uma mulher adulta de alguma maneira ajudava a não sentir aquele gosto horrível descendo a garganta rasgando forte. Ela se sentia crescida e importante usando os adereços e acessórios da mamãe.
Mas a dor e o amargor de tomar óleo de fígado de bacalhau não se comparavam a ter cada centímetro da sua pele queimando em fogo vivo. Tornar-se cinzas era uma experiência muito mais desagradável do que ela pensava. Mas ela era uma mocinha, podia agüentar mais um pouco. Se saísse dali e corresse para as falhas entre as pedras da praia, passaria anos para se recuperar das queimaduras e das cicatrizes. Ela gritou mentalmente todos os palavrões que sabia de cor, mamãe ficaria furiosa.
Em poucos segundos o fogo a consumiu.
Em milésimos ela se mumificou.
E após isso se tornou uma pilha de cinzas e ossos queimados. O fedor era forte, mas não havia fumaça alguma que denunciasse o ocorrido. Ela era velha. Mas não velha o bastante para sobreviver ao estágio da mumificação perante os raios solares.
Sua alma de criança corrompida voou pra longe, ainda estava em busca do balão. Aquele balão vermelho tinha um significado oculto e ela não sabia qual era. Mas ela tinha que tê-lo em mãos, mesmo nas horas mais sombrias e confusas como aquela. Foi um erro deixá-lo voar para longe, apesar de ter sido um pedido do próprio.
O mar abraçou as cinzas em poucas horas e as engoliu. Todos os sinais daquela pequena e catastrófica existência foram apagados da terra. Melhor assim, pensou. Ela estava maluca. Estava a ponto de comer a si mesma. Era hora de seguir adiante. Pra onde? Só Deus sabe

Um comentário:

  1. Maravilhoso, nostálgico, especial como cada detalhe do nascer do sol. Cores esplêndidas minuciosamente delineadas em cada palavra, em cada gesto da menina. Obrigado por me dar essa leitura belíssima. A sua melhor crônica até agora.

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