Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

domingo, 1 de julho de 2012

PARTE DEZOITO: UNIVERSO PARALELO!


- E então? vão ficar aí nos olhando com essa cara de espanto? Vocês ouviram a Cvalda, não temos tempo a perder! – Mekare deu um passo à frente. Toda a poeira já havia baixado e os destroços do que um dia fora uma parede estavam espalhados por todo o lugar num mar de pedras e ferro retorcido. O Apocalipse Club já havia se recuperado do susto, aqueles que estavam desmaiados se punham de pé com dificuldade, os rostos tingidos de branco, mas não de medo: era reboco, e estava por toda a parte. Eles estavam cobertos de branco dos pés à cabeça, seus cabelos tinham quase a mesma tonalidade dos de Ray Ann agora.

- Como vocês pretendem nos tirar daqui? Como sabemos se podemos confiar em vocês? – Hikikomori tomou a frente, desconfiada, apreensiva, quase agressiva.

- Vocês vêem outra alternativa? – era a voz grossa de Cvalda, a enorme ciborgue que escoltava os dois pequenos gêmeos de porcelana que eram os anjoelos Mekare e Meroke como um guarda-costas. Ela estava grudada às costas deles, pronta para carregá-los em seus longos braços de metal se assim fosse preciso, assumir o controle, lutar numa batalha em nome daqueles dois. Ela era sua protetora, e a aura que ela criava ao redor dos pequenos era altamente perigosa e protetora, tão grande quanto a Sybila e tendo a maior parte do seu esqueleto de metal à mostra, envolvidos em cabos finos e grossos, ela inspirava ameaça para qualquer um que se declarasse seu inimigo.

- Não temos escolhas, Hiki – Christopher tocou o ombro da Sybila – temos que confiar neles.

A mulher alienígena apenas assentiu e deu um passo à frente, fazendo um leve sinal por cima do ombro, indicando a saída com a cabeça. Do lado de fora, havia um corredor branco e amplo redondo em forma de arco, suas paredes e teto côncavo faziam com que o som se propagasse de maneira extraordinária, de modo que a tropa de robôs sem rosto enviada para averiguar a invasão e deter os fugitivos parecia estar tão próxima que poderia fuzilá-los com seus potentes lasers a qualquer momento.

- Por aqui! – fez Mekare sorridente, indicando a direção oposta ao som dos pesados passos de metal pisoteando a passagem.

- Não se preocupem, nós recuperamos as suas armas hoje mais cedo, elas estão esperando por vocês no nosso depósito junto a tudo o que encontramos dentro da Eremita que pudesse ter algum valor sentimental humano – disse Meroke à Ray enquanto o grupo corria, costurando entre os corredores e câmaras infinitos de um labirinto branco sem saída. A garota olhava para ele encantada: era a perfeição em forma de máquina, assim como sua irmã que ia à frente guiando o grupo. Cvalda vinha logo atrás junto de Hikikomori fazendo a escolta.

- Vocês sabem onde está a nossa nave?! Sabem o que fizeram com ela? – perguntou Pietro enquanto dava olhadelas nervosas para trás, procurando sombras entre a bagunça de sons da aproximação dos soldados sem rosto. Filetes de suor já emolduravam seu rosto.

- Ela foi levada para uma das Oficinas do governo, vai ser restaurada para uso dos poderes superiores. Nossos aliados infiltrados no sistema conseguiram recuperar seus pertences, não se preocupem – Meroke sorriu, o que pareceu estranho em seu rosto que até então inspirava ser sério e fechado o tempo inteiro. O coração de Fábia que corria lado a lado à amiga palpitou com força, as maçãs do seu rosto encheram-se de sangue corando a níveis absurdos. Ela abaixou os olhos, envergonhada. Aquilo não era consequência do esforço pela corrida.

- Como ela sabe pra onde estamos indo?! – perguntou Augusta que esticava o braço em direção à Mekare. Esta ia à frente como uma bala, seus pés descalços massacrando o chão a cada forte pisada.

- Ela tem um mapa interno do prédio, não viríamos ao resgate de vocês sem nos preparar – explicou Meroke, agora também olhando para trás entre dúzias de passadas nervosas.

