Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Por Quê Não Acredito em Céu e Inferno



Antes de dar início a esse texto eu passei os quarenta minutos inteiros do meu banho pensando se deveria ou não começá-lo. Uma vez que a primeira linha é escrita não se pode voltar atrás, você deve ir até o final custe o que custar, mesmo que demore alguns anos para que a ideia atinja a forma exata de perfeição que foi vislumbrada no momento em que a concebeu. Mas o que vem por aí é muito mais do que uma ideia, é algo muito pessoal, particular e profundo, algo que por algum motivo ainda não explicado, decidi compartilhar com vocês, aqueles que têm paciência e mente aberta (e disposição) para encarar textos grandes e opiniões um tanto... Fora do convencional.

Por isso devo avisá-lo, leitor: se você não possui a mente aberta o suficiente para filosofias um tanto contrárias e ainda em fase de transformação, fundamentação e solidificação, NÃO SIGA ADIANTE. Feche a janela e vá ler alguma coisa mais simples e agradável, porque o que será dito aqui pode desagradar muitos fundamentalistas, pessoas de mente fechada e... religiosos em geral. Mas entendam desde já que não pretendo montar algo revolucionário ou contaminar as pessoas com a minha opinião e fazê-las engolir aquilo que penso, meu objetivo é apenas compartilhar, fazer os “aprendizes” como eu, pensarem um pouco no mundo que os rodeia.

Acontece que hoje, mais cedo, fui abordado por uma pessoa que me fez pensar. E eu adoro pessoas que me fazem pensar, elas me questionam e pressionam suas adagas furiosas contra a garganta do meu consciente de modo a incentivá-lo a sobreviver, a lutar para manter-se em constante evolução, crescimento e amadurecimento. Faz algum tempo que deixei de seguir valores e conduta cristãos, deixei de acreditar em santos e em uma única força toda poderosa, em um livro onde toda a verdade da vida está escrito e em coisas do tipo. Decidi iniciar uma jornada em busca de algo que não encontrei em nenhuma das religiões que cruzaram meu caminho, algo que nem eu sei explicar (devido ainda estar em busca disso), e essa jornada me levou à vertentes de pensamento que eu jamais imaginaria atingir seguindo quaisquer dos dogmas e “leis” das religiões que encontrei no caminho. O que mais se “aproxima” do que creio hoje em dia é o paganismo em geral, as religiões antigas, dos primeiros homens.

“Se você não acredita em Céu e Inferno, pra onde você acha que a gente vai quando morre, pro digimundo?” ele me perguntou. E eu lhe disse que aquilo que não vejo e não sinto não faz sentido pra mim. Ele me aconselhou a ter filhos e eu fiquei me perguntando o que isso queria dizer, até que me fez o favor de explicar que só assim eu poderia compreender a existência de um Deus.

OH, WAIT.

Eu não havia dito em nenhum momento que não acreditava em um deus. Só disse não crer no conceito de um Céu/Inferno, ou seja, ele tomou a crença num ser superior resumida por crer em seguir caminho para planos diferentes após a morte, o que são duas coisas totalmente diferentes. Aí então fiz questão de dizer que não acredito em deus da mesma forma que ele, mas acredito em uma força superior. Ou melhor dizendo, em forças. Não obtive respostas a partir de então, fui então ao banho e me pus a pensar. Pensar em coisas que eu já não pensava havia algum tempo.

Ora, o conceito de Céu e Inferno existe porque os humanos criaram a ideia de “Bem” e “Mal”, ideia que já abandonei tem aproximadamente três anos. Se você fizer o Bem e somente o Bem, seguir todas as regras e ser obediente, terá seu lugar reservado no Paraíso. Mas se você praticar o mal, estará imediatamente sujeito às torturas medievais brutais do Inferno, com direito a lagos de fogo, desertos escaldantes e coisas do gênero.

Mas aí é que está o problema: não há pessoas completamente boas ou completamente más. Todos têm a sua parcela de Bem e Mal feita ao longo dos anos. Mas a crença comum diz que àqueles que praticaram o Mal e se virem arrependidos, há uma chance de voltar atrás e ser perdoado. Mas perdoado exatamente do quê se não o Mal propriamente dito não existe? Vejam um exemplo básico de como isso funciona:

Uma mulher mata seu marido.

Segundo a crença comum, é pecado matar, mas ela se viu sem saída após sofrer de violência doméstica durante um período tortuoso de tempo. Para o marido e a família do marido a mulher é uma assassina, ela fez o Mal a ele, ela o matou, logo merece punição. Mas se você olhar pelo lado dela, vai ver que ela fez um Bem a si mesma e ao mundo tirando de circulação o crápula. Não é certo matar, em hipótese alguma, mas aquilo foi necessário no momento para que quem acabasse num caixão não fosse a própria.

Outro exemplo comum e bem mais simples:

Duas garotas num colégio são amigas e convivem bem, com um pequeno “porém”: as duas gostam do mesmo rapaz. A primeira consegue a atenção do seu objeto de desejo e uma relação começa a ser construída, a segunda observa tudo aquilo calada, mas indignada. Supomos aqui que ela conhecia o rapaz primeiro, supomos aqui que ele seja seu amigo de infância e ela já fosse apaixonada por ele há algum tempo. Supomos aqui então que “no papo” ela consiga levá-lo até onde o necessita e algo concreto acontece entre eles, como um beijo ou uma sessão de sexo, tanto faz. Ela alcançou seu objetivo! Ela está feliz! Mas e a outra amiga? E quando ela descobrir? Será que ela vai achar que a outra tinha mais direitos que ela só porque conhecia o rapaz antes? Será que ela achará justo?

Você consegue enxergar o que eu enxergo? É tudo muito relativo. O Bem para você pode ser o meu Mal e vice-versa. Por egoísmo ou não, por justiça ou não, há sempre dois lados de uma mesma moeda, duas vertentes de um rio, duas páginas completamente diferentes de uma mesma história. Se você pensar com clareza e procurar mais exemplos parecidos com estes vai ver o que eu consigo enxergar. Ninguém é “Bom” ou “Mal” por completo, há pessoas e conflitos de interesse, e os meios pelos quais atingir estes objetivos finais.

Logo não há necessidade de um Céu ou de um Inferno, aonde as pessoas vão para receber a Graça Eterna por terem sido “completamente bons” a vida inteira ou receber a Danação Eterna por não terem abdicado dos seus objetivos e terem feito de tudo para alcançá-los, mesmo que aos olhos dos outro os meios pareçam errados e sujos. Mas quem define o que é errado e sujo? Onde isso surgiu e por que surgiu? Há quem diga que fazer o Bem é se sacrificar. É por em jogo tudo aquilo que lhe importa e abdicar de tudo isso pelo Bem do próximo. Sim, de certo modo a sensação de levantar da primeira cadeira do ônibus para uma senhora de idade sentar-se é realmente gratificante, mas isso vai realmente garantir seu lugar no Céu se ontem mesmo você estava numa festa bebendo tudo o que podia e beijando milhares de bocas desconhecidas ou falando mal de alguém há alguns minutos atrás com a sua amiga na parada de ônibus?

