Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

domingo, 22 de janeiro de 2012

PARTE SETE: LUA SANGRENTA - A BATALHA DE HYEOL-AEG!


Repentinamente ele se viu sem saída. Seu salvador misterioso havia desaparecido, e Ray Ann estava aos berros agarrada ao chifre de um tipo estranho de rinoceronte – a criatura tinha três pares de pernas, era verde e repleto de listras róseas! – ele tentou se aproximar, salvar a vida de sua aluna, mas seus esforços foram em vão, pois uma espécie de misto entre avestruz e pavão partiu para cima dele grasnando e cuspindo um muco azul ácido que abria pequenos buracos no piso da arena, transformando a areia branca de praia em vidro imediatamente!

A garota até que estava lidando bem com a situação, um surto de adrenalina fez com que ela furasse os dois olhos da fera, desnorteando-a imediatamente. Ela aproveitou para saltar longe enquanto o animal enfurecido – e cego – estrebuchava no meio da arena chifrando tudo o que encontrava pelo caminho. A luta não se limitava ao chão, e Christopher Umbrella só percebeu isso quando uma espécie de pterodátilo de escamas vermelhas reluzentes como rubis desceu sobre o avestruz-pavão que o perseguia e o arrebatou para os ares. Foi uma chuva de penas e carne pavorosa.

Seu velho amigo musculoso com cabeça de tubarão, companheiro de jaula e nada amistoso estava numa luta ferrenha contra um par de gorilas albinos sem rosto. Isso mesmo. As criaturas não possuíam olhos nem narizes, no lugar da face dos bichos um tipo estranho de arcada dentária sem lábios abria e fechava furiosamente o tempo inteiro, como se os bichões nunca fechassem a boca, numa eterna careta! A saliva deles era verde, sua carne era roxa, mas pelo visto nada nele era venenoso ou corrosivo como em algumas criaturas na arena. Também pudera! Com dentes como aqueles e braços fortes daquela maneira, quem precisa de veneno?!

A coisa se complicava mais ao longe, no outro extremo da arena, onde uma briga de insetos gigantes havia começado sem hora para acabar. O besouro-zebra que o havia atacado estava tentando chifrar uma espécie de lacraia de couro holográfico! Exatamente: a lacraia além de mudar de cor podia ficar invisível como um camaleão. E isso de longe era a parte mais estranha daquela criatura, pois ela possuía uma cabeça humana com barba, bigode e cabelo! Como um velho chinês de olhos sempre fechados.

Isto era só o que estava no campo de visão de um atordoado Christopher, que não tinha forças para sequer chorar. Aquela cena digna de um filme de ficção científica era o bastante para tirar qualquer tipo de reação humana a tal situação, ele mal conseguia raciocinar. Como isso era possível?!

- Professor! Professor! Aqui! – uma voz conhecida despontou em meio aos rugidos e urros da batalha. Ele saiu do meio do caminho antes que um dos macacos dentuços o esmagasse em meio à briga contra o homem tubarão. E a multidão delirava!

Christopher procurou a origem da voz e encontrou uma mão acenando... Da lateral da arena, como se estivesse saindo do próprio chão! Logo ele calculou o óbvio: havia uma espécie de vala circundando a arena, um sistema de escoamento para onde os restos da luta eram empurrados e levados ao esgoto após a lavagem, e alguém estava escondido ali o oferecendo ajuda!

Não pensou duas vezes, correu até lá sem ser visto pelos monstros que lutavam, estes estavam mais preocupados em derrotar os maiores e mais fortes do que em esmagar os menores, que só procuravam se esconder e encontrar um lugar escuro onde esperariam pacientemente os mastodontes se matarem para depois devorá-los um a um. Este lugar era aquela vala. Tinha seis metros de profundidade, e um espaço grande o suficiente entre uma grade e outra para que Christopher pulasse lá dentro. Acima da sua cabeça a multidão o xingava em diversas línguas.

Milhares de braços, várias mãos, suspiros e exclamações de alívio invadindo seus ouvidos e por fim, uma luz! A luz de uma espécie de sabre fluorescente... Ele já havia visto isso em algum lugar!

- Professor Umbrella! Não acredito que você está vivo! – Donnick foi o primeiro a dar um abraço suado e sujo em Christopher, depois dele vieram Fábia e Augusta ao mesmo tempo e por último Pietro, que revelou-se seu salvador misterioso logo em seguida, pedindo desculpas por tê-lo deixado para trás daquela maneira. Um dos monstros havia entrado em seu caminho e era preciso despistá-lo, ou então ele teria devorado os dois!

- Ray Ann! Ray Ann está lá em cima! Ela vai morrer! – Christopher tentou escalar a parede de volta para a arena, mas foi puxado para o fundo da vala novamente pelas mãos de seus companheiros de viagem ao som dos apelos.

- Não se preocupe com ela! Ela está segura, já me certifiquei disso! – exclamou um arfante Pietro, embainhando dois sabres turcos na cintura.

- O quê?! Ela está perdida no meio daquela batalha louca!

- O cara de tubarão está do nosso lado!
Aquilo realmente pegou Christopher de surpresa.

- Mas...

- Não se deixe levar pelas aparências, Chris – era a primeira vez que um aluno o chamava pelo apelido, e este foi Fábia, o abraçando logo em seguida, pálida e desanimada com suas madeixas em lavada despenteadas ao extremo, suas vestes completamente rasgadas. Ela mal sorria. Parecia ter lutado muito. Por um instante, Christopher sentiu remorso por achá-la tão irritante em suas aulas de astrofísica na terra, há meses atrás. Agora sua vida terráquea parecia mais uma memória distante e mal vivida, lembranças que não eram mais suas.

- Ele que nos trouxe para a vala, é o único lugar onde estamos seguros, só poderemos sair daqui quando o sistema de esgoto começar a circular de novo, a corrente vai nos levar para o sistema de túneis do subterrâneo deste planeta, lá acharemos uma saída! – explicou Donnick, nervosamente.

- E quando isso acontece?!

- No final de cada batalha!

- Eu não queria perguntar isso, mesmo... – Christopher abaixou a cabeça, decepcionado, já prevendo a resposta – mas, quanto tempo dura uma batalha?!