- ESTAMOS QUASE LÁ! – gritou a garota-robô à frente.

Não demorou muito para que o corredor desembocasse num enorme salão do tamanho de um campo de futebol, redondo e forrado por azulejos preto-e-branco perfeitamente polidos que refletiam o enorme lustre rococó pendurado no alto teto abobadado. Mais à frente havia uma escadaria enorme que levava à uma fachada grega perfeita como a entrada de um teatro oculta por cortinas de borracha negra que interligavam uma coluna à outra. Um feixe de luz escapava por entre as cortinas da passagem principal junto a uma corrente de ar gelado que os socou no rosto, fazendo as bochechas enrijecerem diante do frio.

- Mas o que é isso? A entrada pra alguma geladeira?! – exclamou uma revoltosa Augusta.

- Aquela é a nossa única saída – Meroke estancou e voltou-se na direção oposta com um giro mecânico, os outros o observaram confusos enquanto corriam em direção à saída. Cvalda havia feito o mesmo: parado no meio do caminho e se voltado para a passagem de onde eles haviam acabado de emergir. Mekare que já havia subido metade dos lances de escada saltou em direção ao ar para trás numa acrobacia perfeita, rodopiou até o lustre, usou-o para tomar impulso balançando-se e praticamente planou até o chão diante da porta do corredor, onde pousou leve como uma pluma. E então eles notaram: os braços da androide haviam se metamorfoseado em duas enormes metralhadoras giratórias, assim como os do seu irmão e os de Cvalda. Juntos, eram um trio mortal armado até os dentes.

Os disparos sonoros começaram a soar quando um mar de robôs sem rosto carregados de um pesado armamento laser jorrou do portal atirando em todas as direções. O grupo de humanos encabeçado pela Sybila já havia alcançado as escadas, mas foi forçado a se abaixar e arrastar-se escadaria acima devido ao intenso tiroteio. Um show de luzes e explosões se deu início, um tiro de laser passou raspando em Fábia e antigiu o chão bem ao lado do rosto da garota que respondeu ao susto com um grito, e então, ao alcançarem a saída e se porem de pé prontos para correr outra vez, o tiroteio cessou. Voltando-se na direção contrária, depararam-se com uma massa metálica espelhada e disforme que se revolvia de forma repugnante criando braços, pernas e cabeças que sumiam logo em seguida consumidas pela instabilidade da matéria.

- FUJAM! FUJAM! – berrava Mekare gesticulando em direção aos altos das escadarias. Ela, o irmão e Cvalda corriam o mais rápido que podiam, mas a massa de metal parecia estar se expandindo muito mais depressa do que eles poderiam fugir, os alcançaria muito rápido se algo não fosse feito imediatamente. A coisa os estava cercando pelos lados no enorme salão circular, assumindo o formato de meia-lua repleta de tentáculos pretendendo envolvê-los num abraço mortal do qual eles jamais se livrariam. Eles estavam completamente perdidos.

- Saiam da minha frente – Ray Ann cotovelou Pietro e empurrou Chris, abrindo passagem a passos firmes. Donnick tentou impedi-la, mas com um movimento rápido ela driblou-o e desceu as escadas correndo, praticamente saltando os degraus. O capitão tentou segui-la, impedi-la, mas foi pego pelo braço por Hikikomori antes que ele tentasse algo perigoso, ela sabia o que a garota estava planejando. Ao atingir uma distância segura entre seis companheiros e seu alvo, Ray abriu os braços, fechou os olhos e deu início ao plano que salvaria o trio encabeçado pela pequena Mekare. Ela jamais deixaria que seus salvadores morressem.

As lâmpadas do lustre estouraram uma a uma enquanto ela sugava a energia elétrica contida no ar com as partículas ativas de seu corpo, carregando sua bateria ao máximo. Seus cabelos brancos ondulavam nervosos ricocheteando em seu rosto por vezes enquanto pequenas correntes elétricas tornavam-se visíveis sobre a sua pele em forma de serpentes azuis que davam voltas e estalos ao redor dos seus membros. E então ela abriu os olhos, raios azuis poderosos lhe escaparam das pontas dos dedos como as patas de uma aranha gigante, dançaram entre si e formaram duas enormes correntes elétricas que atingiram a massa metálica em cheio, eletrocutando-a.

