Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

terça-feira, 10 de julho de 2012

Spectrum


Há algum tempo atrás, não muito, mas tampouco menos, existiu um mundo coberto por um manto de sombras. E embaixo de tal manto de sombras um tapete de neve infinito se estendia por sobre montanhas, planícies, cânions, escarpas, colinas, campos, pântanos e florestas de vidro puro e cristalino. Ventos fortes e gelados constantemente levantavam pesadas nuvens brancas com a facilidade de um sopro ao erguer plumas no ar, mas nada era visto por quaisquer que fossem os olhos, pois tudo estava encoberto em trevas puras e maciças.

Entre tais paisagens inóspitas, todo o tipo de criatura de sangue gelado se arrastava entre os rochedos pontiagudos e vales pedregosos, tão silenciosamente que era como se elas nem estivessem lá. Espíritos tristes e solitários que se alimentavam de tudo o que fosse capaz de produzir calor e luz própria, numa triste tentativa de tentar fazer o sangue congelado voltar a correr em suas veias empoeiradas.

E no centro deste mundo escuro e gelado encontrava-se um palácio, feito do mesmo vidro quebradiço das árvores mortas nos pântanos e vales, mas ninguém podia vê-lo, pois a escuridão era tanta que não se enxergava um palmo a um centímetro de distância do nariz. A ausência de luz era total, no céu e na terra, assim como atrás das paredes transparentes do palácio, entre seus labirintos de corredores e suas pesadas portas de cristal.


Dentro deste palácio morava uma deusa solitária, uma deusa silenciosa e sem nome. A si própria havia atribuído milhares de nomes em tantas línguas estrangeiras que já havia perdido a conta, nenhum deles havia vingado. Sentada em seu trono de vidro, a escuridão eterna que cobria o mundo desde o princípio dos tempos não lhe permitia ver nada além do negrume, do breu infinito e tenebroso onde as criaturas se arrastavam sem parar. Quando os fortes ventos e a neve constante cessavam, ela podia ouvi-las perfeitamente, lá fora. Podia sentir sua respiração leve, seus passos de inseto sobre a espessa camada de gelo sem fim. E ela os temia, ela os temia mais do que tudo, os temia até mais do que à escuridão eterna onde permanecia sentada, silenciosa a ruminar todo o tipo de pensamentos ruins e angustiantes que uma criatura pensante pudesse ter.

A dor era constante, mas a deusa não sabia de onde ela vinha e nem porque estava ali. Sempre estivera desde o princípio. Seria a solidão? Seria a escuridão? Seria o medo das coisas que se arrastavam do lado de lá dos muros titânicos do palácio? Ela não sabia dizer. Ela não podia dizer. Ela só podia fazer silêncio e permanecer sentada. Não havia para onde ir ou o que fazer, estava escuro demais para qualquer coisa. Sempre estivera.

Ah, mas se havia uma coisa que ela podia fazer era sentir. Sentia como ninguém, mas guardava todos os seus sentimentos para si por medo, medo de que eles produzissem calor e atraíssem as criaturas para dentro dos muros do palácio. Ela não poderia permitir que isso acontecesse, impotente que era, apenas sentava e esperava por algo. Algo que ela ainda não sabia o que era, mas que talvez um dia viesse enfim, e mudaria tudo para sempre.


Demorou muito tempo para que algo de realmente especial acontecesse, e quando aconteceu, aquele mundo gelado de eterna escuridão tremeu de uma ponta a outra. Os ventos que sopraram naquele dia varreram toda a neve da terra até a rocha, levantando-a em grandes tufos de nuvens de gelo que subiram aos céus escuros e engoliram o mundo inteiro durante horas intermináveis. Estes ventos foram poderosos o bastante para arrancar todas as árvores das suas raízes de vidro, levando-as ao chão onde se estilhaçaram e se desfizeram em milhares de pedaços minúsculos, pedaços estes que foram erguidos aos céus pelos ventos misturando-se às nuvens e ao gelo. As criaturas das sombras, cegas e surdas, apavoradas, cavaram tão fundo na rocha que desapareceram rumo ao infinito de pedras, usando suas garras afiadas como navalhas de diamante para abrirem fossos profundos onde se encolheram reclusas e humilhadas.

Então labaredas de fogo queimaram os sete horizontes, rasgando-os como espadas embebidas em magma incandescente, braços de luz maciça ondularam em direção aos céus, abraçando o mundo com violência num estupro à pureza das sombras que a partiu, liquefez e diluiu. Algo estava nascendo num rompante que foi acompanhado por uma explosão de cores, primeiro azul, depois violeta e então amarelo e vermelho e laranja e róseo. As estrelas que dormiam havia milênios despertaram, abrindo seus olhinhos brilhantes e piscando uma após a outra, pontilhando o céu de uma ponta a outra numa enxurrada de diamantes pulsantes e vigorosos. Por quanto tempo havíamos dormido, irmãs? Elas se perguntavam, e não havia resposta. A deusa silenciosa observava tudo de seu trono, imóvel e maravilhada com tamanho espetáculo, jamais pensara que algo tão bonito pudesse existir, palavras perdidas a éons como “esperança” passaram a fazer sentido no momento em que tentáculos de fogo puro romperam as cores vivas trazendo um deus.

