Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

quarta-feira, 13 de junho de 2012

PARTE DEZESSETE: BEM VINDO AO PLANETA ROBÔ!



Aquela sensação não era nova ou antiga. Eles já haviam passado por aquilo antes, o formigamento de cada centímetro de seus corpos, os estômagos dando voltas, os músculos esticando como se fossem borracha. Aquela era a sensação de estar sendo comprimido pelo hiperespaço, este era o preço que deveria ser pago por espremer corpos tão grandes em buracos minúsculos, falhas na continuidade do universo, não era uma sensação nova. Mas também não era como se aquilo houvesse acontecido antes, havia um elemento desconhecido, algo estranho naquela sensação, não era comum. A dor estava mais insuportável que nunca, luzes estranhas brilhavam na escuridão enquanto a travessia se prolongava. O hiperespaço não era um atalho? Eles deveriam ter chegado ao outro lado quando a sensação de cãibras começara. Havia algo de estranho naquele atalho.

E então acabou. Os segundos que pareceram horas acabaram da mesma maneira que começaram, subitamente e bruscamente. Com um estalo, Christopher Umbrella sentiu seu corpo comprimir ao tamanho normal numa velocidade absurda, cada milímetro da sua pele ardia como o inferno e seus ossos pareciam ter sido triturados por uma britadeira potente. Seu cérebro recebia violentas pontadas como murros de um punho de ferro, e sem intervalo entre elas, o que tornava tudo muito mais difícil. Ao sentir a comida subir ao esôfago, com dificuldade virou-se para o lado e pôs tudo para fora, se sentia uma verdadeira gelatina humana. Talvez ele realmente houvesse virado uma gelatina, só não havia se dado conta ainda. Trovões sonoros reverberaram dentro do seu crânio. Talvez fosse apenas mais um efeito colateral. Quanto mais aquela dor duraria? Ele suportaria? A morte demoraria?

Silêncio, as estrelas estão cantando, e entre elas está aquele rosto, aqueles brilhantes olhos como dois sóis, a pele dourada, delicada, cada traço tão bem desenhado, tão bem feito pela natureza. Seu manto ondulava preguiçosamente no espaço, como se estivesse embaixo d’água, cercado pelas geladas profundezas de um oceano silencioso onde tudo era luz e cor. Parece uma nebulosa, pensou ele. Uma enorme nebulosa multicolor, mudando de matiz a cada curva, a cada dobra, a cada delicado movimento, como um feto recolhido à sua fragilidade num útero gigantesco que o acolhia, que o protegia. Ela está esperando, ele soube naquele momento que ela o estava esperando, ela sempre esteve esperando, ele só não sabia disso ainda.

Seu coração reduziu-se ao tamanho da cabeça de um alfinete, como o universo antes de explodir e dar a luz estrelas, planetas, galáxias e nuvens de poeira como cristal triturado espalhado sobre o veludo negro. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Ele estava sentindo saudades, saudades dela, saudades daqueles olhos, daqueles braços, dos longos fios cor de chocolate que ondulavam entre as constelações estranhas daquele céu noturno alienígena. Saudade daqueles olhos de leoa. Ele queria fazer parte dela outra vez, mesmo nunca tendo feito realmente... Azura.

- Conseguiu acordá-lo? – era a voz de Augusta. Uma mão gelada encostou-se a sua testa morna.

- Não, ainda não. Ele parece estar nos ouvindo agora, mas incapaz de responder. – era a voz de Hikikomori, cansada, fatigada, carregada como nunca antes. Ela estava ficando mais humana a cada dia que passava. Em breve estaria usando roupas também.

- E se ele estiver em coma?! – era a voz de Pietro, apavorada com a possibilidade.

- Improvável, mas não descartável. O que aconteceu à Eremita foi intenso demais – a mão se foi, ele teve vontade de chamá-la de volta, mas sentia uma paralisia tão profunda e angustiante capaz de lhe despertar um desespero tão grande que finalmente Christopher percebeu-se no fundo de um poço, preso dentro do próprio corpo sem poder movê-lo, o que estava acontecendo?

- O que aconteceu afinal? – era a voz de Augusta, parecia que havia acabado de acordar.

- Quando ativei o hiperespaço, os prismas reatores liberaram o último pulso de energia que possuíam, já estavam sobrecarregados... Este pulsar somado à nossa travessia “estuprou” o atalho que pegamos, isso gerou uma energia contrária que afetou nossos corpos.