Não há porque se arrepender, não há porque se condenar. Tudo é muito natural, as coisas simplesmente acontecem da maneira que devem acontecer e nada nem ninguém é capaz de interferir no curso da história. Se você fez o “Mal” um dia, pode crer que aquilo foi necessário para ensinar alguém a aprender uma lição da vida ou você mesmo a se tornar uma pessoa diferente. O “Bem” e o “Mal” são necessários para que possamos definir uma criatura como humana, porque esses conceitos são RESTRITAMENTE humanos.

Ou você acha que um leão na África sente dó da gazela que está abatendo? Aquilo foi necessário para suprir a necessidade dele e da família dele. A gazela com certeza deixou para trás uma vida inteira de possibilidades e ensinou as outras a ouvirem e verem melhor de modo a evitar que mortes como aquela aconteçam outra vez. O que geraria o mal da família de leões: se todas as gazelas começassem a ficar espertas demais simplesmente não haveria alimento!

Aí você me diz que eles são apenas animais e não possuem “discernimento”.

Ora, você também é um animal. Você é feito de carne, ossos e órgãos e veias e sangue assim como eles, o que difere vocês é o tamanho do cérebro feito para pensar e medir consequências. Um cérebro que vai lhe ajudar a perceber que o “Bem” e o “Mal” são necessários para fazer o mundo humano girar e se manter em constante movimento.

Bom, e é por essas e outras que não, eu não acredito em Céu e Inferno. Pra onde irei quando eu morrer então? Bom, deixem que a hora chegue para que eu possa ver de perto o que há do outro lado, – porque algo deve haver, isso é elementar – é claro que eu não vou poder logar no blogger e postar “HEEEEY PESSOAL, CHEGUEI DO OUTRO LADO, E VOCÊS NÃO VÃO ACREDITAR!”, o que é uma lástima. O que há de vir, virá, e eu não temerei.

Posso não acreditar no deus à maneira cristã. Mas acredito em forças, forças antigas, forças que já tiveram muitos nomes, outras que permaneceram no anonimato. Existem forças olhando por nós, várias que unidas formam uma só. Nada é por acaso, há um motivo pra tudo e eu acredito nisso!

Esse blog não tem como objetivo começar uma revolução espiritual ou lavagem cerebral, longe disso. Lembrem-se que eu sou só um rapaz de 19 anos em constante evolução e descoberta, e essa é só mais uma página do meu ensaio sobre as descobertas que faço ao filosofar enquanto tomo banho, e esta aqui é apenas uma página da minha mutante opinião a respeito do mundo que me rodeia.

Antonio Fernandes

=^.~=

domingo, 22 de julho de 2012

Cale a Boca e Escute: KIMBRA



Já tem um tempinho considerável desde o último "Cale a Boca e Escute", mas isto aconteceu porque já faz algum tempo que eu não topo com alguém tão talentosa e inebriante quanto a Kimbra. A garota chegou tímida fazendo parcerias com Miami Horror e Gotye, nomes já um pouquinho conhecidos no universo da música alternativa. Sempre estava topando com ela por aqui e ali, mas nunca havia dado a devida atenção. Acabei me arrependendo! Em 2012 esta é a minha segunda mais brilhante descoberta!


Kimbra é uma neo-zelandesa de 21 anos, atualmente morando em Melbourne (Austrália). Desde pequena demonstrava seus talentos musicais na escola e fazia várias apresentações na mesma. Sua primeira apresentação de impacto foi ao cantar o Hino Nacional da NZ em um jogo de rugby na frente de 27 mil pessoas, aos 10 anos de idade.

Logo após o colegial, aos 17 anos, Kimbra - que já trabalhava com música - ganhou o prêmio TV Juice Vídeo de artista revelação pelo single Simply on My Lips, chamando assim a atenção de presidentes de gravadoras e assinando então com o selo independente Fórum 5 na Austrália. 


Settle Down, o primeiro single da cantora pelo selo independente, foi lançado em 2010. Com boas críticas com relação ao seu trabalho, Kimbra foi comparada com Florence & The Machine, Nina Simone e Björk. Além das comparações, seu vídeo virou um hit virtual sendo publicado em vários blogs famosos como o do blogueiro de celebridades Perez Hilton.

Em 2011 a cantora assinou com a Warner Bros, sendo seu trabalho seguinte, “Vows”, agora distribuído a nível mundial. O disco resultou em um sucesso total, com suas músicas tocando em vários comerciais e ganhando o prêmio Platinum 6x na Austrália por mais de 420.000 cópias vendidas.

O sucesso não parou com este. Logo em seguida veio o “Cameo Lover”, que vocês conferem letra e video super animado e colorido logo abaixo :3 espero que gostem.

This is nonstop baby
You've got me going crazy
You're heavier than i knew
But i dont want no other
You're my cameo love
Only here for a moment or two
You stay inside that bubble
With all of your trouble
In your black hole
You turn from the skies
You dance with your demise
I'll be here when you come home

We've all gotta break down
Let me come and break down with you

Cos everydays like talking in ur sleep!
Love is like a silhoeutte in dreams!
Open up your heart!
Open up your heart!
Open up your heart and let me pull you out of here!

Cos everydays like talking in ur sleep!
Love is like a silhoeutte in dreams!
Open up your heart!
Open up your heart!
Open up your heart and let me pull you out of here!

I've got high hopes baby
But all you do is take me down to depths that i never knew
You've got two arms baby
They're all tangled in ladies of the black skies posing blue
Let go of your mother
And turn to your brother!
Not a long gone lovers noose
Sometimes baby the hardest part of breaking is leaving pieces behind you

We've all gotta get by
Let me come and hold you high, with you

Cos everydays like talking in ur sleep!
Love is like a silhoeutte in dreams!
Open up your heart!
Open up your heart!
Open up your heart and let me pull you out of here!

Cos everydays like talking in ur sleep!
Love is like a silhoeutte in dreams!
Open up your heart!
Open up your heart!
Open up your heart and let me pull you out of here!

Open up your heart to me!
The sun won't shine if you're not looking
Baby love is all that you need

Cos everydays like talking in ur sleep!
Love is like a silhoeutte in dreams!
Open up your heart!
Open...
Open (open)...

Cos everydays like talking in ur sleep!
Love is like a silhoeutte in dreams!
Open up your heart!
Open up your heart!
Open up your heart and let me pull you out of here!



Confiram o álbum dela, Vows, é incrível. Destaque para: Old Flame e Good Intent s2

terça-feira, 10 de julho de 2012

Spectrum


Há algum tempo atrás, não muito, mas tampouco menos, existiu um mundo coberto por um manto de sombras. E embaixo de tal manto de sombras um tapete de neve infinito se estendia por sobre montanhas, planícies, cânions, escarpas, colinas, campos, pântanos e florestas de vidro puro e cristalino. Ventos fortes e gelados constantemente levantavam pesadas nuvens brancas com a facilidade de um sopro ao erguer plumas no ar, mas nada era visto por quaisquer que fossem os olhos, pois tudo estava encoberto em trevas puras e maciças.