- Pode levar dias, dependendo dos jogadores em campo – rebateu Pietro, já um pouco mais descansado. – aqui a aristocracia interplanetária aposta sistemas estelares inteiros nos peões... Foi assim que a tal Aib’Somar conquistou toda a área que corresponde à constelação de Taurus. Apostando nos jogadores!

- Como vocês ficaram sabendo disso?! – Christopher estava abismado com a quantidade de informação que seu grupo havia recolhido enquanto estivera fora do ar.

- Quem contou isso a vocês?!

- Hikikomori – respondeu o grupo, quase em uníssono.

- Mas essa maldita...

Um estrondo sacudiu a arena de cima a baixo. Alguma coisa quebrara o crânio na grade logo acima da cabeça dos refugiados. Um dos gorilas dentuços havia morrido pelas mãos do poderoso homem-tubarão.

- Isso acontece sempre, não se preocupe – tentativa falha de acalmar o nervoso professor da parte de Donnick. – segundo Hikikomori, há uma espécie de máfia por trás dos jogos que sempre faz Aib’Somar vencedora das apostas, por isso a constelação de Taurus está sempre sob seu poder. Aquele cara de tubarão é o peão favorito dela, e ele sempre vence todas as lutas porque o sistema facilita a vitória dele. Por algum motivo, ele foi com a nossa cara...

Fábia ficou vermelha.

- Com a nossa cara não, com a dela! – exclamou Augusta, apontando para a garota.

- Que seja! Ele fingiu estraçalhar cada um de nós, e disfarçadamente nos lançou na vala. A essa altura Aib’Somar acha que nós viramos patê! – concluiu Pietro, olhando para cima. Ray Ann caiu do céu aos berros, derramando rios de lágrimas exatamente no colo de Donnick que a acalmou imediatamente. Foi recebida com abraços e suspiros de alívio assim como o professor fora recebido logo mais, e a ela foi explicada a situação assim como fora explicado anteriormente à Christopher. Logo todos estavam a par da situação.

- Precisamos sair dessa vivos, tudo bem?! – eles fizeram um círculo ao redor de Donnick – então, por favor, mantenham a calma e fiquem juntos! O cara de tubarão disse que hoje a batalha não dura muito, ele acha que esses adversários fracotes foram escolhidos justamente para que ele ganhasse a partida!

- SE ELES SÃO FRACOTES, IMAGINEM OS FORTÕES! – gritou Ray Ann, ainda atordoada.
Lá fora, um a um, os monstros foram aniquilados.

O besouro foi esmagado pelo rinoceronte cego, o rinoceronte cego foi transpassado pela lança do homem tubarão, e este aproveitou a leva para aniquilar as outras criaturas terrestres com a mesma agilidade e destreza anteriores. A parte difícil foram os monstros voadores. Um bando de libélulas roxas, um pterodátilo, uma serpente alada, e outras criaturas tão estranhas quanto. Ele acertou um a um usando as lanças e espadas abandonadas na arena pelos adversários derrotados e por aqueles que haviam desistido da luta, lançando-as em direção aos alvos como dardos e acertando em cheio na primeira tentativa: a criatura era uma máquina de guerra treinada para matar, seus golpes e suas estratégias eram infalíveis e isso deixava a plateia louca.

Os seres estranhos que estavam nas arquibancadas do coliseu gritavam, jogavam coisas para o alto, cantavam em coro, erguiam bandeiras e faixas coloridas num carnaval enlouquecido, eles estavam adorando o espetáculo, era tudo o que eles queriam na final do circuito de combates de arena da região de Taurus, o favorito do público vencendo com estratégia e agilidade. Ele havia lutado contra todos os pesos pesados do universo até então, trazidos das regiões mais remotas do espaço só para derrotá-lo, e até então nada nem ninguém o havia parado. Seu último adversário era uma espécie de dragão alado de duas cabeças, a criatura mergulhou num rasante em direção ao cabeça-de-tubarão, foi pego no ar pelas suas mãos poderosas e teve as duas cabeças arrancadas fora a dentadas num banho de sangue!

O público estava enlouquecido. O favorito da soberana – e consequentemente do seu povo – havia vencido a luta das lutas e urrava de braços para cima, escancarando sua bocarra cheia de dentes prateados para as arquibancadas, correndo em círculos feito um cachorro enfurecido, seu plano começava a entrar em ação. Ele havia se preparado para aquele momento, era a única maneira de terminar a batalha antes que as plataformas subissem com mais criaturas monstruosas trazidas de selvas distantes nas luas dos gigantes gasosos de Draco. Usou então as duas pernas traseiras para tomar impulso e lançou-se contra as arquibancadas do coliseu, onde a alegria e o furor tornaram-se o pânico e pavor de uma multidão em fuga.

- Vocês estão ouvindo isso?! – Christopher olhou para cima. Um corpo inerte e ensaguentado caiu com um baque surdo acima das suas cabeças, batendo contra a grade de proteção da vala.

- A multidão está gritando... Mas eles não estão comemorando, estão em pânico! – exclamou Fábia, tentando escalar a parede para ver o que estava acontecendo lá em cima.

- Era esse o plano secreto... – Donnick semicerrou os olhos e levou a mão ao queixo – ele disse que tinha um plano para encerrar a batalha à força, mas não imaginava o que seria. Ele está nas arquibancadas neste exato momento!

Lá fora, as sirenes soavam alto. As luzes, hora brancas, agora estavam vermelhas como sangue girando sem parar. Um batalhão de dinossauros uniformizados como os que foram vistos no porto entrou na arena, todos armados até os dentes, segurando longas lanças elétricas que faiscavam furiosas nas extremidades pontiagudas. A esta altura a grande maioria daqueles que compunham a plateia já havia evacuado as arquibancadas da arena, mas uma pequena parte deles ainda corria e gritava em círculos procurando uma saída alternativa: a enorme criatura com cabeça de tubarão e corpo de homem estava encurralando-os, de quatro e rugindo ferozmente, perseguindo-os através dos bancos, arrancando as cadeiras da base e esmagando tudo o que encontrava pelo caminho numa fúria implacável. Seus braços eram como dois tsunamis arrastando tudo o que havia em seu caminho, e sua mandíbula uma máquina trituradora esmigalhando carne, ossos e couro sintético.