- Espera um instante, ficamos expostos à energia nuclear maciça e não morremos? – era a voz de Donnick, mais grossa que nunca, séria como sempre.

- Podemos estar morrendo neste exato momento e ainda não nos demos conta! – era a voz de Fábia, apavorada, infantil, alta e estridente. Ela estava viva, enfim. – eu vi num documentário sobre Chernobyl que exposição à radiação pode nos matar tanto instantaneamente quanto a longo prazo! Podemos cair duros, feito frangos aqui mesmo!

- Pelo amor de Deus, Fábia, cale-se. – implorou Augusta, fatigada.

- Parece que os mais afetados pela travessia foram Ray e Chris... – fez Pietro, com preocupação na voz – cara, os fios de cabelo da Ray estão brancos! Tipo, brancos mesmo, igual neve! As sobrancelhas e os cílios estão do mesmo jeito!

- Ela já se acordou? – perguntou Hikikomori.

- Aparentemente sim, mas já voltou a dormir... É tão estranho o comportamento dela, é como se nada houvesse acontecido! Ela age como se estivesse tirando uma soneca no meio da tarde, olhem só pra ela, está até sorrindo!

Só então Christopher deu-se conta de que estavam reunidos no dormitório coletivo. Ele sentiu o ambiente ao seu redor de uma forma estranha.

- Sim, ela disse “só mais cinco minutinhos” quando a cutucamos! – riu Fábia, animada. – eu achei que a nova cor de cabelo ficou ótima... Precisamos fazer essa travessia mais vezes, vai que o meu cabelo volta a ser violeta como era antes!

- Fábia... – chamou Augusta, advertindo-a.

- Sim, sim, eu sei! – a garota bufou.

- Num resumo da situação, estamos completamente ilhados no meio do espaço, presos numa nave sem combustível à deriva... – a voz de Donnick estava distante, talvez ele estivesse próximo à janela olhando a paisagem, tentando reconhecer alguma estrela ou algum braço da via-láctea.

- Somos náufragos no espaço, podemos até escrever uma música sobre isso! – era Fábia de novo.

- Gente, dá pra fazer silêncio, por favor? Eu to tentando tirar um cochilo aqui! – era a voz de Ray Ann! Ela havia despertado! A comoção foi geral, exclamações de alegria preencheram o lugar.

- Você está bem? Está se sentindo bem? – perguntou Hikikomori, preocupada, provavelmente examinando-a de todas as maneiras possíveis.

- Eu estou bem! Só estou muito cansada, e quando digo muito é muito mesmo... – Ray bocejou – posso descansar mais um pouco?

- É o melhor que você tem a fazer no momento... – a Sybila soou desesperançosa. Aquilo era um mau sinal.

A conversa entre os tripulantes despertos da Eremita durou algumas horas, enquanto isso Christopher lutava contra seu próprio corpo, tentando assumir o controle, levantar-se, mexer o mínimo dedinho que fosse. Nada estava acontecendo. Era uma sensação claustrofóbica e desesperadora, ele pôs-se a chorar, e suas lágrimas escorreram das pálpebras fechadas. Augusta foi a primeira a percebê-lo.

- Vejam!

- O quê?! – Ray sentou-se depressa na cama, assustada com o tom de voz alto da companheira. No mesmo instante uma descarga elétrica atingiu Christopher em cheio, foi o suficiente para fazer seu corpo formigar de uma ponta a outra. Surpresa! Ele estava mexendo braços e pernas novamente! Havia sido libertado da prisão corporal! Seu grito preencheu o dormitório coletivo expressando um misto de dor e felicidade que deixou seus companheiros desnorteados, alguns até mesmo gritaram de volta, sem reação àquela situação bizarra enquanto o Professor Umbrella se retorcia no chão ao lado da cama onde antes estivera deitado.

- MAS QUE DIABOS FOI ISSO?! – exclamou Pietro, apavorado.

Ray havia acabado de eletrocutar seu professor de astrofísica. Com um único olhar.