Cvalda meteu Mekare debaixo de um braço, Meroke debaixo do outro e saltou o mais alto que pode, para o topo da escadaria, antes que a tempestade elétrica os atingisse em cheio. O metal líquido lá embaixo fritava, a consciência demoníaca que o possuía guinchava de dor enquanto seus tentáculos recuavam e se compactavam até não haver nada senão um monte tostado de algo sem forma, sem vida e completamente arrasado, pequenas labaredas alaranjadas queimavam sobre a carcaça derrotada.

- O que... era aquilo? – Augusta estava em estado de choque, gelada, ela segurava firme na mão de Fábia que estava tão perplexa quanto ela. A massa eletrocutada de metal liquido estava se espalhando e endurecendo aos poucos do outro lado do salão, longe dos pés da longa escadaria. Não mais representava perigo.

- Ray! Ray! – Donnick saltava de três em três degraus, às vezes arriscava um quarto, tudo para ir em socorro da companheira que havia desmaiado após descarregar toda a energia elétrica que se hospedara em seu corpo. Ray Ann jazia tranquila esparramada na escadaria com um sorriso no rosto, como se estivesse tirando um doce cochilo após o almoço. Pietro e Christopher vinham logo atrás para prestar socorro, ajudá-lo a carregá-la, o que não foi necessário, pois ele sozinho conseguiu erguê-la e trazê-la degraus acima, para junto do grupo que se amontoava na saída.

- Vamos, temos de dar o fora daqui, mais deles virão a qualquer momento – fez Cvalda, cheia de preocupação enquanto colocava seus dois protegidos no chão outra vez.

- Robôs metamorfos... – chiou Hikikomori, como que para si mesma e ao mesmo tempo para todo o resto do grupo – do exército de Azura.

- Aquilo... – Fábia foi interrompida antes de começar a falar.

- Eles podem formar tanto uma unidade coletiva quanto um indivíduo separado. São como células de um organismo quando se unem. Ao serem atacados pelas metralhadoras, não viram outra opção se não abandonar o disfarce a assumir a forma de algo maior, mais ameaçador e eficaz – a Sybila relembrava de quando fora atacada no planeta artificial de Aib’Somar durante a primeira fuga, aquela que a tirou o título de Arquiduquesa para sempre. – se tem mais deles vindo por aí, já deveríamos estar longe há muito tempo...

- Por aqui! – Mekare afastava as pesadas cortinas de borracha entre a fachada grega teatral que adornava a saída. O lado de fora era uma incógnita a ser descoberta.

◊◊◊

- Não baixem a guarda, aqui fora é tão perigoso quanto o subterrâneo – foi a vez de Meroke tomar à frente da incursão de fuga. Além da passagem gelada eles encontraram outro extenso corredor que subia em declive em direção a uma passagem estreita, esta nada mais era do que uma portinhola embutida na parede do final de outro corredor, que levava ao interior do que parecia ser algum tipo de mansão ou hotel extremamente luxuoso. O chão era coberto por um refinado carpete de veludo vermelho, e nas paredes incumbidos da iluminação estavam doces baluartes em forma de botão de rosa disposto a uma distância razoável que tornava a luz amarelada cálida e ao mesmo tempo um tanto perigosa.

- Mas onde é que nós viemos parar? – indagou Augusta, percorrendo com a ponta do indicador os desenhos florais no papel de parede bordô. Todos já haviam atravessado a portinhola, de modo que repentinamente o corredor pareceu um tanto apertado.

- Esse lugar não parece nada alienígena – exclamou Donnick.

- Parece que voltamos à Terra outra vez – fez Pietro – alguma casa chique ou coisa parecida...

- Essa é a construção mais humana que já vimos desde que fomos sequestrados da Cosmogony – Ray também passeava com os dedos através dos desenhos nas paredes.