Entre tais paisagens inóspitas, todo o tipo de criatura de sangue gelado se arrastava entre os rochedos pontiagudos e vales pedregosos, tão silenciosamente que era como se elas nem estivessem lá. Espíritos tristes e solitários que se alimentavam de tudo o que fosse capaz de produzir calor e luz própria, numa triste tentativa de tentar fazer o sangue congelado voltar a correr em suas veias empoeiradas.

E no centro deste mundo escuro e gelado encontrava-se um palácio, feito do mesmo vidro quebradiço das árvores mortas nos pântanos e vales, mas ninguém podia vê-lo, pois a escuridão era tanta que não se enxergava um palmo a um centímetro de distância do nariz. A ausência de luz era total, no céu e na terra, assim como atrás das paredes transparentes do palácio, entre seus labirintos de corredores e suas pesadas portas de cristal.


Dentro deste palácio morava uma deusa solitária, uma deusa silenciosa e sem nome. A si própria havia atribuído milhares de nomes em tantas línguas estrangeiras que já havia perdido a conta, nenhum deles havia vingado. Sentada em seu trono de vidro, a escuridão eterna que cobria o mundo desde o princípio dos tempos não lhe permitia ver nada além do negrume, do breu infinito e tenebroso onde as criaturas se arrastavam sem parar. Quando os fortes ventos e a neve constante cessavam, ela podia ouvi-las perfeitamente, lá fora. Podia sentir sua respiração leve, seus passos de inseto sobre a espessa camada de gelo sem fim. E ela os temia, ela os temia mais do que tudo, os temia até mais do que à escuridão eterna onde permanecia sentada, silenciosa a ruminar todo o tipo de pensamentos ruins e angustiantes que uma criatura pensante pudesse ter.

A dor era constante, mas a deusa não sabia de onde ela vinha e nem porque estava ali. Sempre estivera desde o princípio. Seria a solidão? Seria a escuridão? Seria o medo das coisas que se arrastavam do lado de lá dos muros titânicos do palácio? Ela não sabia dizer. Ela não podia dizer. Ela só podia fazer silêncio e permanecer sentada. Não havia para onde ir ou o que fazer, estava escuro demais para qualquer coisa. Sempre estivera.

Ah, mas se havia uma coisa que ela podia fazer era sentir. Sentia como ninguém, mas guardava todos os seus sentimentos para si por medo, medo de que eles produzissem calor e atraíssem as criaturas para dentro dos muros do palácio. Ela não poderia permitir que isso acontecesse, impotente que era, apenas sentava e esperava por algo. Algo que ela ainda não sabia o que era, mas que talvez um dia viesse enfim, e mudaria tudo para sempre.


Demorou muito tempo para que algo de realmente especial acontecesse, e quando aconteceu, aquele mundo gelado de eterna escuridão tremeu de uma ponta a outra. Os ventos que sopraram naquele dia varreram toda a neve da terra até a rocha, levantando-a em grandes tufos de nuvens de gelo que subiram aos céus escuros e engoliram o mundo inteiro durante horas intermináveis. Estes ventos foram poderosos o bastante para arrancar todas as árvores das suas raízes de vidro, levando-as ao chão onde se estilhaçaram e se desfizeram em milhares de pedaços minúsculos, pedaços estes que foram erguidos aos céus pelos ventos misturando-se às nuvens e ao gelo. As criaturas das sombras, cegas e surdas, apavoradas, cavaram tão fundo na rocha que desapareceram rumo ao infinito de pedras, usando suas garras afiadas como navalhas de diamante para abrirem fossos profundos onde se encolheram reclusas e humilhadas.

Então labaredas de fogo queimaram os sete horizontes, rasgando-os como espadas embebidas em magma incandescente, braços de luz maciça ondularam em direção aos céus, abraçando o mundo com violência num estupro à pureza das sombras que a partiu, liquefez e diluiu. Algo estava nascendo num rompante que foi acompanhado por uma explosão de cores, primeiro azul, depois violeta e então amarelo e vermelho e laranja e róseo. As estrelas que dormiam havia milênios despertaram, abrindo seus olhinhos brilhantes e piscando uma após a outra, pontilhando o céu de uma ponta a outra numa enxurrada de diamantes pulsantes e vigorosos. Por quanto tempo havíamos dormido, irmãs? Elas se perguntavam, e não havia resposta. A deusa silenciosa observava tudo de seu trono, imóvel e maravilhada com tamanho espetáculo, jamais pensara que algo tão bonito pudesse existir, palavras perdidas a éons como “esperança” passaram a fazer sentido no momento em que tentáculos de fogo puro romperam as cores vivas trazendo um deus.

A luz que tal divindade trouxe consigo foi tanta que pela primeira vez a deusa pode enxergar a si mesma como realmente era, e ela viu que não era só uma deusa como também era humana, e não só humana como também mulher, e não apenas mulher como também homem. As coisas nunca estiveram tão claras como naquele momento em que a luz atravessou as paredes transparentes do palácio, atingindo seu rosto e sua pele nua, desprotegida, expondo-a, revelando-a, descobrindo-a. Ela estava sendo violada, e aquilo não era tão ruim quanto pensava, muito pelo contrário, era tão bom de uma maneira que ela jamais poderia imaginar.
Uma cascata de sentimentos chovia e se espalhava através dos corredores solitários do palácio sob a forma de um brilho cálido e doce que se esticou e expandiu até atingir cada canto do reino. E de onde se estivesse, qualquer criatura vivente poderia vê-la em todo o seu esplendor a brilhar.

Era magnífico.

O deus luminoso que surgira no horizonte caminhou pacientemente até as muralhas do palácio, e com apenas um toque de seus viris dedos de fogo, cada uma das sete muralhas desfez-se sob seu imenso poder, e depois delas cada porta e cada parede foi abaixo ao longo da sua passagem. Na sala do trono a deusa o esperava, sentada, silenciosa como sempre, observadora, enormes olhos tão acostumados às trevas agora dilatados, ansiosos pelo que viria, e aquele deus que surgira no horizonte então aproximou-se e tomou-a nos braços, e lhe disse assim seu verdadeiro nome.


E ao dizer-lhe seu nome, o brilho de um embriagou ao outro, e juntos reluziram como só dois corpos celestes eram capazes. Suas labaredas alvas atingiram os minúsculos pedaços de vidro espalhados pelo céu e diluíram-se em bilhares de cores que atravessaram os cristais de gelo da neve erguida do solo e geraram matizes de cores resplandecentes que até o presente momento não existiam em nenhum dos mundos conhecidos.

E por um curto período de tempo aquele mundo de escuridão tornou-se um mundo de luz.

Tempo o suficiente para que a deusa se sentisse viva como nunca se sentira antes. Não havia mais silêncio ou escuro, tudo era luz, cor e som. Sons maravilhosos e incomparáveis ressoavam através dos sete horizontes.