◊◊◊

- Ok, então estamos numa versão um tanto... Esquisita de Quarteto Fantástico? – foi o resumo da conclusão mais plausível até o momento. Sem energia e consequentemente sem iluminação, as esferas luminosas de Alado estava fazendo o trabalho de lâmpadas havia algum tempo, era como um brinquedo de corda: a luz azulada durava algumas horas apenas, período este em que a esfera perdia altitude e brilho. Assim que atingisse o chão e se apagasse era só sacudi-la com força outra vez e ela estaria brilhando e rodopiando no ar como um mini-sol, e justamente sob a luz destes pequenos sóis azuis, com um enorme caco de vidro na mão, Ray Ann admirava sua nova aparência.

Seus cabelos longos, lisos e agora perfeitamente brancos, suas pupilas platinadas como prata líquida, sua pele quente e brilhante. Tudo havia mudado, e ela sentia a mudança em cada célula do seu corpo, a sensação era de estar com a carga completa, carregada até o fim, como se alguém houvesse lhe plugado a uma tomada e ela ainda estivesse recebendo mais e mais energia sem intervalo. Seu corpo vibrava da ponta dos dedos até a sola dos pés.

Ela espalmou as mãos diante dos olhos, maravilhada: elas estavam gerando faíscas e correntes elétricas visíveis que percorriam o contorno dos seus dedos como pequenas serpentes luminosas, aquela atividade elétrica interagiu magnificamente com as esferas que flutuavam no ambiente proporcionando luz, num espetáculo de encher os olhos, pequenos raios descarregavam a agora poderosa Ray Ann nelas, o que as tornava mais brilhantes e as levava mais e mais alto. Logo o ambiente estava completamente iluminado, as esferas estavam brilhando como nunca, proporcionando a iluminação de um potente holofote sobre eles.

- Isso é incrível! – exclamou ela, com um enorme sorriso rasgando seu rosto de uma ponta a outra.

- Isso é injusto, isso sim! – Pietro levantou-se revoltado – porque só ela ganhou poderes e nós não? O outro aqui não consegue nem falar! – ele apontou para Christopher, agora sentado, com a cabeça e os braços enfaixados, apoiado no peito do capitão Donnick enquanto respirava profunda e dolorosamente, Hikikomori o velava de perto quase maternalmente.

- Cada organismo tem uma forma diferente de reagir a uma situação extrema – disse a Sybila – Ray não ganhou poderes, o corpo dela está apenas supercarregado de eletricidade. Mais cedo ou mais tarde ela vai descarregar, como uma bateria que foi utilizada até o fim da sua força...

- Mas depois eu vou poder recarregar de novo, não vou?! – Ray Ann estava vibrando, literalmente, quanto mais alegre e animada ela ficava, a intensidade das correntes elétricas que percorriam seu corpo aumentava, ficando visíveis externamente como raios azuis sob suas roupas, sua pele, entre seus fios de cabelo.

- Ei, cuidado aí Super Choque! – Augusta deu um passo para trás de Pietro.

- Não sei se isso é possível – respondeu Hikikomori, afastando-se pela primeira vez de Christopher para olhar Ray Ann de perto, analisá-la com mais calma. – mas não descarto nenhuma possibilidade, é uma situação muito nova até pra mim, nunca havia visto isso antes...

O sorriso de Ray pareceu estender-se mais ainda.

- Eu me sinto tão poderosa, sinto como se pudesse fazer qualquer coisa! – ela jogou os braços para o alto dando um pulinho e atingiu o teto com uma forte descarga elétrica. Faíscas choveram sobre a tripulação da Eremita que a esta altura já estava jogada ao chão, com as mãos na cabeça, protegendo-se do que poderia vir da nova mutante do grupo.

- Você poderia usar isso para tentar recarregar os cristais do nosso gerador... – sugeriu Donnick levando a mão ao queixo, pensativo. – acho que seria uma boa.

- Ei, isso é uma ideia interessante! – agora era Hikikomori quem parecia tão animada quanto Ray – as descargas elétricas podem estimular o núcleo dos cristais e reativá-los!

- Mas e se isso explodir a nave inteira? Eu não confio muito não... – Augusta era a mais desconfiada de todos, desde que Ray acordara mantinha-se distante, expressão dura, preocupada, os braços sempre cruzados sobre o peito como se procurasse proteção.

- Augusta tem razão, é capaz de...

Algo atingiu a nave pelo lado de fora. O impacto não foi tão forte, mas teve força o suficiente para sacudir a fiação pendurada no teto e fazer o chão oscilar de um lado pro outro.