- Depois de encaixotados, colocados numa rinha de monstros, desbravado cavernas de cristal puro e passado uma temporada pra lá de estranha no fundo de um oceano extraterrestre, agora estamos numa mansão! Quanta esquisitice... Posso crer que talvez esteja sonhando... – Augusta quase foi deixada pra trás falando sozinha: o restante do grupo já ia muito à frente, dobrando a esquina de um corredor para o outro. Não fosse Cvalda cutucá-la no ombro, talvez só viesse perceber a solidão quando o enorme vulto da ciborgue estivesse distante.

Aqueles corredores luxuosos e repletos de quadros exibindo pitorescas telas de LED emolduradas por arabescos e folhagens douradas mostrando cenas onde robôs estavam inseridos em contexto artístico levaram-os diretamente para uma espécie de salão de entrada colossal retangular através de um elegante arco rococó. O lugar transpirava requinte e sofisticação.

- Isso está começando a ficar cada vez mais estranho... – resmungou Christopher admirando a escadaria dupla que levava ao segundo andar. Entre as duas escadas, portas brancas fechadas por um trinco de ferro. – esse lugar é humano demais... A cada segundo que passamos aqui eu sinto que... Eu sinto a mão humana, é como se eu pudesse ver pessoas passeando por aqui...

- Em outra época – Fábia admirava o lustre de cristal metros acima dela, boquiaberta, o olhar distante. – não era isso o que você ia dizer?

- Sim...

O grupo de humanos estava tão distraído envolvido na humanidade clássica contida na arquitetura daquele local que se abaixaram e gritaram quando Cvalda estourou a porta dupla entre as escadas com um tiro do canhão de laser no qual seu braço direito havia se transformado.

- MAS GENTE É O MEGAMAN! – berrou Fábia, animada, dando pulinhos. Todos os olhares se voltaram para ela, um tanto confusos, outros constrangidos, até os robôs a olharam esquisito. Ela abaixou os olhos rindo – desculpe, me empolguei – Pietro deu tapinhas nas suas costas.

Mas o que mais os surpreendeu realmente fora o que estava oculto pelas portas brancas seladas pela tranca eletrônica de ferro. Enquanto os destroços se espalhavam para todos os lados em lascas de algo que inegavelmente se assemelhava à madeira encontrada na Terra, seus olhos eram preenchidos pelo brilho e pelas formas que surgiam da escuridão onde picos redondos, quadrados e pontiagudos despontavam criando vida, constituindo a paisagem de uma megalópole cintilante que se moldava após um extenso terraço onde um jardim de plástico era cultivado na ilusão de natureza. Enormes arbustos floridos estavam divididos em grupos separados por um corredor de pedra ao ar livre ladeado por sebe perfeitamente podada, este levava a um apêndice, um heliporto onde uma aeronave incomum terminava seu pouso de emergência.

- VÃO, VÃO, VÃO! – berrou Cvalda indicando o caminho com movimentos violentos do braço esquerdo. Mekare e Meroke estavam cobrindo a retaguarda atirando contra o exército de robôs sem rosto que surgia descendo as escadas e eclodindo dos dois corredores paralelos que desembocavam em arcos no salão principal.

Foi questão de segundos para que o Apocalipse Club inteiro atravessasse o corredor ladeado por sebe de plástico e estivesse seguro no interior da nave. Cvalda foi a última a entrar, o veículo já havia se elevado alguns metros acima do chão quando ela lançou Mekare e Meroke para dentro usando apenas um braço enquanto o outro metralhava a multidão de soldados robóticos que surgia quebrando as vidraças das janelas da mansão que estavam deixando para trás.

- CVALDA! – berrou Mekare, estendendo o braço em direção à sua protetora. A distância era grande demais. Augusta deu um berro de susto quando o pulso da ciborgue deslocou com um estalo e sua mão de ferro voou em direção à Mekare na velocidade de um míssil. Esta a apanhou em um aperto de mão poderoso, uma corda de aço se estendia entre o pulso decepado e a nave agora, o que serviu de apoio para que Cvalda subisse a bordo. Foi como ver uma fita métrica ser recolhida.

Eles finalmente estavam fora de perigo.