- O QUE ESTÁ ACONTECENDO NA MINHA ARENA?! – Aib’Somar estava tendo uma síncope, a pequena chama vermelha entre seus chifres agora era uma verdadeira labareda enlouquecida.

- O seu favorito, senhora! Ele enlouqueceu! – Arganack havia entrado pela porta dos aposentos reais esbaforido, tremendo da cabeça aos pés. Estava a pouco no coliseu, e viu de perto a situação sair totalmente do controle dos organizadores do evento, havia sido mandado para lá a fim de fiscalizar e se certificar de que sua soberana venceria as apostas mais uma vez, como sempre. Desta vez, os planos de Aib’Somar foram frustrados.

- O QUE DEU NESSE CABEÇA DE PEIXE IDIOTA?! EU TINHA UM ACORDO COM AQUELE ESTÚPIDO! – a pele amadeirada de Aib’Somar foi ficando cada vez mais vermelha, e seus pequeninos olhos escuros tingiram-se de um amarelo vivo como ouro. Uma arcada dentária extra desceu sobre seus dentes amarelados e encavalados, estes novos dentes eram prateados e pontiagudos, seus cabelos ondulavam ao redor da cabeça como serpentes venenosas malignas, uma aura vermelha pairava ao seu redor exalando o fogo, a fúria. – ACABAREI COM A VIDA DAQUELE INÚTIL COM AS MINHAS PRÓPRIAS MÃOS! – até a voz da soberana de Taurus havia mudado: estava grossa e demoníaca, como um eco vindo das profundezas do Tártaro. Flutuou então a trinta centímetros acima do chão e saiu pelas portas dos aposentos reais explodindo tudo o que encontrava pelo caminho.


- Onde está aquela maldita Hikikomori quando precisamos dela?! – exclamou Chris, ainda dentro da vala, tendo como plano de fundo os gritos de pavor da multidão lá fora.

- Provavelmente ela não está se comunicando conosco para não levantar suspeitas. – fez Pietro, olhando para cima, também estava apreensivo demais para ficar ali esperando – se ela está mesmo interligada à irmã, Sybila Papillon captaria qualquer onda cerebral que Hikikomori enviasse, e se infiltraria nas nossas conversas. Logo Aib’Somar saberia que não estamos mortos de verdade...

- Tem razão... Droga! Estamos num beco sem saída!

“Acalmem os ânimos, Apocalipse Club”

Era a voz de Hikikomori, foi recebida com exclamações de espanto e alívio ao mesmo tempo. Foram surpreendidos então pela figura fantasmagórica e transparente da Sybila na escuridão: era uma projeção astral, ela havia meditado o suficiente para ter controle total sobre seu espírito e projetá-lo conscientemente para fora do corpo.

- Eu sabia que ela não nos abandonaria! – vibrou Fábia. Por um momento seu rosto pareceu recuperar a cor.

“Meu corpo está anestesiado e aprisionado dentro de uma cápsula no laboratório da nave mãe do império de Taurus. Sybila Papillon foi mandada para uma missão nos Pilares da Criação e o exército de andróides retornou à base na capital do império. Temos pouquíssimo tempo para executar este plano...”

- Espera um pouco! Espera! – Ray Ann interrompeu a conversa no meio colocando as mãos para cima – você não quer que nós invadamos a nave da chifruda, quer?!
Hikikomori sorriu de leve.

“Sequestraremos a nave mãe do império de Taurus”

O restante do grupo entreolhou-se apreensivo. O que estaria por vir agora?

- Você enlouqueceu!? – exclamou Chris, vermelho feito um pimentão e espumando de raiva! Quem aquela mulher pensava que era?! Ele havia desenvolvido aversão àquela maldita Hikikomori que havia surgido de supetão no quarto da enfermaria onde ele descansava após o desmaio e mudado para sempre o rumo da sua vida! Se ela não houvesse interferido, se ela não houvesse se metido, se ela ao menos houvesse se entregado e não os envolvido naquilo tudo! A vida dos seus alunos não estaria em perigo, nada daquilo estaria acontecendo! Era tudo culpa dela.

“Entenda que isso é necessário, não temos outra alternativa, Christopher Umbrella”

- Não temos outra alternativa?! NÃO TEMOS OUTRA ALTERNATIVA?! Você pirou, sua maluca?! Pra começo de conversa, se você não tivesse se escondido dos seus cobradores na Cosmogony nada disso estaria acontecendo!

“Isso vai muito além da minha fuga, Cavaleiro, vai muito além das contas que tenho a acertar com Aib’Somar, isso envolve cada um de vocês. Você e seus alunos são peças importantes para o quebra-cabeças universal, e cabe a mim colocá-los no lugar certo.”

- Ora, faça-me o favor! Não me venha com essa besteira de Cavaleiro de novo! Eu não sou nada disso que você está dizendo, eu não faço parte disso e me recuso a fazer! Eu sou apenas um professor idiota de astrofísica sem vida social nenhuma que adora café amargo e que quer, que exige voltar à Terra, exige a segurança dos seus alunos! – ele berrava, sua voz talvez estivesse mais alta até que o furor da confusão lá fora, acima das suas cabeças – olhe para o rosto desses jovens, Sybila! – ele puxou Fábia pelo braço, uma garota antes animada e agora totalmente abatida e fraca – acha que eles têm condições PSICOLÓGICAS de lidar com isso?

“Isto só o tempo dirá, Cavaleiro. Por enquanto, vocês só têm a mim, e eu só tenho a vocês. Se querem realmente voltar para o lar, se querem realmente se ver livres deste inferno e em segurança, devem me seguir e fazer o que digo... Ou permaneçam nesta vala para toda a eternidade. O que me dizem?”

Apesar da explosão de nervos de Christopher Umbrella, Sybila Hikikomori permanecia calma e impassível, nada lhe afetava. A impressão que eles tinham era a de que ela se tratava de um cubo de gelo de tão fria. Alienígenas tinham sentimentos?