- Não é possível! Como ela nos achou?! – berrou Fábia desesperada, correndo para uma das janelas tentando enxergar o que havia lá fora – passamos por tudo isso pra nada?!

- Acalme-se Fábia, pode ser apenas rocha ou gelo batendo no casco da nave... – fez Donnick tentando se manter confortável enquanto o companheiro descansava agora escorado em seu ombro.

- Vamos já descobrir o que tem lá fora! – Ray ergueu no alto seu radar em forma de gota. Estava totalmente avariado, com a tela rachada e algumas peças faltando. Apenas um toque dos seus dedos supercarregados foi o suficiente para ativá-lo, para espanto geral.

Imediatamente o radar mostrou o triângulo azul-neon que representava a Eremita. Praticamente grudado à nave no mapa formado dividido em quadrantes havia um enorme, colossal ponto vermelho, com o triplo do tamanho da Eremita. Ele piscava como uma estrela nervosa refletindo-se nas pupilas prateadas da garota, aquilo apavorou o grupo de tal maneira que eles não pensaram duas vezes antes de atravessar os extensos corredores avariados da nave para atingir a sala de controle, onde a parede transparente agora mostrava uma enorme boca de metal repleta de dentes engolindo a Eremita numa só dentada.

A esta altura eles se encontravam em pânico, gritando feito macacos nervosos enjaulados. A nave sacolejava de uma ponta a outra, e após o baque surdo que os levou seus rostos contra a vidraça veio escuridão e o silêncio: do outro lado da parede transparente, pedaços de metal de todos os tamanhos jaziam retorcidos, cobertos por cascas de gelo e rocha. Detrito espacial espremido num mosaico mórbido cujos parafusos, ângulos e formas lembravam rostos humanos retorcidos em caretas de dor.

- Fomos recolhidos – foi tudo o que Hikikomori disse enquanto se punha de pé sobre a parede transparente, afastando os corpos que a esmagavam.

- Como assim recolhidos?! – Augusta tentava chutar o enorme corpanzil de Pietro para longe, mas ele estava sendo prensado pelos seios de Fábia, o que o estava impedindo de se mover. Havia mais braços naquele monte humano do que num polvo.

- Estamos no caminhão do lixo.

O Apocalipse Club – que a esta altura já estava se desvencilhando uns dos outros – se entreolhou confuso.

- E por um acaso tem coleta de lixo no meio do espaço? – exclamou Fábia, confusa, levando o indicador ao canto da boca, pensativa.

- Alguns planetas coletam o lixo espacial para manter o universo limpo, seja na área correspondente ao seu sistema planetário ou um conjunto de sistemas...

- Isso quer dizer que estamos perto da civilização! – com um salto Fábia livrou-se da sua armadilha humana e jogou os braços pra cima, animada. – não estamos tão perdidos quanto pensávamos!

- Temos de encarar a possibilidade de eles não serem amigáveis – fez Augusta limpando a poeira dos seus cabelos enquanto punha-se de pé.

- Mas e se eles forem? E se eles nos derem uma nave nova, ou mesmo se oferecerem para reformar esta?! – Ray também parecia esperançosa.

- Acalmem seus ânimos, podemos não voltar tão cedo para o planeta natal deste caminhão de lixo – a Sybila olhou para baixo, para as carcaças de metal comprimidas embaixo da Eremita. Entre elas haviam pequenos espaços através dos quais era possível enxergar a infinidade de lixo que havia sido recolhido. Parecia infinito. – eles costumam passar anos patrulhando suas áreas correspondentes e adjacências, alguns são atacados por piratas e sequer voltam!

Um arrepio percorreu o grupo coletivamente. E se Aib’Somar os achasse? Ela deveria estar os caçando nos quatro cantos do universo neste exato momento, assim como deve ter feito ao sair viva da explosão de Hyeol-Aeg, o que ainda era um mistério. Como ela poderia ter sobrevivido? Quem a ajudou? O que eram aquelas naves-ouriço que a estavam escoltando?

- Mas eles são pilotados por alguém, não são? – perguntou Pietro, já cogitando a hipótese de sair dali – podemos tentar fazer contato com eles ou...

- Não, impossível, caminhões de lixo ainda serem pilotados por tripulações... Isso não acontece há muito tempo, a maioria atualmente foi substituída por robôs. Pelo menos nos planetas com civilização avançada dos quais se tem notícia...