E finalmente puderam ver onde estiveram presos esse tempo inteiro. O lugar era em base uma mansão construída em pedra no alto de um enorme edifício, tão pomposa e majestosa em sua arquitetura que poderia facilmente ser a morada de alguma família real. Esta destoava arrasadoramente da cidade futurista e utópica que a cercava com seus prédios moldados em formas esquizofrênicas e vertiginosas, o mundo que cercava a mansão de pedra no alto do edifício era o pesadelo dos arquitetos: era impossível que estruturas tão excêntricas e instáveis se mantivessem de pé daquela maneira, que tipo de tecnologia era usada para mantê-los seguros em suas bases? Eram verdadeiras peças de arte espalhadas aleatoriamente num mundo colorido de luzes e movimento: milhares de veículos de todas as formas e tamanhos transitavam entre eles freneticamente em uma velocidade absurda.

Os humanos em fuga mantinham seus rostos pressionados contra o vidro da nave em forma de bumerangue, observando o edifício se distanciar conforme eles se perdiam no tráfego do ir e vir de borrões velozes. A área circular e desabitada ao redor do prédio deveria ter quilômetros, e aparentemente as naves “civis” eram impedidas de adentrar em seu território aéreo, assim como o trânsito por terra naquela região era restrito a oficiais. A princípio os círculos no chão ao redor do prédio pareciam apenas desenhos, mas conforme a luz incidia sobre eles, os círculos escuros intercalando os brancos revelaram-se na verdade fossos profundos que eram transpostos por pontes levadiças que ficavam recolhidas na maior parte do tempo, até que um veículo terrestre oficial precisasse passar por ele.

- É... incrível... – balbuciou Pietro.

Hikikomori, Donnick e Christopher ainda velavam por Ray Ann, esperando seu despertar. Esta descansava como um anjo numa maca improvisada no interior da nave, que era grande o bastante para receber a todos, mas apertada o suficiente para que fosse difícil a locomoção ali dentro. De modo que eles simplesmente se acomodaram em silêncio em seus lugares e respiraram aliviados enquanto Cvalda pilotando costurava entre as construções em vias ilegais rumo ao esconderijo. Mas que esconderijo?

- Para onde estamos indo? – Augusta foi a única que teve coragem de erguer a voz naquele silêncio mortal. Até mesmo a firme Hikikomori parecia confusa e atordoada em meio àquela confusão.

- Para os Bunkers, lá ninguém jamais vai nos encontrar! – explicou uma sorridente Mekare que brincava com os cabelos orgânicos de Fábia. Humanos. Era incrível ver humanos de perto. Eles eram reais, eram macios, tinham sangue e órgãos de verdade, ela estava fascinada, mas preferia manter a discrição para que não houvesse mal entendidos. Foi o que Cvalda havia orientado.

Estes humanos ainda estavam muito desconfiados. Pelo menos era o que o banco de dados indicava: sobrancelhas unidas, músculos retesados, pulso acelerado. Estavam nervosos.

- Não precisam ter medo, nós vamos ajudá-los, nós precisamos ajudá-los. – disse Meroke ao levantar-se da poltrona de co-piloto. Esta se dobrou até desaparecer em um quadrado minúsculo. – não devemos estar muito longe dos Bunkers em algumas horas, o lugar é completamente seguro se soubermos onde ficar ou com quem falar. É lá que moram a maioria dos operários das fábricas e funilarias do Setor 13, são robôs programados para trabalhar, de modo que ignoram coisas fora do comum, tudo é comum para eles.

- Porque precisam nos ajudar? – indagou Augusta cruzando os braços – porque estão do nosso lado?

- É um pouco complicado – ele prosseguiu – há alguns séculos atrás, este planeta secou e morreu. Nós robôs já éramos grande parte da população neste período e já ocupávamos uma cota significativa das tarefas administrativas mundiais. Nós tentamos de tudo, mas aparentemente a atmosfera e o solo estavam tão envenenados pelos elementos nocivos aos quais foram expostos que não havia mais salvação. E então os humanos começaram a morrer.