- Eu não sei vocês, mas eu to com ela! – Pietro foi o primeiro a passar para o lado de lá. Os outros apenas deram de ombro e o seguiram. Apenas Christopher e Ray Ann permaneceram parados onde estavam, tremendo dos pés à cabeça de tão estressados. As lágrimas escorriam sem parar do rosto da garota, apesar de ela não expressar emoção alguma. Por fora parecia muito controlada, mas por dentro estava uma tempestade de emoções.

- Não temos escolha, Professor – disse Donnick, num misto de rendição e dó. – já que estamos aqui, ela é a única que pode nos tirar dessa.

- Ele tem razão – fez Augusta – vamos, vocês dois! – e estendeu a mão para Ray, que a pegou com desconfiança, mas logo cedeu por se sentir em segurança. Aos poucos o grupo foi avançando no interior da vala de escoamento, Hikikomori estava procurando uma das bifurcações de evacuação do esgoto, o que não foi muito difícil. Difícil foi abrir a comporta com o restinho de força que ela possuía, estava usando toda a sua energia para se projetar fora do corpo. Logo eles estavam se aventurando pelas tubulações colossais e infinitas do circuito subterrâneo daquela distante e pequenina lua, orbitando um planeta qualquer na constelação de Touro.

Ray Ann olhou para trás uma única vez, para a escuridão que os banhava em um silêncio mortal de respiração suspensa. O único som ali eram seus passos e os de seu grupo, peitos arfantes e corações batendo a todo vapor feito locomotivas procurando um rumo, um destino nos trilhos errantes onde haviam sido colocadas por acaso. Destino? Talvez. O que seus olhos viram jamais será esquecido, disso ela tinha certeza, mas o que a estava deixando em pedaços por dentro era mais do que estar perdida no meio do espaço há bilhões de quilômetros de casa. Era muito mais do que estar sozinha e desamparada numa constelação distante rodeada de criaturas alienígenas...

O que a destruía por dentro era se lembrar de que eles não foram os únicos a serem sequestrados da Cosmogony durante o ataque. Ela viu muitos rostos humanos retorcidos de dor em desespero contra o vidro dos caixotes, ouviu muitos gritos e choros altos durante o trajeto de porto em porto nestes sistemas solares distantes. Eles foram diminuindo com o tempo, e o silêncio da morte que ficava após cada um dos portos era exatamente como aquele das tubulações. Para onde aquelas pessoas foram enviadas? Ela não queria pensar nisso. Ao menos ela estava a salvo... Pelo menos por enquanto.


- KRHAS! – Aib’Somar materializou-se feito um espírito maligno no meio da arena, envolta em chamas e lava incandescente. – NÓS TÍNHAMOS UM ACORDO, SEU PEIXE MALDITO! AGORA ACABAREI COM AQUILO QUE VOCÊ CHAMA DE VIDA, SEU VERME TRAIDOR!

A mandíbula da Arquiduquesa endemoninhada deslocou-se como a de uma serpente, e um urro diabólico ecoou de lá de dentro. Foi o suficiente para que o cabeça-de-tubarão parasse o ataque aos dinossauros-guardas e voltasse sua atenção exclusivamente para ela: a pequenina chifruda estava dobrando de tamanho, ficando cada vez maior. Rapidamente seus longos chifres pareceram pequenos perto do seu corpo. Krhas pôs-se de pé então nas suas pernas e rugiu para o alto, estufando seu peito branco e musculoso enquanto levantava os braços para o ar, numa demonstração de audácia e ausência de medo, chamando seu adversário para a luta! Ele estava pronto para o que vinha, havia sido treinado para lutar contra a mais maligna das criaturas do universo se fosse necessário.

Da bocarra escancarada de Aib’Somar raios fulminantes de uma energia vermelha maciça acertavam a arquibancada um após o outro, mirando seu alvo, tentando acertá-lo. Krhas era muito mais rápido: ele saltava com uma agilidade e velocidade nunca antes vistas, impossível para uma criatura com o porte como o seu. Estava esperando a hora certa de atacá-la, seria fácil para ele saltar a uma distância tão grande com suas pernas poderosas, mas enquanto a oportunidade certa não aparecia ele continuaria esquivando dos ataques.

O enorme demônio vermelho encontrava-se exatamente no meio da arena, e as armas utilizadas no combate que fora encerrado há pouco ainda jaziam cobertas de sangue fresco ao lado dos corpos das criaturas derrotadas, totalmente fora do alcance do guerreiro-tubarão, ele não tinha outra opção se não esquivar-se dos raios cuspidos pela verdadeira forma da soberana de Taurus, que mantinha uma área inteira do universo sob o seu comando graças a sua máfia suja e trapaceira.

- CONTINUE FUGINDO, KRHAS! SÓ ESTÁ RETARDANDO SEU DESTINO COMO PEIXE ASSADO! – a força do impacto de um palmo colossal abriu um buraco gigantesco em forma de mão nas arquibancadas, parando o guerreiro-tubarão em meio a sua estratégia de fuga. Ele virou-se imediatamente na direção contrária, mas foi parado exatamente pelo mesmo movimento. O minotauro vermelho de vinte metros de altura havia destruído mais um lado do coliseu com seu punho poderoso, através das enormes frestas era possível ver todo o vale de pedras pontiagudas e irregulares que brotava do chão até onde a vista alcançava. Frotas inteiras de naves ainda estavam em fuga daquele lugar, serpenteando entre os espigões rochosos do asteróide terraplanado.

Krhas estava preso entre uma morte e a morte. Não tinha saída. Era hora de enfrentar Aib’Somar com as suas próprias mãos.


- Vocês estão sentindo esses tremores esquisitos? – Augusta perguntou, olhando para trás várias vezes, tentando se certificar de que todos estavam ali. Seu maior pavor no momento era ficar sozinha naquela escuridão apavorante. O azedume ali embaixo era insuportável, a incursão através do subterrâneo não estava sendo nada agradável: vez ou outra alguém escorregava em um trecho mais liso ou afundava até os joelhos em passagens mais fundas, pisoteando detritos de todas as formas, de todos os tamanhos, coisas indistinguíveis no escuro, mas que Christopher podia imaginar muito bem, levando-se em conta as atrocidades que aconteciam logo acima das suas cabeças.