- Maravilha! Vamos ficar enlatados por um ano inteiro!

- E isso dependendo do que “quer dizer” um ano inteiro para o planeta de onde esse caminhão de lixo veio! – completou Ray – tempo é muito relativo.

- Estamos fritos, resumindo – a voz de Christopher ouvida pela primeira vez desde que ele havia se acordado soou rouca e assustadora. Até ele se espantou. Fraco demais para se por de pé, estava sentado ao lado de Ray Ann no chão.

Fez-se silêncio. Um silêncio que durou infindáveis horas de angústia e ânsia.

◊◊◊

As estrelas pareciam mais próximas naquela noite, e o terminal de descarga de lixo estava a todo vapor, com técnicos zanzando por todo o lado, como formiguinhas transitando entre as gigantescas plataformas, sobrevoando a área montados em pequenos aeromodelos planadores, as luzes piscavam com força e as bocas dos trituradores lá embaixo pareciam famintas. Sucata, pilhas e pilhas de sucata espalhadas pelas plataformas, fumaça, ferrugem, zumbidos, conversas. Esta não era uma noite comum no Setor 13, afinal os caminhões estavam voltando do espaço após meses vagando pelas redondezas estelares, coletando o lixo que muitos desperdiçam. Para eles aquilo era ouro.

Derretida, toda aquela sucata serviria para construir peças novas, e cada minúsculo parafuso era essencial, indispensável. Robôs novinhos poderiam sair dali, era ali que tudo começava. Quase todas as coisas feitas hoje em dia eram feitas de sucata derretida. Não havia mais ferro no planeta há séculos, todo o material ferroso havia sido extraído do solo para construir as máquinas pioneiras, os primeiros androides. Os anciãos da primeira geração. Destes, pouquíssimos haviam cuidado das suas peças a ponto de se manterem originais, a grande maioria deles tinha uma ou outra parte genérica, de ferro fundido. Os mais novos, aqueles que eram completamente feitos deste material reciclado trabalhavam na área de coleta e separação.

- Sonhando acordada de novo, Lucy? – o monitor passou zumbindo no pé do ouvido da androide. Ele tinha a forma de um pequeno ovo com um enorme visor preto frontal, onde dois faróis azuis ocupavam o papel de olhos. Sua boca era representada por um osciloscópio cuja linha se agitava ao som da voz eletrônica. Muitos robôs eram assim por ali. – se continuar desse jeito vai gastar toda a bateria olhando para as estrelas e vão te confundir com sucata!

- Desculpe Mr. Eggwald, não vai acontecer de novo – Lucy voltou seu rosto para baixo. Este não passava de um televisor redondo, um par estranho de antenas cônicas emoldurava-o dos dois lados, seu corpo humanóide como o da grande maioria daqueles que trabalhavam nas plataformas de separação já estava enferrujado em alguns pontos, mas o que mais chamava atenção em Lucy era o que estava sendo reproduzido na tela que lhe servia de cabeça: um rosto humano feminino imitava perfeitamente expressões faciais e até mexia a boca quando Lucy tinha a necessidade de falar.

- Assim espero – e sumiu da mesma forma que surgiu, deixando Lucy perdida em meio aos seus colegas de trabalho que iam e voltavam pilotando pequenos tratores com garras de crustáceo, estas vinham carregadas de ferro retorcido para ser atirado nas caldeiras, lá embaixo, no fogo para onde Lucy voltava seus olhos naquele momento. Cada plataforma possuía um fosso exatamente no meio para onde o metal selecionado iria após ser separado do material inútil.

- Lucy! Lucy! – Andrea, uma boneca eletrônica maltrapilha com poucos centímetros de altura reprogramada para trabalhar na sucataria surgiu montada em uma pequena Planária motorizada flutuante, desviando a toda velocidade dos veículos que transitavam pelas vias aéreas. Lucy estava prestes a voltar ao trabalho quando ela apareceu, sua pilha só ia ficando maior conforme os caminhões de lixo desciam no nível superior e derramavam o material coletado nas esteiras. – Você precisa subir! Precisa ver isso!

- Mas o Eggwald disse que...

- Dane-se o Eggwald, os meninos trouxeram uma nave hoje! Uma nave! E ela é totalmente diferente de tudo o que já vimos antes! Você precisa ver isso de perto!