- ESPERA UM MINUTINHO AÍ – Christopher pôs-se de pé num salto ao ouvir aquela afirmação perturbadora, os outros ainda estavam tentando processar o que estava acontecendo – HAVIA HUMANOS NESSE PLANETA?! COMO NÓS?!

- Sim, exatamente. – confirmou Meroke, sério como sempre. – e eles foram extintos pela falta de alimento e condições ambientais que permitissem uma vida longa e saudável. Doenças de pele e pulmonares foram frequentemente a causa das suas mortes. Por um período eles acreditaram que havia um vírus matando a população, mas não, eles estavam morrendo porque tudo estava envenenado, inclusive a comida feita em laboratório. A última humana morreu acreditando na hipótese do vírus. Ela foi nossa criadora, minha, de Mekare e de Cvalda.

Aquilo era perturbador demais.

- Em que planeta nós estamos? Como vocês chamam esse lugar?

Mekare e Meroke se entreolharam como se compartilhassem algum tipo de segredo. Mekare maneou a cabeça levemente, concedendo permissão para a informação que viria a ser despejada como a montanha de sucata que é jogada todos os dias nas funilarias.

- Os humanos que aqui viviam chamavam este lugar de Terra. Planeta Terra.
Silêncio.

- Ai meu Deus, AI MEU DEUS ME SEGURA, ME SEGURA – Augusta começou a passar mal. Christopher e Pietro correram em seu socorro. Ela se abanava com força enquanto forçava a respiração com dificuldade, seu cérebro dava voltas de 360º dentro do crânio. Fábia foi a primeira a cair dura pra trás, desmaiada, com um baque surdo no chão da nave.

- QUAL O ANO?! – exclamou Christopher, seu coração a mil – EM QUE ANO ESTAMOS?

A voz fúnebre de Cvalda calou a confusão como o sopro da morte da fim a uma festa.

- Três mil oitocentos e oitenta e oito.

- O quê? – Ray Ann estava despertando, grogue, a voz rouca. Seus cabelos brancos emaranhados numa nuvem disforme ao redor do rosto.

- Hoje é 18 de Janeiro de 3888.

◊◊◊

- É complicado – começou Hikikomori, categórica como sempre – podemos tanto ter viajado no tempo como simplesmente voltado para a Terra. Levando em conta que o tempo é relativo, e o tempo que passamos lá fora no espaço pode não ter sido o mesmo que se passou aqui na Terra. O que pensando por outro lado pode dar no mesmo... – ela estava se perdendo em pensamentos

- Você quer dizer que...

- Quero dizer que aquela quantidade de energia liberada durante a fuga pelo hiperespaço pode ter nos acelerado e nos jogado no futuro do planeta Terra, ou simplesmente nos mandado para cá no tempo correto. Sem transpor o tempo-espaço. Não sabemos exatamente quantos anos terrestres passamos lá fora, só temos estimativas feitas com base no calendário do aparelho de Augusta, o que não nos dá nada palpável. Tempo é muito relativo, não se esqueçam. Medir o tempo é invenção das civilizações. Lá fora o tempo literalmente não passa porque ele não existe.

- AI CHEGA! – bradou Augusta – isso vai fundir o meu cérebro! O que sei é que todos os meus parentes estão mortos e não existe mais... lar! – ela sentou-se e chorou, Fábia partiu para consolá-la.

- E nem chegamos perto de completar nossa missão...

Uma centelha percorreu seus corpos. Azura, o coração, a paz do universo. Tudo isso ainda estava em jogo e eles haviam se esquecido completamente do objetivo final. Devolver o coração de Azura e trazer paz ao universo... Mas agora que já não tinham um lar, que já não tinham família, que já não havia mais para onde ir, a paz universal ainda era tão importante assim? Desesperança, lágrimas, dor, medo, angústia. Rostos pálidos e apáticos agora se distribuíam nas sombras enquanto a nave e seu ronco leve do motor percorriam um túnel subterrâneo. Por vezes um farol colorido atrevido acabava por iluminar suas máscaras de desolação, violando o momento de dor, a intimidade dos seis humanos expatriados.

E agora? Valeria à pena lutar por um universo pacífico quando já não se tem um lar? Quando já não se tem família?

