Era a manhã de mais um dia em Macapá que prometia ser infernal, como todas as outras. Pulei da cama e me vesti de imediato, era terça-feira mais uma vez. Ao irromper na tarde clara e ensolarada de céu limpo, após a aula, enviei o torpedo. Mamãe tinha de vir me buscar para o almoço, e em seguida eu teria de voltar para a aula das três horas, no contra turno. O dia guardava a mais mórbida e cruel de todas as surpresas, uma surpresa tão infernal quanto aquele dia de agosto, de asfalto quente e capim queimado à beira da rua. O cheiro da carne em conserva acebolada fez roncar meu estômago por alguns segundos até minha fome ser saciada, até aí, nada de anormal, a não ser um breve comentário sobre a gata desaparecida, que não aparecera para o café e muito menos para o almoço, horário em que ela costumava ficar mais agitada, rodopiando de rabo empinado pela cozinha, esgueirando-se para ver o que seria a refeição do dia.
Era comum ela sumir assim, antes de parir as crias, logo pela manhã até o final da mesma, pois ela procurava um lugar para ter os filhotes. Mamãe me alertara várias vezes para ir atrás de uma caixa onde pudéssemos colocar lençóis e jornais, viria aí mais uma barrigada de pequenos anjinhos peludos, mas eu, cheio de tarefas da escola e afazeres à parte acabei me esquecendo deste pequeno detalhe: Baby estava grávida.
A gravidez era estranha, sim, pois estava durando mais do que o normal, e ela parecia um pouco triste ultimamente, mas sem nunca perder a fome de leão que tinha. Me preocupava as crianças estarem mortas dentro de seu ventre, pois existem lendas que contam: trovões muito estridentes podem matar fetos de animais ainda na barriga, e eu fiquei um pouco preocupado com isso, por causa da tempestade de sexta passada, mas logo ignorei o mito.
Após o almoço, saí para procurá-la de onde ela sempre costumava rumar assim que ouvia o meu chamado ou o barulho do carro da mamãe chegando, a calçada do vizinho, onde em frente há um matagal queimado alto, açoitado sempre pelos ventos quentes, onde ela costumava brincar e caçar desde pequena, e onde ela levava sempre os filhotes para passear antes dos mesmos tomarem o seu próprio rumo na vida.
Então eu vi, e aquilo que eu vi fez meu estômago embrulhar. O sol, bola de fogo maligna e perversa rodopiava sobre a minha cabeça como um abutre dourado e agourento, seus raios incidiam sobre os pelos eriçados da pobre gatinha, minha querida princesa, meu anjinho, minha pedra preciosa, pedaço de mim, companheira fiel e ajudante na hora de vos escrever. Lá estava ela, estirada numa pequena clareira aberta por seu corpinho cheio de filhotes, mortos lá dentro também, uma cena cruel, perversa, nauseante de desesperadora. Meus pulmões hiperventilaram e eu rodopiei debaixo da estrela maldita, correndo sobre a calçada queimada em direção à minha casa. Já estava de saída, tudo estava fechado, e mamãe caminhava para a porta com as chaves na mão.
Dei a ela a notícia enquanto o ar me faltava ao lembrar do focinho macio da gata retorcido de dor. Deus sabe o que minha pequena estrela radiante passou antes de jazer morta ali naquele chão. Ninguém sabe até hoje exatamente o que aconteceu a ela, se foi dado à minha pequena algum tipo de veneno, se ela não agüentou uma gravidez atrás da outra, se os bebês estavam mortos na barriga dela, se algum carro a atingiu enquanto ela atravessava a rua, se ela invadiu a casa de alguém para ter os bebês por lá, e este cruel ser a expulsou de lá. Jogando-a no mato.
Tive de ir para aula assim mesmo, depois de carregá-la para o pátio e deixá-la ao lado da bica, esticada e dura como pedra, seus olhinhos azuis entreabertos, deitada na cartolina branca. Tive de encarar dois horários e as caras de meus melhores amigos, preocupados por não poderem fazer nada. “That I Would Be Good” ribombava na minha cabeça, na voz de Alanis Morrissete, como de costume. Voltei para casa assim que houve uma brecha, de ônibus, passando mal, e torcendo para que alguém tivesse se livrado do corpo, para que eu não pudesse vê-la mais daquele jeito, para que eu não acreditasse na sua morte, para que eu não tivesse de encarar a realidade mais uma vez. Mas não, lá estava ela, coberta por mais uma cartolina.