Com certeza ali embaixo, naquele limo grosso e turvo, boiavam restos de carne e ossos, membros triturados e decepados de criaturas vindas de todas as galáxias, e a sensação de estar pisoteando-as arrepiava todos os pelos da sua nuca. O barulho de gosma sendo revirada a cada passo era nauseante, e para não piorar a situação ele decidiu permanecer em silêncio e não verbalizar qualquer conclusão a respeito das coisas nas quais eles estavam pisando. Imagine andar sob os dejetos de um matadouro. Era esta a exata sensação.

“Algo importante está acontecendo na arena do Coliseu” – esclareceu a transparente Hikikomori, apenas um vulto luminoso à frente do grupo – “estou usando todas as minhas forças para projetar meu espírito aqui, então não posso elevar meu pensamento até lá e ver o que está acontecendo. Mas posso sentir mesmo assim.”

- Espero que o cabeça-de-peixe esteja bem... – chiou Fábia, baixinho, sua voz quase sumindo.

Eles permaneceram em silêncio por um tempo, até Hikikomori quebrar o gelo dando explicações às perguntas que o capitão Donnick fazia vez ou outra em meio ao revolver da gelatina abaixo dos seus pés. Vez ou outras eles tinham de desviar de grandes corpos perdidos na tubulação, coisas horríveis e escamosas, peludas ou encouraçadas, repletas de espinhos ou lisas e lustrosas. Mortas e já quase totalmente decompostas. O fedor era insuportável.

Hikikomori falava sobre Aib’Somar em geral, contava sua história e o que a levou a ser uma procurada da justiça do império de Taurus. Disse ao grupo também que se encontravam atualmente em Hyeol-Aeg, uma espécie de asteroide terraplanado para abrigar o maior de todos os coliseus do Circuito de Taurus, esporte sangrento e cruel praticado por todos os que viviam naquela área da constelação e arredores, muito semelhante ao que acontecia no Planeta Terra nos tempos de Roma, como eles mesmos puderam perceber. Aquele corpo celeste era pouco menor que a nossa lua, sua única superfície relativamente plana fora envolvida por uma cúpula gigantesca onde as grandes máquinas instaladas fabricaram uma atmosfera artificial. A única saída daquele lugar era através dos portos, que tinham sua face voltada para o espaço lá fora.

Ao ser questionada por Fábia, explicou-lhes também que era uma Sybila, descendente de uma raça muito mais antiga que a contagem do tempo nas diferentes esferas, raça que tanto havia evoluído – espiritual e biologicamente – a ponto de nunca envelhecerem e só morrerem no momento que lhes convinha. Morte não existia para elas “juntar-se às estrelas” ou “estelar-se” era um termo muito utilizado por seus ancestrais quando as galáxias eram jovens e a maioria das estrelas ainda estava nascendo numa confusão colorida de poeira cósmica restante do nascimento do universo.

- Mas isso é impossível, você tem certeza do que está nos contando? – fez o capitão, caminhando agora ao lado do espírito luminoso da Sybila – isso vai além da imaginação de qualquer especulador ou cientista que já nasceu! Como é possível criaturas como vocês viverem bilhões de anos, como as estrelas?!
Hikikomori riu, um riso sonoro e distante.

“Vocês humanos são tão curiosos... consideram tanto o tempo, a contagem, a cronologia.” – ela respirou fundo – “isto é mera ilusão. O universo é atemporal, somos todos atemporais, nosso espírito é muito mais do que os anos conferidos pelas voltas que seu planeta dá ao redor daquela estrela jovem e fulgurante. O tempo é tão relativo de criatura para criatura, de homem para homem, de planeta para planeta! Um ano em seu planeta pode parecer longo e duradouro para você, mas para uma criatura que vive nas luas do gigante gasoso Nepherats do outro lado do universo é apenas um dia tranquilo e efêmero... Tão relativo! O tempo é pura ilusão. Passado, presente, futuro, tudo a mesma coisa, e eles estão lado a lado num trançado complicado e intrincado como vocês logo verão...”

Todos permaneceram em silêncio durante o discurso. É claro, sem diminuir o ritmo dos passos, por vezes até acelerando quando sons estranhos vinham dos tubos periféricos ou das passagens que ficaram para trás.

- Já estamos chegando? Isso aqui não tá me agradando muito não... – Ray Ann afastou-se das paredes quando percebeu que estranhas protuberâncias cor de ameixa foram surgindo. Elas possuíam um estranho furo no meio semelhante à cloaca de uma galinha, através da qual uma língua roxa, fina e asquerosa como a de uma serpente vinha para fora provar o ar de tempo em tempo.

“Não se preocupem com estas criaturinhas, elas são como as plantas do seu planeta, mas estas necessitam do gás metano para sobreviver...” ela fechou os olhos por um momento “estamos perto, falta mais um pouco... Porém algo me preocupa, é como se eu estivesse deixando passar alguma coisa...”

Os companheiros se entreolharam receosos.

Ray fez uma cara de nojo e soltou um gritinho quando uma das línguas roxas veio a roçar na sua bochecha. As paredes estavam totalmente cobertas por aqueles seres asquerosos. Christopher imaginou que eles eram como as cracas no fundo do mar, vindo para fora das suas conchas para se alimentar dos pequenos seres que vagavam despreocupados no ambiente ao redor.

- Pára Fábia, isso faz cosquinhas! – exclamou Pietro, se contorcendo todo no escuro.

- Mas o que é que eu to fazendo?! – desta vez a garota foi pega de surpresa.

- Tudo bem, eu sei que você está assustada, mas não precisa ficar tateando a minha blusa assim, isso faz cócegas!

O grupo se entreolhou confuso. Pietro era o último da fila, vinha tranquilo lá atrás se apoiando nas paredes, enquanto que a confusa Fábia estava de mãos dadas com Ray Ann logo à frente de Augusta, muito distante do rapaz.