Um silêncio fúnebre pesou sobre eles feito rocha durante um longo tempo, tempo necessário para que a região dos Bunkers fosse atingida após mais um longo túnel escuro que atravessava a muralha de concreto do que antes fora a barragem de uma hidrelétrica. O lugar parecia mais um campo de concentração do que uma cidade. Quilômetros infinitos de contêineres enferrujados cobriam uma planície cercada de colinas por todos os lados, restos do que parecia ser um vale, o leito seco de um rio. Milhares deles jaziam empilhados uns sobre os outros como num depósito ao ar livre formando verdadeiros edifícios. Uns mais baixos, outros mais altos. E havia ruas, o espaço entre eles era como ruas aonde robôs iam e vinham sem parar, indo ou voltando do trabalho, entrando e saindo de casa. Sim, suas casas eram os contêineres, como mercadorias velhas esquecidas do mundo, ali eles jaziam num gueto robótico. Longe de tudo e de todos.

- Que lugar terrível... – cochichou Fábia, baixinho, mas não o suficiente, Meroke a ouviu e pôs-se próximo o bastante para que cochichassem juntos. Fábia corou com tal proximidade entre os dois. Ela estava ficando louca? Ele era uma máquina! Belo, porém ainda uma máquina!

- Foi o único lugar que o governo encontrou para a alocação de toda a classe baixa, os robôs operários. Não havia lugar para eles nos grandes centros urbanos do Setor 13... – disse.

- Pobrezinhos...

- Eles não têm sentimentos de qualquer forma, não se indignam ou reclamam, essa é a vida deles, eles são programados para isso. Quando os fiscais encontram algum robô desocupado, perdido e sem função logo os conduzem para um centro de re-programação. Lá toda a memória antiga é apagada e funções novas lhe são dadas.

- O governo escolhe no que eles vão trabalhar? – Ray repentinamente se viu interessada no assunto.

- Sim. E geralmente robôs mais rústicos como estes são colocados no trabalho braçal. A função deles é basicamente derreter, fundir e forjar metal. Outros trabalham em construções de edifícios, reparos de fiações, oficinas de veículos e coisas do gênero...

A nave aproximou-se de um campo aberto nas imediações da cidade de contêineres. Uma enorme nuvem de poeira ergueu-se do chão com a baixa altitude do veículo, e para espanto do grupo, o chão partiu-se em dois e abriu-se revelando uma espécie de galpão subterrâneo.

- Bem vindos ao nosso esconderijo! – saudou Mekare logo após o desembarque. Ali dentro era fresquinho e agradável, totalmente o contrário do que parecia ser o mundo barulhento e confuso lá fora. Ali embaixo, robôs aleatórios trabalhavam em qualquer coisa, projetos pessoais ou ordens de Cvalda. – Bom, acho que temos muito o que conversar não? – Mekare sorriu, simpática, voltando-se para os seus novos amigos humanos... E Sybila. Embora ela ainda não saiba o que aquela mulher de dois metros de altura seja, humana com certeza ela não era. – por aqui, por favor...

Eles a seguiram pela lateral do galpão costurando por entre caixotes de ferro até uma porta oculta. Ali dentro havia um laboratório tão humano quanto qualquer outro, amplo e confortável demais para um domínio robótico. Acomodaram-se então em poltronas e sofás cinzentos aconchegantes e uma espécie de reunião se deu início. Meroke sentou-se aos computadores e Cvalda retomou seus experimentos em cima da carcaça de um androide encontrada no lixo: ela estava tentando revivê-la não havia muito tempo.

- Então pelo que eu entendi, vocês foram enviados a uma missão no espaço em meados de 2099... E passaram todo este tempo lá em cima? – começou Mekare, juntando-se a Meroke nos computadores. – o que é estranho é que não há registro de nada parecido no ano informado... – ela e o irmão teclavam na velocidade da luz, revirando os arquivos mortos da história da humanidade.

- Tem de haver, nós fomos notícia no mundo inteiro! Fomos sorteados para terminar nosso curso de astrofísica no espaço! – exclamou Pietro tentando enxergar a tela do monitor.