Fui incumbido da difícil tarefa de cavar um profundo buraco, ao fundo do quintal. “Cave bem fundo, bem fundo, o máximo de fundo”. E foi isso que fiz, debaixo das luzes do crepúsculo, em lágrimas dolorosas que ardiam sobre a minha face, pouco ligando se eu estava sem blusa ou não, se estava completamente sujo de terra. Cavei com rapidez e tristeza, usando uma ferramenta semelhante a um alicate gigante que encontrei pelo quintal. Iêda chegou da escola, e recebeu a notícia com tristeza e espanto, derramando lágrimas e mais lágrimas ao meu lado, sob os primeiros brilhos das estrelas da noite de verão.
Minha irmã virou o rosto no momento em que fiz o transporte de minha princesinha para o seu último leito. As nuvens passavam rápido, e o vento nos lambia cheio de dor. A noite já caía e o último dos últimos raios de sol dava o seu adeus. Ela se foi, carregando sua cria ainda no ventre, que aguardara tanto tempo para nascer, e nem chegara a conhecer o mundo, seus olhinhos jamais se abririam para ver o sol nascer outra vez, eles jamais encheriam seus pulmõezinhos de ar, jamais tomariam do saboroso leite materno e jamais correriam pelo mato ao lado da mãe amorosa.
Pequenos bebês, que jamais conhecerão nossos rostos.
Baby se foi.
E assim que coloquei o último punhado de terra sobre o túmulo improvisado com lajotas sobre o chão revirado, meus ouvidos jamais me enganariam, ouvi seu doce miado, que eu tão bem conhecia, agora abafado pela terra.
Criei-a dentro de casa, na soleira da porta do meu quarto, levando-a para dormir na minha cama nas noites mais solitárias, alimentando-a da comida de meu próprio prato. Só Deus sabe a dor que estou sentindo nesse momento, e eu jamais conseguiria transmiti-la através de qualquer narrativa estúpida como esta.
O que importa agora é que nós a amávamos. Eu, Mamãe e Iêda, choramos durante a noite toda.
A casa está vazia.
E a pequena dorme sob a terra com seus pequenos.
Minha vida agora é um vazio, minha companheira, meu braço direito, já não é mais, deixou de ser para se tornar. Se tornar parte da natureza, mas a outro modo.
Minhas tardes solitárias ao computador serão muito mais solitárias.
E quando mamãe e Iêda resolverem sair sem me levar, ou porque eu não quis ou porque não foi possível, eu estarei sozinho, sozinho.
Um vazio terrível me consome.
Falta um pedaço de mim.
E quer saber de uma coisa? Vocês nunca entenderiam.
Antonio Fernandes.
Era comum ela sumir assim, antes de parir as crias, logo pela manhã até o final da mesma, pois ela procurava um lugar para ter os filhotes. Mamãe me alertara várias vezes para ir atrás de uma caixa onde pudéssemos colocar lençóis e jornais, viria aí mais uma barrigada de pequenos anjinhos peludos, mas eu, cheio de tarefas da escola e afazeres à parte acabei me esquecendo deste pequeno detalhe: Baby estava grávida.
A gravidez era estranha, sim, pois estava durando mais do que o normal, e ela parecia um pouco triste ultimamente, mas sem nunca perder a fome de leão que tinha. Me preocupava as crianças estarem mortas dentro de seu ventre, pois existem lendas que contam: trovões muito estridentes podem matar fetos de animais ainda na barriga, e eu fiquei um pouco preocupado com isso, por causa da tempestade de sexta passada, mas logo ignorei o mito.
Após o almoço, saí para procurá-la de onde ela sempre costumava rumar assim que ouvia o meu chamado ou o barulho do carro da mamãe chegando, a calçada do vizinho, onde em frente há um matagal queimado alto, açoitado sempre pelos ventos quentes, onde ela costumava brincar e caçar desde pequena, e onde ela levava sempre os filhotes para passear antes dos mesmos tomarem o seu próprio rumo na vida.
Então eu vi, e aquilo que eu vi fez meu estômago embrulhar. O sol, bola de fogo maligna e perversa rodopiava sobre a minha cabeça como um abutre dourado e agourento, seus raios incidiam sobre os pelos eriçados da pobre gatinha, minha querida princesa, meu anjinho, minha pedra preciosa, pedaço de mim, companheira fiel e ajudante na hora de vos escrever. Lá estava ela, estirada numa pequena clareira aberta por seu corpinho cheio de filhotes, mortos lá dentro também, uma cena cruel, perversa, nauseante de desesperadora. Meus pulmões hiperventilaram e eu rodopiei debaixo da estrela maldita, correndo sobre a calçada queimada em direção à minha casa. Já estava de saída, tudo estava fechado, e mamãe caminhava para a porta com as chaves na mão.