A luz que tal divindade trouxe consigo foi tanta que pela primeira vez a deusa pode enxergar a si mesma como realmente era, e ela viu que não era só uma deusa como também era humana, e não só humana como também mulher, e não apenas mulher como também homem. As coisas nunca estiveram tão claras como naquele momento em que a luz atravessou as paredes transparentes do palácio, atingindo seu rosto e sua pele nua, desprotegida, expondo-a, revelando-a, descobrindo-a. Ela estava sendo violada, e aquilo não era tão ruim quanto pensava, muito pelo contrário, era tão bom de uma maneira que ela jamais poderia imaginar.
Uma cascata de sentimentos chovia e se espalhava através dos corredores solitários do palácio sob a forma de um brilho cálido e doce que se esticou e expandiu até atingir cada canto do reino. E de onde se estivesse, qualquer criatura vivente poderia vê-la em todo o seu esplendor a brilhar.

Era magnífico.

O deus luminoso que surgira no horizonte caminhou pacientemente até as muralhas do palácio, e com apenas um toque de seus viris dedos de fogo, cada uma das sete muralhas desfez-se sob seu imenso poder, e depois delas cada porta e cada parede foi abaixo ao longo da sua passagem. Na sala do trono a deusa o esperava, sentada, silenciosa como sempre, observadora, enormes olhos tão acostumados às trevas agora dilatados, ansiosos pelo que viria, e aquele deus que surgira no horizonte então aproximou-se e tomou-a nos braços, e lhe disse assim seu verdadeiro nome.


E ao dizer-lhe seu nome, o brilho de um embriagou ao outro, e juntos reluziram como só dois corpos celestes eram capazes. Suas labaredas alvas atingiram os minúsculos pedaços de vidro espalhados pelo céu e diluíram-se em bilhares de cores que atravessaram os cristais de gelo da neve erguida do solo e geraram matizes de cores resplandecentes que até o presente momento não existiam em nenhum dos mundos conhecidos.

E por um curto período de tempo aquele mundo de escuridão tornou-se um mundo de luz.

Tempo o suficiente para que a deusa se sentisse viva como nunca se sentira antes. Não havia mais silêncio ou escuro, tudo era luz, cor e som. Sons maravilhosos e incomparáveis ressoavam através dos sete horizontes.

Então isto é ser feliz? Perguntou-se a deusa no seu âmago em êxtase.

Aquele novo deus de luz a apertou forte contra seu corpo e juntos, os dois subiram rumo aos céus para conhecer de perto as estrelas, e elas eram tantas e tão engraçadas que pela primeira vez a deusa escutou o som da própria risada, para o deus aquele som era como música. Lá de cima  os dois puderam ver o mundo como um todo, a neve já havia coberto a rocha nua novamente com seu confortável manto branco, assim a deusa viu como o mundo no qual ela habitara fora tão lindo e branco esse tempo inteiro que passara envolto nas trevas. E ela sentiu-se orgulhosa por ter estado nele todo esse tempo, e amou cada pequeno cristal de gelo que cobria das montanhas aos pântanos. E daquele amor, compridas árvores pontiagudas de folhagem verde escura surgiram por todos os cantos do mundo, substituindo as árvores de vidro que haviam caído por terra e se desfeito. Agora havia vida ali.


A deusa estava satisfeita, e junto de seu novo deus de luz, regressou ao palácio de vidro com o coração em chamas consumido pela paixão. Paixão pela vida, paixão por si própria, paixão por seu deus e paixão por seu mundo. Ela enfim estava satisfeita. E teve vontade de abraçá-lo e amá-lo com todas as forças, mas seu deus luminoso não o permitiu.

Estava na hora de ele voltar, voltar ao horizonte.

A deusa ficou desolada, mas se a missão de seu deus luminoso era permanecer no horizonte para que seu fogo não derretesse todo o gelo que cobre o mundo, ela nada poderia fazer a respeito disso. Era a vontade dele e a natureza das coisas.

Ela o compreendeu e continuou o amando da mesma forma.

Assim, o deus do horizonte de fogo voltou ao seu posto nos limites do mundo, longe o bastante para que as trevas pudessem respirar um pouco sobre o manto branco, e as criaturas sombrias de sangue gelado rastejassem para fora das suas tocas nas rochas e se arrastassem por entre os vales mais sombrios e cânions mais profundos onde seus raios não os atingiam. A deusa estava triste pela distância, mas satisfeita, ele havia deixado um pouco de seu brilho com ela, de forma que ela pudesse iluminar o caminho dos perdidos quando os períodos mais escuros chegassem. Afinal, ele não pretendia ficar no horizonte o tempo inteiro. Ele era um deus jovem e viril, e ela apenas uma deusa antiga e silenciosa.

Mas ela estava satisfeita. Ele havia ensinado-a a acreditar, a sonhar, a brilhar. Ela estava satisfeita. E seria eternamente grata ao seu deus luminoso, ao seu sol e às suas estrelas.


FIM

3 comentários:

  1. As bonecas que vocês veem nas ilustrações são peças dos trabalhos artesanais de Marina Bychkova, google-it! ;)

    ResponderExcluir
  2. demoro pra produzir, mas quando produzo u___u arraso, modéstia à parte

    ResponderExcluir

E então? O que achou?