Então isto é ser feliz? Perguntou-se a deusa no seu âmago em êxtase.

Aquele novo deus de luz a apertou forte contra seu corpo e juntos, os dois subiram rumo aos céus para conhecer de perto as estrelas, e elas eram tantas e tão engraçadas que pela primeira vez a deusa escutou o som da própria risada, para o deus aquele som era como música. Lá de cima  os dois puderam ver o mundo como um todo, a neve já havia coberto a rocha nua novamente com seu confortável manto branco, assim a deusa viu como o mundo no qual ela habitara fora tão lindo e branco esse tempo inteiro que passara envolto nas trevas. E ela sentiu-se orgulhosa por ter estado nele todo esse tempo, e amou cada pequeno cristal de gelo que cobria das montanhas aos pântanos. E daquele amor, compridas árvores pontiagudas de folhagem verde escura surgiram por todos os cantos do mundo, substituindo as árvores de vidro que haviam caído por terra e se desfeito. Agora havia vida ali.


A deusa estava satisfeita, e junto de seu novo deus de luz, regressou ao palácio de vidro com o coração em chamas consumido pela paixão. Paixão pela vida, paixão por si própria, paixão por seu deus e paixão por seu mundo. Ela enfim estava satisfeita. E teve vontade de abraçá-lo e amá-lo com todas as forças, mas seu deus luminoso não o permitiu.

Estava na hora de ele voltar, voltar ao horizonte.

A deusa ficou desolada, mas se a missão de seu deus luminoso era permanecer no horizonte para que seu fogo não derretesse todo o gelo que cobre o mundo, ela nada poderia fazer a respeito disso. Era a vontade dele e a natureza das coisas.

Ela o compreendeu e continuou o amando da mesma forma.

Assim, o deus do horizonte de fogo voltou ao seu posto nos limites do mundo, longe o bastante para que as trevas pudessem respirar um pouco sobre o manto branco, e as criaturas sombrias de sangue gelado rastejassem para fora das suas tocas nas rochas e se arrastassem por entre os vales mais sombrios e cânions mais profundos onde seus raios não os atingiam. A deusa estava triste pela distância, mas satisfeita, ele havia deixado um pouco de seu brilho com ela, de forma que ela pudesse iluminar o caminho dos perdidos quando os períodos mais escuros chegassem. Afinal, ele não pretendia ficar no horizonte o tempo inteiro. Ele era um deus jovem e viril, e ela apenas uma deusa antiga e silenciosa.

Mas ela estava satisfeita. Ele havia ensinado-a a acreditar, a sonhar, a brilhar. Ela estava satisfeita. E seria eternamente grata ao seu deus luminoso, ao seu sol e às suas estrelas.


FIM

domingo, 1 de julho de 2012

PARTE DEZOITO: UNIVERSO PARALELO!


- E então? vão ficar aí nos olhando com essa cara de espanto? Vocês ouviram a Cvalda, não temos tempo a perder! – Mekare deu um passo à frente. Toda a poeira já havia baixado e os destroços do que um dia fora uma parede estavam espalhados por todo o lugar num mar de pedras e ferro retorcido. O Apocalipse Club já havia se recuperado do susto, aqueles que estavam desmaiados se punham de pé com dificuldade, os rostos tingidos de branco, mas não de medo: era reboco, e estava por toda a parte. Eles estavam cobertos de branco dos pés à cabeça, seus cabelos tinham quase a mesma tonalidade dos de Ray Ann agora.

- Como vocês pretendem nos tirar daqui? Como sabemos se podemos confiar em vocês? – Hikikomori tomou a frente, desconfiada, apreensiva, quase agressiva.

- Vocês vêem outra alternativa? – era a voz grossa de Cvalda, a enorme ciborgue que escoltava os dois pequenos gêmeos de porcelana que eram os anjoelos Mekare e Meroke como um guarda-costas. Ela estava grudada às costas deles, pronta para carregá-los em seus longos braços de metal se assim fosse preciso, assumir o controle, lutar numa batalha em nome daqueles dois. Ela era sua protetora, e a aura que ela criava ao redor dos pequenos era altamente perigosa e protetora, tão grande quanto a Sybila e tendo a maior parte do seu esqueleto de metal à mostra, envolvidos em cabos finos e grossos, ela inspirava ameaça para qualquer um que se declarasse seu inimigo.

- Não temos escolhas, Hiki – Christopher tocou o ombro da Sybila – temos que confiar neles.

A mulher alienígena apenas assentiu e deu um passo à frente, fazendo um leve sinal por cima do ombro, indicando a saída com a cabeça. Do lado de fora, havia um corredor branco e amplo redondo em forma de arco, suas paredes e teto côncavo faziam com que o som se propagasse de maneira extraordinária, de modo que a tropa de robôs sem rosto enviada para averiguar a invasão e deter os fugitivos parecia estar tão próxima que poderia fuzilá-los com seus potentes lasers a qualquer momento.

- Por aqui! – fez Mekare sorridente, indicando a direção oposta ao som dos pesados passos de metal pisoteando a passagem.

- Não se preocupem, nós recuperamos as suas armas hoje mais cedo, elas estão esperando por vocês no nosso depósito junto a tudo o que encontramos dentro da Eremita que pudesse ter algum valor sentimental humano – disse Meroke à Ray enquanto o grupo corria, costurando entre os corredores e câmaras infinitos de um labirinto branco sem saída. A garota olhava para ele encantada: era a perfeição em forma de máquina, assim como sua irmã que ia à frente guiando o grupo. Cvalda vinha logo atrás junto de Hikikomori fazendo a escolta.

- Vocês sabem onde está a nossa nave?! Sabem o que fizeram com ela? – perguntou Pietro enquanto dava olhadelas nervosas para trás, procurando sombras entre a bagunça de sons da aproximação dos soldados sem rosto. Filetes de suor já emolduravam seu rosto.

- Ela foi levada para uma das Oficinas do governo, vai ser restaurada para uso dos poderes superiores. Nossos aliados infiltrados no sistema conseguiram recuperar seus pertences, não se preocupem – Meroke sorriu, o que pareceu estranho em seu rosto que até então inspirava ser sério e fechado o tempo inteiro. O coração de Fábia que corria lado a lado à amiga palpitou com força, as maçãs do seu rosto encheram-se de sangue corando a níveis absurdos. Ela abaixou os olhos, envergonhada. Aquilo não era consequência do esforço pela corrida.

- Como ela sabe pra onde estamos indo?! – perguntou Augusta que esticava o braço em direção à Mekare. Esta ia à frente como uma bala, seus pés descalços massacrando o chão a cada forte pisada.

- Ela tem um mapa interno do prédio, não viríamos ao resgate de vocês sem nos preparar – explicou Meroke, agora também olhando para trás entre dúzias de passadas nervosas.

- ESTAMOS QUASE LÁ! – gritou a garota-robô à frente.