Dei a ela a notícia enquanto o ar me faltava ao lembrar do focinho macio da gata retorcido de dor. Deus sabe o que minha pequena estrela radiante passou antes de jazer morta ali naquele chão. Ninguém sabe até hoje exatamente o que aconteceu a ela, se foi dado à minha pequena algum tipo de veneno, se ela não agüentou uma gravidez atrás da outra, se os bebês estavam mortos na barriga dela, se algum carro a atingiu enquanto ela atravessava a rua, se ela invadiu a casa de alguém para ter os bebês por lá, e este cruel ser a expulsou de lá. Jogando-a no mato.
Tive de ir para aula assim mesmo, depois de carregá-la para o pátio e deixá-la ao lado da bica, esticada e dura como pedra, seus olhinhos azuis entreabertos, deitada na cartolina branca. Tive de encarar dois horários e as caras de meus melhores amigos, preocupados por não poderem fazer nada. “That I Would Be Good” ribombava na minha cabeça, na voz de Alanis Morrissete, como de costume. Voltei para casa assim que houve uma brecha, de ônibus, passando mal, e torcendo para que alguém tivesse se livrado do corpo, para que eu não pudesse vê-la mais daquele jeito, para que eu não acreditasse na sua morte, para que eu não tivesse de encarar a realidade mais uma vez. Mas não, lá estava ela, coberta por mais uma cartolina.
Fui incumbido da difícil tarefa de cavar um profundo buraco, ao fundo do quintal. “Cave bem fundo, bem fundo, o máximo de fundo”. E foi isso que fiz, debaixo das luzes do crepúsculo, em lágrimas dolorosas que ardiam sobre a minha face, pouco ligando se eu estava sem blusa ou não, se estava completamente sujo de terra. Cavei com rapidez e tristeza, usando uma ferramenta semelhante a um alicate gigante que encontrei pelo quintal. Iêda chegou da escola, e recebeu a notícia com tristeza e espanto, derramando lágrimas e mais lágrimas ao meu lado, sob os primeiros brilhos das estrelas da noite de verão.
Minha irmã virou o rosto no momento em que fiz o transporte de minha princesinha para o seu último leito. As nuvens passavam rápido, e o vento nos lambia cheio de dor. A noite já caía e o último dos últimos raios de sol dava o seu adeus. Ela se foi, carregando sua cria ainda no ventre, que aguardara tanto tempo para nascer, e nem chegara a conhecer o mundo, seus olhinhos jamais se abririam para ver o sol nascer outra vez, eles jamais encheriam seus pulmõezinhos de ar, jamais tomariam do saboroso leite materno e jamais correriam pelo mato ao lado da mãe amorosa.
Pequenos bebês, que jamais conhecerão nossos rostos.
Baby se foi.
E assim que coloquei o último punhado de terra sobre o túmulo improvisado com lajotas sobre o chão revirado, meus ouvidos jamais me enganariam, ouvi seu doce miado, que eu tão bem conhecia, agora abafado pela terra.
Criei-a dentro de casa, na soleira da porta do meu quarto, levando-a para dormir na minha cama nas noites mais solitárias, alimentando-a da comida de meu próprio prato. Só Deus sabe a dor que estou sentindo nesse momento, e eu jamais conseguiria transmiti-la através de qualquer narrativa estúpida como esta.
O que importa agora é que nós a amávamos. Eu, Mamãe e Iêda, choramos durante a noite toda.
A casa está vazia.
E a pequena dorme sob a terra com seus pequenos.
Minha vida agora é um vazio, minha companheira, meu braço direito, já não é mais, deixou de ser para se tornar. Se tornar parte da natureza, mas a outro modo.
Minhas tardes solitárias ao computador serão muito mais solitárias.
E quando mamãe e Iêda resolverem sair sem me levar, ou porque eu não quis ou porque não foi possível, eu estarei sozinho, sozinho.
Um vazio terrível me consome.
Falta um pedaço de mim.
E quer saber de uma coisa? Vocês nunca entenderiam.
Antonio Fernandes.
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