- Pietro, eu não estou pegando na sua blusa! Eu sequer estou perto de você!

Todos congelaram naquele exato momento e olharam para trás, Pietro tentava tirar alguma coisa das costas sem nenhum progresso. Os olhos se arregalaram imediatamente, o Professor Umbrella deu um grito seguido de um pulo.

- TINHA ALGUMA COISA SUBINDO NA MINHA PERNA! ALGUMA COISA SUBIU NA MINHA PERNA! – certa vez, um bicho preguiça havia escalado a sua perna numa trilha pela floresta: a sensação era idêntica.

As garotas iniciaram a gritaria no mesmo instante, acompanhando Chris num coro de berros e pulos, espalhando o lodo fétido em todas as direções.

- ALGUÉM ACENDE UMA LUZ! ACENDE UMA LUZ! – berrava Augusta chutando o vazio. Nada havia tocado nela, mas era melhor prevenir do que remediar.

Hikikomori então aumentou seu brilho e o concentrou nos olhos, os quais abriu em seguida iluminando tudo. Logo seu corpo astral se dissolveu na escuridão enquanto seus olhos iluminavam como dois sóis, o facho de luz que eles produziram focalizou Pietro no exato momento em que ele virava de costas pedindo ajuda, mostrando para todos o que rastejava sobre a sua coluna vertebral. A princípio a coisa que estava pendurada em sua camisa pareceu uma enorme e gorda estrela do mar, já que parecia espalmada nas costas de Pietro, negra como a noite tão lisa e lustrosa que seu corpo refletia a luz. Porém, olhando atentamente, o modo como se mexia e articulava pernas e braços lembrava exatamente o que Christopher previra: um bicho preguiça!

A “cabeça” da coisa girou vagarosamente para trás em direção ao grupo estarrecido. Pasmem, pois o que deveria ser a face era tão negro e liso quanto o resto do corpo... Pelo menos era o que eles pensavam até um enorme e amarelo globo ocular abrir-se naquela superfície escura, tomando toda a extensão do seu rosto, piscando duas vezes timidamente as suas pálpebras horizontais.

A gritaria recomeçou. Augusta então franziu o cenho, pescou do lodo um longo e esverdeado osso com o qual acertou a coisa em cheio, atirando-a longe das costas de Pietro. Este respirou aliviado! A criatura então revolveu-se na água, ambiente qual ela parecia dominar, pois seus movimentos tornaram-se mais rápidos e objetivos: pôs então a cabeça para fora d’água e iniciou uma espécie de cantoria em direção ao teto. O som que ele produzia lembrava o barulho de bolhas de sabão estourando, um “BOOP” sonoro delicioso que no momento tornou-se aterrorizante porque sons idênticos estavam sendo produzidos pela escuridão acima das suas cabeças.

Logo, toda a extensão dos túneis estava pontilhada de enormes olhos amarelos sem pupila.


- PREPARE-SE PARA MORRER! – Aib’Somar escancarou sua bocarra para cuspir mais uma labareda do seu mortal laser vermelho. O homem-tubarão estava sem saída, completamente encurralado, e sabia que de nada adiantaria se esconder atrás das cadeiras restantes ainda presas à arquibancada do coliseu. Ele era grande demais, e de qualquer modo aquilo explodiria como um ataque atômico, ele não tinha escolha.

Seguindo um reflexo de última hora, ele escalou um dos brancos e enormes postes de iluminação que incidiam seus fortes fachos de luz sob a arena para elevar-se acima da cabeça de Aib’Somar. Esta ainda estava a uma distância considerável, mas se ele fosse rápido o bastante... Não houve tempo, na metade da subida o laser vermelho atingiu a estrutura restante da arquibancada abrindo uma enorme cratera flamejante perfeitamente redonda. A pilastra rangeu e inclinou-se para frente! O destino estava a seu favor, era exatamente isso o que ele precisava! Usando seus braços musculosos e suas pernas poderosas, ele urrou furioso e escalou a toda velocidade, usando suas enormes mãos brancas para içar. As veias estavam a ponto de estourar para fora dos bíceps, seu peitoral envolvia e praticamente engolia o poste de iluminação, afinal de contas seu tamanho era pouco menor que o de um carro.

Em um último esforço, saltou para o topo da estrutura, equilibrou seu pesado corpo em cima do estrado metálico que sustentava os holofotes e inclinou-se para frente propositalmente. O poste rangeu novamente, e desta vez definitivamente. Tombou sem cerimônias em direção ao centro da arena, as mãos vermelhas e malignas de Aib’Somar assomavam sobre ele. Num movimento rápido e preciso, antes que a estrutura horizontalizasse, ele tomou impulso nas pernas grossas e lançou-se em direção ao rosto de Aib’Somar, pousando entre seus olhos, agarrou-se ao nariz da Arquiduquesa metamorfoseada em satanás.

- O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO?!

Com as mãos em formato de espátula, ele apertou o nariz da criatura adversária com os joelhos para pegar apoio e perfurou os olhos amarelos de Aib’Somar num movimento tão preciso e ágil que durou menos de um segundo. Estava acabado, a soberana de Taurus expelia lava vulcânica pelos olhos enquanto urrava, sua voz demoníaca sacudiu aquele pequeno planetinha, aquela lua, aquele meteoro disforme de uma ponta a outra.

Com um tapa, a furiosa e agora cega Aib’Somar retirou Krhas de seu rosto. O homem tubarão já não tinha mais forças para lutar e sequer resistiu, não tinha mais nada a fazer, o que deveria ser feito foi executado com sucesso: estava vingado por todo o sofrimento que a ambição da arquiduquesa causara, por ter sido tratado com um animal durante um tempo interminável, por quase ter morrido em inúmeras batalhas no circuito de Taurus, batalhas estas das quais algumas pareceram intermináveis e infernais. A lava dos olhos do demônio havia chamuscado suas mãos até os ossos, quase todas as costelas estavam quebradas, e sua coluna cervical havia se partido em duas no impacto contra um enorme pedregulho pontiagudo, restos do coliseu parcialmente demolido. Este era o fim do guerreiro tubarão.