Não demorou muito para que o corredor desembocasse num enorme salão do tamanho de um campo de futebol, redondo e forrado por azulejos preto-e-branco perfeitamente polidos que refletiam o enorme lustre rococó pendurado no alto teto abobadado. Mais à frente havia uma escadaria enorme que levava à uma fachada grega perfeita como a entrada de um teatro oculta por cortinas de borracha negra que interligavam uma coluna à outra. Um feixe de luz escapava por entre as cortinas da passagem principal junto a uma corrente de ar gelado que os socou no rosto, fazendo as bochechas enrijecerem diante do frio.

- Mas o que é isso? A entrada pra alguma geladeira?! – exclamou uma revoltosa Augusta.

- Aquela é a nossa única saída – Meroke estancou e voltou-se na direção oposta com um giro mecânico, os outros o observaram confusos enquanto corriam em direção à saída. Cvalda havia feito o mesmo: parado no meio do caminho e se voltado para a passagem de onde eles haviam acabado de emergir. Mekare que já havia subido metade dos lances de escada saltou em direção ao ar para trás numa acrobacia perfeita, rodopiou até o lustre, usou-o para tomar impulso balançando-se e praticamente planou até o chão diante da porta do corredor, onde pousou leve como uma pluma. E então eles notaram: os braços da androide haviam se metamorfoseado em duas enormes metralhadoras giratórias, assim como os do seu irmão e os de Cvalda. Juntos, eram um trio mortal armado até os dentes.

Os disparos sonoros começaram a soar quando um mar de robôs sem rosto carregados de um pesado armamento laser jorrou do portal atirando em todas as direções. O grupo de humanos encabeçado pela Sybila já havia alcançado as escadas, mas foi forçado a se abaixar e arrastar-se escadaria acima devido ao intenso tiroteio. Um show de luzes e explosões se deu início, um tiro de laser passou raspando em Fábia e antigiu o chão bem ao lado do rosto da garota que respondeu ao susto com um grito, e então, ao alcançarem a saída e se porem de pé prontos para correr outra vez, o tiroteio cessou. Voltando-se na direção contrária, depararam-se com uma massa metálica espelhada e disforme que se revolvia de forma repugnante criando braços, pernas e cabeças que sumiam logo em seguida consumidas pela instabilidade da matéria.

- FUJAM! FUJAM! – berrava Mekare gesticulando em direção aos altos das escadarias. Ela, o irmão e Cvalda corriam o mais rápido que podiam, mas a massa de metal parecia estar se expandindo muito mais depressa do que eles poderiam fugir, os alcançaria muito rápido se algo não fosse feito imediatamente. A coisa os estava cercando pelos lados no enorme salão circular, assumindo o formato de meia-lua repleta de tentáculos pretendendo envolvê-los num abraço mortal do qual eles jamais se livrariam. Eles estavam completamente perdidos.

- Saiam da minha frente – Ray Ann cotovelou Pietro e empurrou Chris, abrindo passagem a passos firmes. Donnick tentou impedi-la, mas com um movimento rápido ela driblou-o e desceu as escadas correndo, praticamente saltando os degraus. O capitão tentou segui-la, impedi-la, mas foi pego pelo braço por Hikikomori antes que ele tentasse algo perigoso, ela sabia o que a garota estava planejando. Ao atingir uma distância segura entre seis companheiros e seu alvo, Ray abriu os braços, fechou os olhos e deu início ao plano que salvaria o trio encabeçado pela pequena Mekare. Ela jamais deixaria que seus salvadores morressem.

As lâmpadas do lustre estouraram uma a uma enquanto ela sugava a energia elétrica contida no ar com as partículas ativas de seu corpo, carregando sua bateria ao máximo. Seus cabelos brancos ondulavam nervosos ricocheteando em seu rosto por vezes enquanto pequenas correntes elétricas tornavam-se visíveis sobre a sua pele em forma de serpentes azuis que davam voltas e estalos ao redor dos seus membros. E então ela abriu os olhos, raios azuis poderosos lhe escaparam das pontas dos dedos como as patas de uma aranha gigante, dançaram entre si e formaram duas enormes correntes elétricas que atingiram a massa metálica em cheio, eletrocutando-a.

Cvalda meteu Mekare debaixo de um braço, Meroke debaixo do outro e saltou o mais alto que pode, para o topo da escadaria, antes que a tempestade elétrica os atingisse em cheio. O metal líquido lá embaixo fritava, a consciência demoníaca que o possuía guinchava de dor enquanto seus tentáculos recuavam e se compactavam até não haver nada senão um monte tostado de algo sem forma, sem vida e completamente arrasado, pequenas labaredas alaranjadas queimavam sobre a carcaça derrotada.

- O que... era aquilo? – Augusta estava em estado de choque, gelada, ela segurava firme na mão de Fábia que estava tão perplexa quanto ela. A massa eletrocutada de metal liquido estava se espalhando e endurecendo aos poucos do outro lado do salão, longe dos pés da longa escadaria. Não mais representava perigo.

- Ray! Ray! – Donnick saltava de três em três degraus, às vezes arriscava um quarto, tudo para ir em socorro da companheira que havia desmaiado após descarregar toda a energia elétrica que se hospedara em seu corpo. Ray Ann jazia tranquila esparramada na escadaria com um sorriso no rosto, como se estivesse tirando um doce cochilo após o almoço. Pietro e Christopher vinham logo atrás para prestar socorro, ajudá-lo a carregá-la, o que não foi necessário, pois ele sozinho conseguiu erguê-la e trazê-la degraus acima, para junto do grupo que se amontoava na saída.

- Vamos, temos de dar o fora daqui, mais deles virão a qualquer momento – fez Cvalda, cheia de preocupação enquanto colocava seus dois protegidos no chão outra vez.

- Robôs metamorfos... – chiou Hikikomori, como que para si mesma e ao mesmo tempo para todo o resto do grupo – do exército de Azura.

- Aquilo... – Fábia foi interrompida antes de começar a falar.

- Eles podem formar tanto uma unidade coletiva quanto um indivíduo separado. São como células de um organismo quando se unem. Ao serem atacados pelas metralhadoras, não viram outra opção se não abandonar o disfarce a assumir a forma de algo maior, mais ameaçador e eficaz – a Sybila relembrava de quando fora atacada no planeta artificial de Aib’Somar durante a primeira fuga, aquela que a tirou o título de Arquiduquesa para sempre. – se tem mais deles vindo por aí, já deveríamos estar longe há muito tempo...

- Por aqui! – Mekare afastava as pesadas cortinas de borracha entre a fachada grega teatral que adornava a saída. O lado de fora era uma incógnita a ser descoberta.

◊◊◊

- Não baixem a guarda, aqui fora é tão perigoso quanto o subterrâneo – foi a vez de Meroke tomar à frente da incursão de fuga. Além da passagem gelada eles encontraram outro extenso corredor que subia em declive em direção a uma passagem estreita, esta nada mais era do que uma portinhola embutida na parede do final de outro corredor, que levava ao interior do que parecia ser algum tipo de mansão ou hotel extremamente luxuoso. O chão era coberto por um refinado carpete de veludo vermelho, e nas paredes incumbidos da iluminação estavam doces baluartes em forma de botão de rosa disposto a uma distância razoável que tornava a luz amarelada cálida e ao mesmo tempo um tanto perigosa.