- Realmente, nesse período as missões espaciais começaram, e 100 anos depois a colonização dos planetas do sistema solar se deu início. – Mekare exultou. Meroke havia encontrado alguma coisa.

- Aqui há registro do primeiro cruzeiro espacial, que foi mandado para uma experiência extra-solar tripulado. Perdeu contato com a Terra 20 anos depois... Parece familiar a vocês? – ele girou na cadeira para encará-los com seus profundos olhos azul-cinzentos. Aquele par de anjinhos combinava perfeitamente com a sala.

Metade do grupo se restringiu ao silêncio enquanto outra metade apenas negou com leves e depressivos movimentos da cabeça. Após alguns minutos, os dois androides voltaram-se para o grupo ao mesmo tempo.

- Seus nomes – disseram em uníssono.

E os nomes foram dados.

Para surpresa do grupo, não demorou para que fossem encontrados seus registros de nascimento... E surpreendentemente, os de óbito. O que deixou o Apocalipse Club mais intrigado ainda.

- Christopher Umbrella nascido em 1993, faleceu em 2050. – disse Mekare em sua voz eletrônica e infantil. A voz de uma boneca.

O Professor Umbrella pôs-se de pé indignado.

- COMO É QUE É?

- Vejam por si próprios – Meroke apertou um botão e um holograma se formou entre eles e os androides gêmeos a partir de um projetor no teto.

Ali estavam. Datas e falecimentos de todos. Naqueles registros, todos haviam nascido praticamente no mesmo ano, as datas de falecimento também não estavam muito distantes umas das outras. Eles estavam exultantes, embasbacados e sem reação. Aquilo era algum tipo de pesadelo?

- Temos fotos também, vocês eram o Apocalipse Club, uma liga importante de protetores de Neon City, vocês praticamente fundaram o lugar. – os traços faciais nas fotos eram os mesmos, mas cabelos, altura, corpos, roupas, tudo era tão diferente do que eles realmente eram. Quem eram aquelas pessoas e porque pareciam-se tanto com eles?

- Ué... – começou Donnick, confuso, cruzando os braços e levando a mão ao queixo – porque meu nome não tem data de óbito?

- EUREKA! – bradou Hikikomori espantando a todos. Ela era a única que permanecera sentada e calada o tempo inteiro. Pôs-se de pé num salto e começou a andar em círculos lançando as informações como dardos tranqüilizantes cuspidos de uma zarabatana – estamos em outra dimensão!

- Como é que é? – Ray fez uma careta.

- Outra dimensão! Universo paralelo, chamem do que preferirem, o que acontece é que estamos em outra realidade! – ela pegou Ray pelo ombro e despejou as informações nela como se a garota fosse a última pessoa viva na face da Terra, e que pudesse fugir a qualquer momento da grande verdade que precisava ser dita – eu como Sybila estou conectada ao meu universo, eu o sinto e é como se ele fosse parte de mim. Eu demorei um tempo para perceber porque minha convivência com vocês acabou me desconectando do meu eu interior, de modo que só agora percebi que não estou ligada a esse universo. Eu não faço parte desse lugar, e vocês também não! Estamos numa realidade alternativa!

- Interessante... – Mekare parecia muito curiosa quanto àquele assunto, tinha o queixo apoiado nas mãos.

- Explica isso direito, Hiki! – exclamou Fábia confusa com tanta informação sendo regurgitada tão rapidamente.

- Se lembram quando disse que cada criatura viva, cada ser pulsante, cada existência cria ondas na realidade como na superfície de um lago?

Alguns assentiram, outros fizeram caretas. Estavam espantados com a empolgação violenta da Sybila.

- Então! Nenhum de nós cria essas ondas aqui neste universo! Nós não pertencemos a este lugar! Temos de voltar ao universo original, ao nosso universo!

- Consegui! – exclamou Cvalda após um instante de silêncio. A carcaça enferrujada em cima da bancada estava se mexendo.

- Sau... da... ções... com... panhei... ros! – ele mexia os braços debilmente.

- Precisamos agir... E rápido!

Continua...

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