“Vamos! Pra cima! Pra cima!” incentivava Hikikomori. Apenas seus olhos se distinguiam da escuridão.

- ELES ESTÃO CHEGANDO! ESTÃO VINDO PELA ÁGUA! – ao longe Pietro via o lodo pastoso revolver-se com a passagem de milhares de corpos lisos como os dos leões marinhos, mais de uma centena de criaturinhas negras como a noite nadando a toda velocidade produzindo doces “boops” enquanto se aproximavam, cobrindo a distância que eles percorreram com muito esforço sem um pingo de cerimônia.

- Está emperrada! – Fábia usava seus poderosos punhos robustos para esmurrar o alçapão da saída. Sua única saída, a esperança do Apocalipse Club. Hikikomori os havia levado até ali com grande esforço, e após o encontro com os estranhos habitantes dos esgotos o esforço foi redobrado, muitos atalhos tiveram de ser tomados bruscamente para despistar as rápidas preguiças peladas que os perseguiam a nado com seus enormes globos oculares amarelados brilhando como ouro na escuridão deixada para trás.

- Saia da frente! – Pietro a pegou pela cintura e a devolveu à plataforma abaixo, pouco elevada acima do lodo. Escalou às pressas a escadinha e empurrou com toda a sua força para cima. Com um “CREC” sonoro, o alçapão quebrou-se em dois, era feito de um material sintético que imitava o metal, porém frágil. Foi então o primeiro a pular para fora dos esgotos afoito e esbaforido, os outros o seguiram na mesma velocidade, Christopher foi o último a alcançar a saída. Este ainda tinha fresca em mente a memória das bolotas pretas caindo do teto aos montes, chovendo sobre eles e agarrando-se as suas roupas esticando seus membros pegajosos e sem dedos, cobertos de ventosas na parte inferior.

- RÁPIDO, EMPURRA AQUELA CAIXA PRA CIMA DO BURACO! – gritou Augusta, apontando para um grande caixote de metal que estava avulso por ali. Pietro e Donnick foram rápidos e antes que o primeiro monstrinho colocasse a cabeça para fora do buraco, tamparam-no com a pesada caixa. Os sonoros “boops” ainda ecoavam alto vindos de baixo de seus pés, o que arrepiava o pelo das suas nucas com vigor.

- Estamos salvos! – Fábia abraçou Ray com força, dando pulinhos com a amiga sufocada em seus braços. Pietro arquejava sobre seus joelhos e Donnick havia se escorado à parede metálica do lugar onde eles haviam emergido para se apoiar. Estavam sujos, suados e fedendo a cocô.

Demorou um tempo para que eles percebessem que os olhos de Hikikomori haviam desaparecido sem deixar vestígios, só o tempo de recuperarem o fôlego e notarem que uma multidão de toupeiras peludas com os narizes feito mãos usando uniformes vermelhos borrachudos haviam parado o serviço naquele colossal galpão-oficina e agora os observavam estáticas, com curiosidade.

- Ótimo – Augusta gemeu entre os dentes – o que são essas coisas?
O grupo amontoou-se imediatamente contra uma parede às costas deles, pressionando o capitão Donnick com força contra ela.

- Ei, pessoal! Assim vocês vão me sufocar! – ele se debatia sem ar. Ainda não havia percebido seus observadores – Oh-oh...

Ali eles permaneceram durante um tempo que parecia se arrastar, corpos retesados uns contra os outros, nervosos e apreensivos esperando um ataque vindouro daqueles monstrinhos uniformizados... Nada aconteceu.

- Cadê a Hikikomori?! Maldita Sybila... – o Professor Umbrella vasculhava ao redor com os olhos, girando-os feito kamikaze nas órbitas. Deste modo foi possível também esquadrinhar e avaliar o ambiente onde eles se encontravam; tratava-se de um grande galpão de ferro, e quando digo grande não me refiro aos depósitos dos portos terráqueos ou às quadras esportivas que comumente são encontradas por aqui. Quando digo grande, me refiro a monstruosidade de uma área enorme, como a de um parque ou a de um bairro inteiro. A distância entre o teto e o chão era tão grande que o céu parecia cinzento, metálico e repleto de pontinhos luminosos que eram as lâmpadas de iluminação. As paredes eram lisas e frias e incrivelmente altas, repletas de cadeias infinitas de holofotes que iluminavam o conteúdo daquele gigantesco armazém. Aquela era a garagem do império de Taurus: a frota inteira se encontrava em repouso, recebendo reparos e ajustes da trupe de toupeiras uniformizadas que usavam seus narizes como mãos e suas longas garras como chave de fenda. E exatamente no centro do galpão encontrava-se a nave-mãe.

“Eu estou aqui” a voz da Sybila ecoou pelo galpão, mas o grupo de humanos pareceu ser o único a ouvi-la. “minhas forças estão quase no final, não posso mais me projetar fora do corpo, mas posso guiá-los através de pensamento! Sigam em direção à nave-mãe, a porta está aberta. Os mecânicos não farão nada contra vocês”

- Bom, se ela está dizendo... – Augusta foi a primeira a dar um passo à frente, dando de ombros e abrindo caminho entre a multidão confusa de toupeiras estranhas e humanóides. A maioria dela carregava ferramentas ou operava máquinas esquisitas como armaduras robóticas ou pequeninas versões das empilhadeiras motorizadas que encontramos aqui na terra, levando e trazendo caixotes de ferramenta e combustível. O restante do grupo se entreolhou e seguiu a determinada Augusta, tomando muito cuidado para não encostar-se àquelas coisas que acompanhavam seus movimentos com os focinhos. Mesmo sendo completamente cegas, elas tinham plena consciência de que havia pessoas ali, e de que elas estavam se movendo.

- Tem certeza de que essas coisas não vão fazer nada contra nós?! – Fábia torcia a boca em uma série de caretas, com os braços pra cima, fugindo daqueles dedinhos pegajosos que a acompanhavam como antenas ondulando no ar, tentando tocá-la. Era como visitar uma colônia espacial de toupeiras!