- Mas onde é que nós viemos parar? – indagou Augusta, percorrendo com a ponta do indicador os desenhos florais no papel de parede bordô. Todos já haviam atravessado a portinhola, de modo que repentinamente o corredor pareceu um tanto apertado.

- Esse lugar não parece nada alienígena – exclamou Donnick.

- Parece que voltamos à Terra outra vez – fez Pietro – alguma casa chique ou coisa parecida...

- Essa é a construção mais humana que já vimos desde que fomos sequestrados da Cosmogony – Ray também passeava com os dedos através dos desenhos nas paredes.

- Depois de encaixotados, colocados numa rinha de monstros, desbravado cavernas de cristal puro e passado uma temporada pra lá de estranha no fundo de um oceano extraterrestre, agora estamos numa mansão! Quanta esquisitice... Posso crer que talvez esteja sonhando... – Augusta quase foi deixada pra trás falando sozinha: o restante do grupo já ia muito à frente, dobrando a esquina de um corredor para o outro. Não fosse Cvalda cutucá-la no ombro, talvez só viesse perceber a solidão quando o enorme vulto da ciborgue estivesse distante.

Aqueles corredores luxuosos e repletos de quadros exibindo pitorescas telas de LED emolduradas por arabescos e folhagens douradas mostrando cenas onde robôs estavam inseridos em contexto artístico levaram-os diretamente para uma espécie de salão de entrada colossal retangular através de um elegante arco rococó. O lugar transpirava requinte e sofisticação.

- Isso está começando a ficar cada vez mais estranho... – resmungou Christopher admirando a escadaria dupla que levava ao segundo andar. Entre as duas escadas, portas brancas fechadas por um trinco de ferro. – esse lugar é humano demais... A cada segundo que passamos aqui eu sinto que... Eu sinto a mão humana, é como se eu pudesse ver pessoas passeando por aqui...

- Em outra época – Fábia admirava o lustre de cristal metros acima dela, boquiaberta, o olhar distante. – não era isso o que você ia dizer?

- Sim...

O grupo de humanos estava tão distraído envolvido na humanidade clássica contida na arquitetura daquele local que se abaixaram e gritaram quando Cvalda estourou a porta dupla entre as escadas com um tiro do canhão de laser no qual seu braço direito havia se transformado.

- MAS GENTE É O MEGAMAN! – berrou Fábia, animada, dando pulinhos. Todos os olhares se voltaram para ela, um tanto confusos, outros constrangidos, até os robôs a olharam esquisito. Ela abaixou os olhos rindo – desculpe, me empolguei – Pietro deu tapinhas nas suas costas.

Mas o que mais os surpreendeu realmente fora o que estava oculto pelas portas brancas seladas pela tranca eletrônica de ferro. Enquanto os destroços se espalhavam para todos os lados em lascas de algo que inegavelmente se assemelhava à madeira encontrada na Terra, seus olhos eram preenchidos pelo brilho e pelas formas que surgiam da escuridão onde picos redondos, quadrados e pontiagudos despontavam criando vida, constituindo a paisagem de uma megalópole cintilante que se moldava após um extenso terraço onde um jardim de plástico era cultivado na ilusão de natureza. Enormes arbustos floridos estavam divididos em grupos separados por um corredor de pedra ao ar livre ladeado por sebe perfeitamente podada, este levava a um apêndice, um heliporto onde uma aeronave incomum terminava seu pouso de emergência.

- VÃO, VÃO, VÃO! – berrou Cvalda indicando o caminho com movimentos violentos do braço esquerdo. Mekare e Meroke estavam cobrindo a retaguarda atirando contra o exército de robôs sem rosto que surgia descendo as escadas e eclodindo dos dois corredores paralelos que desembocavam em arcos no salão principal.

Foi questão de segundos para que o Apocalipse Club inteiro atravessasse o corredor ladeado por sebe de plástico e estivesse seguro no interior da nave. Cvalda foi a última a entrar, o veículo já havia se elevado alguns metros acima do chão quando ela lançou Mekare e Meroke para dentro usando apenas um braço enquanto o outro metralhava a multidão de soldados robóticos que surgia quebrando as vidraças das janelas da mansão que estavam deixando para trás.

- CVALDA! – berrou Mekare, estendendo o braço em direção à sua protetora. A distância era grande demais. Augusta deu um berro de susto quando o pulso da ciborgue deslocou com um estalo e sua mão de ferro voou em direção à Mekare na velocidade de um míssil. Esta a apanhou em um aperto de mão poderoso, uma corda de aço se estendia entre o pulso decepado e a nave agora, o que serviu de apoio para que Cvalda subisse a bordo. Foi como ver uma fita métrica ser recolhida.

Eles finalmente estavam fora de perigo.

E finalmente puderam ver onde estiveram presos esse tempo inteiro. O lugar era em base uma mansão construída em pedra no alto de um enorme edifício, tão pomposa e majestosa em sua arquitetura que poderia facilmente ser a morada de alguma família real. Esta destoava arrasadoramente da cidade futurista e utópica que a cercava com seus prédios moldados em formas esquizofrênicas e vertiginosas, o mundo que cercava a mansão de pedra no alto do edifício era o pesadelo dos arquitetos: era impossível que estruturas tão excêntricas e instáveis se mantivessem de pé daquela maneira, que tipo de tecnologia era usada para mantê-los seguros em suas bases? Eram verdadeiras peças de arte espalhadas aleatoriamente num mundo colorido de luzes e movimento: milhares de veículos de todas as formas e tamanhos transitavam entre eles freneticamente em uma velocidade absurda.

Os humanos em fuga mantinham seus rostos pressionados contra o vidro da nave em forma de bumerangue, observando o edifício se distanciar conforme eles se perdiam no tráfego do ir e vir de borrões velozes. A área circular e desabitada ao redor do prédio deveria ter quilômetros, e aparentemente as naves “civis” eram impedidas de adentrar em seu território aéreo, assim como o trânsito por terra naquela região era restrito a oficiais. A princípio os círculos no chão ao redor do prédio pareciam apenas desenhos, mas conforme a luz incidia sobre eles, os círculos escuros intercalando os brancos revelaram-se na verdade fossos profundos que eram transpostos por pontes levadiças que ficavam recolhidas na maior parte do tempo, até que um veículo terrestre oficial precisasse passar por ele.

- É... incrível... – balbuciou Pietro.

Hikikomori, Donnick e Christopher ainda velavam por Ray Ann, esperando seu despertar. Esta descansava como um anjo numa maca improvisada no interior da nave, que era grande o bastante para receber a todos, mas apertada o suficiente para que fosse difícil a locomoção ali dentro. De modo que eles simplesmente se acomodaram em silêncio em seus lugares e respiraram aliviados enquanto Cvalda pilotando costurava entre as construções em vias ilegais rumo ao esconderijo. Mas que esconderijo?

