Há algum tempo atrás, não muito,
mas tampouco menos, existiu um mundo coberto por um manto de sombras. E embaixo
de tal manto de sombras um tapete de neve infinito se estendia por sobre
montanhas, planícies, cânions, escarpas, colinas, campos, pântanos e florestas
de vidro puro e cristalino. Ventos fortes e gelados constantemente levantavam
pesadas nuvens brancas com a facilidade de um sopro ao erguer plumas no ar, mas
nada era visto por quaisquer que fossem os olhos, pois tudo estava encoberto em
trevas puras e maciças.
Entre tais paisagens inóspitas,
todo o tipo de criatura de sangue gelado se arrastava entre os rochedos
pontiagudos e vales pedregosos, tão silenciosamente que era como se elas nem
estivessem lá. Espíritos tristes e solitários que se alimentavam de tudo o que
fosse capaz de produzir calor e luz própria, numa triste tentativa de tentar
fazer o sangue congelado voltar a correr em suas veias empoeiradas.
E no centro deste mundo escuro e
gelado encontrava-se um palácio, feito do mesmo vidro quebradiço das árvores
mortas nos pântanos e vales, mas ninguém podia vê-lo, pois a escuridão era
tanta que não se enxergava um palmo a um centímetro de distância do nariz. A
ausência de luz era total, no céu e na terra, assim como atrás das paredes
transparentes do palácio, entre seus labirintos de corredores e suas pesadas
portas de cristal.
Dentro deste palácio morava uma
deusa solitária, uma deusa silenciosa e sem nome. A si própria havia atribuído
milhares de nomes em tantas línguas estrangeiras que já havia perdido a conta,
nenhum deles havia vingado. Sentada em seu trono de vidro, a escuridão eterna
que cobria o mundo desde o princípio dos tempos não lhe permitia ver nada além
do negrume, do breu infinito e tenebroso onde as criaturas se arrastavam sem
parar. Quando os fortes ventos e a neve constante cessavam, ela podia ouvi-las
perfeitamente, lá fora. Podia sentir sua respiração leve, seus passos de inseto
sobre a espessa camada de gelo sem fim. E ela os temia, ela os temia mais do
que tudo, os temia até mais do que à escuridão eterna onde permanecia sentada,
silenciosa a ruminar todo o tipo de pensamentos ruins e angustiantes que uma criatura
pensante pudesse ter.
A dor era constante, mas a deusa
não sabia de onde ela vinha e nem porque estava ali. Sempre estivera desde o
princípio. Seria a solidão? Seria a escuridão? Seria o medo das coisas que se
arrastavam do lado de lá dos muros titânicos do palácio? Ela não sabia dizer.
Ela não podia dizer. Ela só podia fazer silêncio e permanecer sentada. Não
havia para onde ir ou o que fazer, estava escuro demais para qualquer coisa.
Sempre estivera.
Ah, mas se havia uma coisa que
ela podia fazer era sentir. Sentia como ninguém, mas guardava todos os seus
sentimentos para si por medo, medo de que eles produzissem calor e atraíssem as
criaturas para dentro dos muros do palácio. Ela não poderia permitir que isso
acontecesse, impotente que era, apenas sentava e esperava por algo. Algo que
ela ainda não sabia o que era, mas que talvez um dia viesse enfim, e mudaria
tudo para sempre.
Demorou muito tempo para que algo
de realmente especial acontecesse, e quando aconteceu, aquele mundo gelado de
eterna escuridão tremeu de uma ponta a outra. Os ventos que sopraram naquele
dia varreram toda a neve da terra até a rocha, levantando-a em grandes tufos de
nuvens de gelo que subiram aos céus escuros e engoliram o mundo inteiro durante
horas intermináveis. Estes ventos foram poderosos o bastante para arrancar
todas as árvores das suas raízes de vidro, levando-as ao chão onde se
estilhaçaram e se desfizeram em milhares de pedaços minúsculos, pedaços estes
que foram erguidos aos céus pelos ventos misturando-se às nuvens e ao gelo. As
criaturas das sombras, cegas e surdas, apavoradas, cavaram tão fundo na rocha
que desapareceram rumo ao infinito de pedras, usando suas garras afiadas como
navalhas de diamante para abrirem fossos profundos onde se encolheram reclusas
e humilhadas.
Então labaredas de fogo queimaram
os sete horizontes, rasgando-os como espadas embebidas em magma incandescente,
braços de luz maciça ondularam em direção aos céus, abraçando o mundo com
violência num estupro à pureza das sombras que a partiu, liquefez e diluiu. Algo
estava nascendo num rompante que foi acompanhado por uma explosão de cores,
primeiro azul, depois violeta e então amarelo e vermelho e laranja e róseo. As
estrelas que dormiam havia milênios despertaram, abrindo seus olhinhos brilhantes
e piscando uma após a outra, pontilhando o céu de uma ponta a outra numa
enxurrada de diamantes pulsantes e vigorosos. Por quanto tempo havíamos
dormido, irmãs? Elas se perguntavam, e não havia resposta. A deusa silenciosa
observava tudo de seu trono, imóvel e maravilhada com tamanho espetáculo,
jamais pensara que algo tão bonito pudesse existir, palavras perdidas a éons
como “esperança” passaram a fazer sentido no momento em que tentáculos de fogo
puro romperam as cores vivas trazendo um deus.