- Eu to com uma sensação esquisita... – Ray Ann era a única fora Augusta que parecia não ter medo ou repulsa daqueles pequeninos seres, ela tinha um expressão mista de confusão e naturalidade ao olhá-los mais de perto – certa vez eu sonhei que ia para a lua, e essas coisinhas moravam lá...

- Veja pelo lado bom, seu sonho se realizou! – fez Pietro, ainda com uma das mãos nas costas. Talvez ainda sentisse uma das criaturinhas rastejando por ali.

- Haha, engraçadinho...

Um estrondo seguido do som de uma enorme lata sendo atirada a distância ecoou pelo galpão inteiro, reverberando nas paredes de ferro e batendo contra os tímpanos dos que ali estavam com força total. Todas as toupeiras mutantes voltaram seus focinhos na direção de onde o som viera, e os humanos que caminhavam rumo à nave-mãe do império de Taurus fizeram o mesmo, constatando o horror: o caixote colocado sobre a tampa de bueiro arrebentada foi lançado longe pela pressão vinda de baixo proporcionada por milhares, milhões de seres asquerosos, escuros e pequeninos! As criaturinhas que os perseguiam no esgoto agora eram tantas e estavam tão unidas e homogêneas que mais pareciam um único ser, gigante e salpicado de pontinhos amarelos.

Antes que alguém gritasse “CORRAM”, o Apocalipse Club já havia ativado o modo “pernas pra que te quero”, atropelando as pobres toupeiras-operárias que estavam no caminho e atropelando a si próprios, agarrando-se uns às roupas dos outros no desespero de não ficar para trás. A nave-mãe parecia um vulto distante, e aquela onda negra de monstrinhos-preguiça vinha logo atrás, na cola, engolindo tudo o que encontravam pelo caminho. Nem as toupeirinhas foram poupadas, e as naves da frota de Taurus tombavam sob o peso da massa em movimento frenético. Os esgotos daquele pequeno corpo celeste terraplanado estavam infestados daqueles monstros, e eles estavam furiosos!

- COMO? COMO?! – berrava Pietro logo à frente do grupo. De todos era o mais desesperado.

- CONTINUE CORRENDO E CALE A BOCA! – Augusta deu um tabefe na nuca do rapaz e tomou a frente na correria. Algumas toupeirinhas mais espertas os acompanhavam na fuga chiando como ratazanas apavoradas logo ao lado, o que fez Fábia ter um ataque de risos histérico em meio à crise.

Quando atingiram as proximidades da nave-mãe, seguiram as toupeiras uniformizadas. Pelo visto elas sabiam que caminho tomar para fugir daquela maré da morte, e eles não estavam equivocados na decisão: as touperinhas sobreviventes (umas quinze ou vinte no máximo) escalaram uma após a outra a escada lateral no casco da nave em forma de ferradura, como aquelas escadas de emergência que ficam encravadas na popa dos navios. Pietro foi o primeiro a subir num dos caixotes de ferro mais perto e pular rumo à escadinha, os outros seguiram seus movimentos, pouco depois de Fábia ter posto o último pé no primeiro degrau e abandonado o caixote para trás, a onda o engoliu levando-o pra longe! Essa foi por pouco.

- VAMO, PESSOAL! SUBAM MAIS RÁPIDO AÍ EM CIMA PELO AMOR DE DEUS QUE EU TO AQUI EMBAIXO E... AI! – uma das coisinhas saltou sobre a perna da garota e começou a escalada do seu corpo lentamente, ela chutava e esperneava estrebuchando aos berros tentando tirar o monstrinho das suas costas sem sucesso. Christopher que fora o penúltimo a subir a escada inclinou-se para socar o bicho tentando livrá-la do perigo, e arregalou os olhos quando percebeu que a boca da criatura ficava na barriga ao soltar-se das costas de Fábia e cair lá embaixo, em meio ao mar composto por seus iguais. Espantou-se também ao perceber que eles estavam se acumulando embaixo do grupo, escalando uns sobre o outros, formando uma espécie de pirâmide em direção a eles, tentando agarrá-los!

- GENTE! ELES ESTÃO SUBINDO ATÉ NÓS!

- NÃO PODEMOS IR MAIS RÁPIDO, A ÚLTIMA TOUPEIRA NÃO ESTÁ DEIXANDO O PIETRO ENTRAR NA NAVE! – berrou Augusta, que era a segunda na “fila de espera”.

- COMO É QUE É?! – berrou em coro os quatro logo abaixo.
Pietro discutia ferrenhamente com a nervosa toupeira que gesticulava violentamente contra ele, dando uma bronca em sua língua materna.

- NÃO SAI DA MINHA FRENTE POR BEM, VAI SAIR POR MAL! – pegou-a pelo colarinho do uniforme e lançou-a na multidão de monstrinhos do esgoto logo abaixo, lançando seu corpo pesado para dentro da nave e rastejando mais fundo logo em seguida. Os outros seguiram logo atrás enquanto a toupeira nervosa era engolida pela maré maligna.

- FECHA ESSA PORTA! FECHA! – Ray Ann gritava para Fábia enquanto tentava pôr-se de pé, o grupo agora arquejava no escuro, de quatro e sem fôlego, tentando levantar.
“Não parem por nada! Eles são muitos e estão escalando a nave aos poucos, logo não poderemos levantar voo!” a voz de Hikikomori ecoou mais uma vez. Era o estímulo que eles precisavam para continuar correndo.

- Onde fica a sala de controle?! – perguntou o capitão Donnick tomando a frente nos corredores em arco do interior vermelho da nave-mãe.
“Christopher Umbrella e os outros rapazes podem seguir até a sala de controle, no final deste corredor à direita. Garotas; preciso de vocês no laboratório, que fica um pouco mais longe.” Augusta, Ray Ann e Fábia se entreolharam confusas e deram de ombros “sigam para a esquerda, tomem a direita, sigam reto e peguem o elevador, vocês estarão no laboratório.

- Sim! – fizeram Ray e Fábia juntas – vamos! – tomaram então seu rumo. Os rapazes fizeram o mesmo, e logo o grupo estava dividido dentro da colossal nave-mãe do império de Taurus. Era hora de dar o fora daquele maldito asteroide.

Continua...










'Eita capítulo grande...

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