- Para onde estamos indo? – Augusta foi a única que teve coragem de erguer a voz naquele silêncio mortal. Até mesmo a firme Hikikomori parecia confusa e atordoada em meio àquela confusão.

- Para os Bunkers, lá ninguém jamais vai nos encontrar! – explicou uma sorridente Mekare que brincava com os cabelos orgânicos de Fábia. Humanos. Era incrível ver humanos de perto. Eles eram reais, eram macios, tinham sangue e órgãos de verdade, ela estava fascinada, mas preferia manter a discrição para que não houvesse mal entendidos. Foi o que Cvalda havia orientado.

Estes humanos ainda estavam muito desconfiados. Pelo menos era o que o banco de dados indicava: sobrancelhas unidas, músculos retesados, pulso acelerado. Estavam nervosos.

- Não precisam ter medo, nós vamos ajudá-los, nós precisamos ajudá-los. – disse Meroke ao levantar-se da poltrona de co-piloto. Esta se dobrou até desaparecer em um quadrado minúsculo. – não devemos estar muito longe dos Bunkers em algumas horas, o lugar é completamente seguro se soubermos onde ficar ou com quem falar. É lá que moram a maioria dos operários das fábricas e funilarias do Setor 13, são robôs programados para trabalhar, de modo que ignoram coisas fora do comum, tudo é comum para eles.

- Porque precisam nos ajudar? – indagou Augusta cruzando os braços – porque estão do nosso lado?

- É um pouco complicado – ele prosseguiu – há alguns séculos atrás, este planeta secou e morreu. Nós robôs já éramos grande parte da população neste período e já ocupávamos uma cota significativa das tarefas administrativas mundiais. Nós tentamos de tudo, mas aparentemente a atmosfera e o solo estavam tão envenenados pelos elementos nocivos aos quais foram expostos que não havia mais salvação. E então os humanos começaram a morrer.

- ESPERA UM MINUTINHO AÍ – Christopher pôs-se de pé num salto ao ouvir aquela afirmação perturbadora, os outros ainda estavam tentando processar o que estava acontecendo – HAVIA HUMANOS NESSE PLANETA?! COMO NÓS?!

- Sim, exatamente. – confirmou Meroke, sério como sempre. – e eles foram extintos pela falta de alimento e condições ambientais que permitissem uma vida longa e saudável. Doenças de pele e pulmonares foram frequentemente a causa das suas mortes. Por um período eles acreditaram que havia um vírus matando a população, mas não, eles estavam morrendo porque tudo estava envenenado, inclusive a comida feita em laboratório. A última humana morreu acreditando na hipótese do vírus. Ela foi nossa criadora, minha, de Mekare e de Cvalda.

Aquilo era perturbador demais.

- Em que planeta nós estamos? Como vocês chamam esse lugar?

Mekare e Meroke se entreolharam como se compartilhassem algum tipo de segredo. Mekare maneou a cabeça levemente, concedendo permissão para a informação que viria a ser despejada como a montanha de sucata que é jogada todos os dias nas funilarias.

- Os humanos que aqui viviam chamavam este lugar de Terra. Planeta Terra.
Silêncio.

- Ai meu Deus, AI MEU DEUS ME SEGURA, ME SEGURA – Augusta começou a passar mal. Christopher e Pietro correram em seu socorro. Ela se abanava com força enquanto forçava a respiração com dificuldade, seu cérebro dava voltas de 360º dentro do crânio. Fábia foi a primeira a cair dura pra trás, desmaiada, com um baque surdo no chão da nave.

- QUAL O ANO?! – exclamou Christopher, seu coração a mil – EM QUE ANO ESTAMOS?

A voz fúnebre de Cvalda calou a confusão como o sopro da morte da fim a uma festa.

- Três mil oitocentos e oitenta e oito.

- O quê? – Ray Ann estava despertando, grogue, a voz rouca. Seus cabelos brancos emaranhados numa nuvem disforme ao redor do rosto.

- Hoje é 18 de Janeiro de 3888.

◊◊◊

- É complicado – começou Hikikomori, categórica como sempre – podemos tanto ter viajado no tempo como simplesmente voltado para a Terra. Levando em conta que o tempo é relativo, e o tempo que passamos lá fora no espaço pode não ter sido o mesmo que se passou aqui na Terra. O que pensando por outro lado pode dar no mesmo... – ela estava se perdendo em pensamentos

- Você quer dizer que...

- Quero dizer que aquela quantidade de energia liberada durante a fuga pelo hiperespaço pode ter nos acelerado e nos jogado no futuro do planeta Terra, ou simplesmente nos mandado para cá no tempo correto. Sem transpor o tempo-espaço. Não sabemos exatamente quantos anos terrestres passamos lá fora, só temos estimativas feitas com base no calendário do aparelho de Augusta, o que não nos dá nada palpável. Tempo é muito relativo, não se esqueçam. Medir o tempo é invenção das civilizações. Lá fora o tempo literalmente não passa porque ele não existe.

- AI CHEGA! – bradou Augusta – isso vai fundir o meu cérebro! O que sei é que todos os meus parentes estão mortos e não existe mais... lar! – ela sentou-se e chorou, Fábia partiu para consolá-la.

- E nem chegamos perto de completar nossa missão...

Uma centelha percorreu seus corpos. Azura, o coração, a paz do universo. Tudo isso ainda estava em jogo e eles haviam se esquecido completamente do objetivo final. Devolver o coração de Azura e trazer paz ao universo... Mas agora que já não tinham um lar, que já não tinham família, que já não havia mais para onde ir, a paz universal ainda era tão importante assim? Desesperança, lágrimas, dor, medo, angústia. Rostos pálidos e apáticos agora se distribuíam nas sombras enquanto a nave e seu ronco leve do motor percorriam um túnel subterrâneo. Por vezes um farol colorido atrevido acabava por iluminar suas máscaras de desolação, violando o momento de dor, a intimidade dos seis humanos expatriados.

E agora? Valeria à pena lutar por um universo pacífico quando já não se tem um lar? Quando já não se tem família?

Um silêncio fúnebre pesou sobre eles feito rocha durante um longo tempo, tempo necessário para que a região dos Bunkers fosse atingida após mais um longo túnel escuro que atravessava a muralha de concreto do que antes fora a barragem de uma hidrelétrica. O lugar parecia mais um campo de concentração do que uma cidade. Quilômetros infinitos de contêineres enferrujados cobriam uma planície cercada de colinas por todos os lados, restos do que parecia ser um vale, o leito seco de um rio. Milhares deles jaziam empilhados uns sobre os outros como num depósito ao ar livre formando verdadeiros edifícios. Uns mais baixos, outros mais altos. E havia ruas, o espaço entre eles era como ruas aonde robôs iam e vinham sem parar, indo ou voltando do trabalho, entrando e saindo de casa. Sim, suas casas eram os contêineres, como mercadorias velhas esquecidas do mundo, ali eles jaziam num gueto robótico. Longe de tudo e de todos.