A luz que tal divindade trouxe
consigo foi tanta que pela primeira vez a deusa pode enxergar a si mesma como
realmente era, e ela viu que não era só uma deusa como também era humana, e não
só humana como também mulher, e não apenas mulher como também homem. As coisas
nunca estiveram tão claras como naquele momento em que a luz atravessou as
paredes transparentes do palácio, atingindo seu rosto e sua pele nua,
desprotegida, expondo-a, revelando-a, descobrindo-a. Ela estava sendo violada,
e aquilo não era tão ruim quanto pensava, muito pelo contrário, era tão bom de
uma maneira que ela jamais poderia imaginar.
Uma cascata de sentimentos chovia
e se espalhava através dos corredores solitários do palácio sob a forma de um
brilho cálido e doce que se esticou e expandiu até atingir cada canto do reino.
E de onde se estivesse, qualquer criatura vivente poderia vê-la em todo o seu
esplendor a brilhar.
Era magnífico.
O deus luminoso que surgira no
horizonte caminhou pacientemente até as muralhas do palácio, e com apenas um toque
de seus viris dedos de fogo, cada uma das sete muralhas desfez-se sob seu
imenso poder, e depois delas cada porta e cada parede foi abaixo ao longo da
sua passagem. Na sala do trono a deusa o esperava, sentada, silenciosa como
sempre, observadora, enormes olhos tão acostumados às trevas agora dilatados,
ansiosos pelo que viria, e aquele deus que surgira no horizonte então
aproximou-se e tomou-a nos braços, e lhe disse assim seu verdadeiro nome.
E ao dizer-lhe seu nome, o brilho
de um embriagou ao outro, e juntos reluziram como só dois corpos celestes eram
capazes. Suas labaredas alvas atingiram os minúsculos pedaços de vidro
espalhados pelo céu e diluíram-se em bilhares de cores que atravessaram os
cristais de gelo da neve erguida do solo e geraram matizes de cores
resplandecentes que até o presente momento não existiam em nenhum dos mundos
conhecidos.
E por um curto período de tempo
aquele mundo de escuridão tornou-se um mundo de luz.
Tempo o suficiente para que a
deusa se sentisse viva como nunca se sentira antes. Não havia mais silêncio ou
escuro, tudo era luz, cor e som. Sons maravilhosos e incomparáveis ressoavam
através dos sete horizontes.
Então isto é ser feliz?
Perguntou-se a deusa no seu âmago em êxtase.
Aquele novo deus de luz a apertou
forte contra seu corpo e juntos, os dois subiram rumo aos céus para conhecer de
perto as estrelas, e elas eram tantas e tão engraçadas que pela primeira vez a
deusa escutou o som da própria risada, para o deus aquele som era como música.
Lá de cima os dois puderam ver o mundo
como um todo, a neve já havia coberto a rocha nua novamente com seu confortável
manto branco, assim a deusa viu como o mundo no qual ela habitara fora tão
lindo e branco esse tempo inteiro que passara envolto nas trevas. E ela
sentiu-se orgulhosa por ter estado nele todo esse tempo, e amou cada pequeno
cristal de gelo que cobria das montanhas aos pântanos. E daquele amor,
compridas árvores pontiagudas de folhagem verde escura surgiram por todos os
cantos do mundo, substituindo as árvores de vidro que haviam caído por terra e
se desfeito. Agora havia vida ali.
A deusa estava satisfeita, e
junto de seu novo deus de luz, regressou ao palácio de vidro com o coração em
chamas consumido pela paixão. Paixão pela vida, paixão por si própria, paixão
por seu deus e paixão por seu mundo. Ela enfim estava satisfeita. E teve
vontade de abraçá-lo e amá-lo com todas as forças, mas seu deus luminoso não o
permitiu.
Estava na hora de ele voltar,
voltar ao horizonte.
A deusa ficou desolada, mas se a
missão de seu deus luminoso era permanecer no horizonte para que seu fogo não
derretesse todo o gelo que cobre o mundo, ela nada poderia fazer a respeito
disso. Era a vontade dele e a natureza das coisas.
Ela o compreendeu e continuou o
amando da mesma forma.
Assim, o deus do horizonte de
fogo voltou ao seu posto nos limites do mundo, longe o bastante para que as
trevas pudessem respirar um pouco sobre o manto branco, e as criaturas sombrias
de sangue gelado rastejassem para fora das suas tocas nas rochas e se arrastassem
por entre os vales mais sombrios e cânions mais profundos onde seus raios não
os atingiam. A deusa estava triste pela distância, mas satisfeita, ele havia
deixado um pouco de seu brilho com ela, de forma que ela pudesse iluminar o
caminho dos perdidos quando os períodos mais escuros chegassem. Afinal, ele não
pretendia ficar no horizonte o tempo inteiro. Ele era um deus jovem e viril, e
ela apenas uma deusa antiga e silenciosa.
Mas ela estava satisfeita. Ele
havia ensinado-a a acreditar, a sonhar, a brilhar. Ela estava satisfeita. E
seria eternamente grata ao seu deus luminoso, ao seu sol e às suas estrelas.
FIM
As bonecas que vocês veem nas ilustrações são peças dos trabalhos artesanais de Marina Bychkova, google-it! ;)
ResponderExcluirComo sempre, impecável e de alta qualidade descritiva <3
ResponderExcluirdemoro pra produzir, mas quando produzo u___u arraso, modéstia à parte
ResponderExcluir