- Que lugar terrível... – cochichou Fábia, baixinho, mas não o suficiente, Meroke a ouviu e pôs-se próximo o bastante para que cochichassem juntos. Fábia corou com tal proximidade entre os dois. Ela estava ficando louca? Ele era uma máquina! Belo, porém ainda uma máquina!

- Foi o único lugar que o governo encontrou para a alocação de toda a classe baixa, os robôs operários. Não havia lugar para eles nos grandes centros urbanos do Setor 13... – disse.

- Pobrezinhos...

- Eles não têm sentimentos de qualquer forma, não se indignam ou reclamam, essa é a vida deles, eles são programados para isso. Quando os fiscais encontram algum robô desocupado, perdido e sem função logo os conduzem para um centro de re-programação. Lá toda a memória antiga é apagada e funções novas lhe são dadas.

- O governo escolhe no que eles vão trabalhar? – Ray repentinamente se viu interessada no assunto.

- Sim. E geralmente robôs mais rústicos como estes são colocados no trabalho braçal. A função deles é basicamente derreter, fundir e forjar metal. Outros trabalham em construções de edifícios, reparos de fiações, oficinas de veículos e coisas do gênero...

A nave aproximou-se de um campo aberto nas imediações da cidade de contêineres. Uma enorme nuvem de poeira ergueu-se do chão com a baixa altitude do veículo, e para espanto do grupo, o chão partiu-se em dois e abriu-se revelando uma espécie de galpão subterrâneo.

- Bem vindos ao nosso esconderijo! – saudou Mekare logo após o desembarque. Ali dentro era fresquinho e agradável, totalmente o contrário do que parecia ser o mundo barulhento e confuso lá fora. Ali embaixo, robôs aleatórios trabalhavam em qualquer coisa, projetos pessoais ou ordens de Cvalda. – Bom, acho que temos muito o que conversar não? – Mekare sorriu, simpática, voltando-se para os seus novos amigos humanos... E Sybila. Embora ela ainda não saiba o que aquela mulher de dois metros de altura seja, humana com certeza ela não era. – por aqui, por favor...

Eles a seguiram pela lateral do galpão costurando por entre caixotes de ferro até uma porta oculta. Ali dentro havia um laboratório tão humano quanto qualquer outro, amplo e confortável demais para um domínio robótico. Acomodaram-se então em poltronas e sofás cinzentos aconchegantes e uma espécie de reunião se deu início. Meroke sentou-se aos computadores e Cvalda retomou seus experimentos em cima da carcaça de um androide encontrada no lixo: ela estava tentando revivê-la não havia muito tempo.

- Então pelo que eu entendi, vocês foram enviados a uma missão no espaço em meados de 2099... E passaram todo este tempo lá em cima? – começou Mekare, juntando-se a Meroke nos computadores. – o que é estranho é que não há registro de nada parecido no ano informado... – ela e o irmão teclavam na velocidade da luz, revirando os arquivos mortos da história da humanidade.

- Tem de haver, nós fomos notícia no mundo inteiro! Fomos sorteados para terminar nosso curso de astrofísica no espaço! – exclamou Pietro tentando enxergar a tela do monitor.

- Realmente, nesse período as missões espaciais começaram, e 100 anos depois a colonização dos planetas do sistema solar se deu início. – Mekare exultou. Meroke havia encontrado alguma coisa.

- Aqui há registro do primeiro cruzeiro espacial, que foi mandado para uma experiência extra-solar tripulado. Perdeu contato com a Terra 20 anos depois... Parece familiar a vocês? – ele girou na cadeira para encará-los com seus profundos olhos azul-cinzentos. Aquele par de anjinhos combinava perfeitamente com a sala.

Metade do grupo se restringiu ao silêncio enquanto outra metade apenas negou com leves e depressivos movimentos da cabeça. Após alguns minutos, os dois androides voltaram-se para o grupo ao mesmo tempo.

- Seus nomes – disseram em uníssono.

E os nomes foram dados.

Para surpresa do grupo, não demorou para que fossem encontrados seus registros de nascimento... E surpreendentemente, os de óbito. O que deixou o Apocalipse Club mais intrigado ainda.

- Christopher Umbrella nascido em 1993, faleceu em 2050. – disse Mekare em sua voz eletrônica e infantil. A voz de uma boneca.

O Professor Umbrella pôs-se de pé indignado.

- COMO É QUE É?

- Vejam por si próprios – Meroke apertou um botão e um holograma se formou entre eles e os androides gêmeos a partir de um projetor no teto.

Ali estavam. Datas e falecimentos de todos. Naqueles registros, todos haviam nascido praticamente no mesmo ano, as datas de falecimento também não estavam muito distantes umas das outras. Eles estavam exultantes, embasbacados e sem reação. Aquilo era algum tipo de pesadelo?

- Temos fotos também, vocês eram o Apocalipse Club, uma liga importante de protetores de Neon City, vocês praticamente fundaram o lugar. – os traços faciais nas fotos eram os mesmos, mas cabelos, altura, corpos, roupas, tudo era tão diferente do que eles realmente eram. Quem eram aquelas pessoas e porque pareciam-se tanto com eles?

- Ué... – começou Donnick, confuso, cruzando os braços e levando a mão ao queixo – porque meu nome não tem data de óbito?

- EUREKA! – bradou Hikikomori espantando a todos. Ela era a única que permanecera sentada e calada o tempo inteiro. Pôs-se de pé num salto e começou a andar em círculos lançando as informações como dardos tranqüilizantes cuspidos de uma zarabatana – estamos em outra dimensão!

- Como é que é? – Ray fez uma careta.

- Outra dimensão! Universo paralelo, chamem do que preferirem, o que acontece é que estamos em outra realidade! – ela pegou Ray pelo ombro e despejou as informações nela como se a garota fosse a última pessoa viva na face da Terra, e que pudesse fugir a qualquer momento da grande verdade que precisava ser dita – eu como Sybila estou conectada ao meu universo, eu o sinto e é como se ele fosse parte de mim. Eu demorei um tempo para perceber porque minha convivência com vocês acabou me desconectando do meu eu interior, de modo que só agora percebi que não estou ligada a esse universo. Eu não faço parte desse lugar, e vocês também não! Estamos numa realidade alternativa!

- Interessante... – Mekare parecia muito curiosa quanto àquele assunto, tinha o queixo apoiado nas mãos.

- Explica isso direito, Hiki! – exclamou Fábia confusa com tanta informação sendo regurgitada tão rapidamente.

- Se lembram quando disse que cada criatura viva, cada ser pulsante, cada existência cria ondas na realidade como na superfície de um lago?

Alguns assentiram, outros fizeram caretas. Estavam espantados com a empolgação violenta da Sybila.

- Então! Nenhum de nós cria essas ondas aqui neste universo! Nós não pertencemos a este lugar! Temos de voltar ao universo original, ao nosso universo!

- Consegui! – exclamou Cvalda após um instante de silêncio. A carcaça enferrujada em cima da bancada estava se mexendo.

- Sau... da... ções... com... panhei... ros! – ele mexia os braços debilmente.

- Precisamos agir... E rápido!

Continua...