O rosto humano na tela facial de Lucy expressou perfeitamente um temor, uma dúvida, perturbação. Ela olhou para trás, para a pilha que se acumulava com o rabo do olho e enfim sorriu. Dentes brancos perfeitos emoldurados por lábios vermelhos, suas mãos de metal juntaram-se animadas.

- Me leve até lá!

Nos níveis superiores o movimento era intenso. Ali era a pista de pouso, onde os caminhões pousavam e o lixo espacial era descarregado para depois ser lançado nos quatro túneis laterais de cada plataforma, estes os mandavam para as esteiras num sistema perfeito e sem falhas até então. Somente até os coletores trazerem do espaço algo incomum, que é muito pouco visto, como a carcaça inteira e intacta de uma nave, geralmente elas chegam em pedaços, pandarecos, ou apenas como restos inúteis de explosões. Mas ali ela estava, branca, um pouco amassada e chamuscada em certos pontos, mas inteira!

- Eremita... – fez Lucy, lendo a lateral do casco da nave em forma de concha de caracol. Sua voz eletrônica soando mais chiada que nunca, estava na hora de trocar os alto-falantes. – faz sentido, é um belo nome! – Andrea jogou seus bracinhos ao redor do pescoço de metal da colega.

- Você acha que tem vida extraterrestre dentro dela? – perguntou a boneca, animada.

- Não seja boba, Andrea, se haviam seres vivos aí dentro não teriam sobrevivido tanto tempo à deriva no espaço. O máximo que vamos encontrar aí dentro é...

- ESQUELETOS! – berrou a boneca, mais animada que nunca, saltando do ombro da amiga para o chão, correndo entre as pernas dos enormes e corpulentos androides trabalhadores dos primeiros níveis. Muitos trabalhadores dos níveis inferiores também circulavam por ali, curiosos, os olhos famintos de curiosidade.

A colossal nave do caminhão de lixo tinha exatamente setenta quilômetros de comprimento expressos num corpo em formato de míssil e a cabeça ameaçadora em forma de seta, de modo que a sua bocarra frontal que abria e fechava coletando a sucata no espaço lhe dava a aparência de um enorme tubarão de quatro barbatanas laterais. Estas usadas para acoplar no movimentado porto de descarga, todos estavam reunidos ao redor da Eremita, que coroava uma pilha de metal retorcido como uma joia real, um diamante perdido no lixão, tinindo à luz dos holofotes que o iluminavam naquele momento. Toda a atenção estava voltada para ela, para a Eremita.

- Espero que eles a coloquem no museu espacial – pensou Lucy consigo mesma – seria um desperdício derreter essa...

Os robôs travaram quando uma espécie de portal frontal redondo abriu-se no casco da nave sucateada, faíscas e fumaça escaparam da pequena boca que havia se aberto na concha. Imediatamente, soldados surgiram abrindo caminho na multidão, atravessando a fumaça e a névoa de gosto metálico, tão comum nas plataformas, vinda de baixo, das profundezas das caldeiras. Eles empunhavam armas, estavam curvados sobre o próprio corpo, como um exército eles foram abrindo passagem, empurrando e pisoteando. Andrea quase foi vitima da brutalidade de um daqueles trogloditas de metal, todos iguais: três metros de altura, membros longos e bem divididos interligados por uma fibra de metal negro, prateados e completamente desprovidos de rosto. A parte frontal das suas cabeças não passava de uma superfície lisa que refletia o ambiente ao redor friamente.

- Esses robôs fazem meu antivírus apitar! – bufou Andrea voltando para a segurança das proximidades de Lucy antes que fosse realmente esmagada. Em poucos segundos havia uma dúzia de robôs prateados cercando a pilha de sucata coroada pela Eremita, estes carregaram suas armas quando o primeiro vulto surgiu da fumaça, empunhando uma arma dourada reluzente de brilho intenso. Os outros vieram longo atrás, sombras fantasmagóricas iluminadas pelas explosões do interior da nave, uns eram pequeninos, quase tão pequeninos quanto Andrea, outros eram altos, corpulentos. Silhuetas femininas e masculinas intercalavam-se, seis ou sete no total, era um espetáculo.

- Não to conseguindo ver nada com essa fumaça! – bradou uma voz grossa, masculina com certeza.

- Saudações, terráqueos! – era uma voz estridente, feminina, animada. Lembrava a voz de Andrea.

- Fábia! – gritou outra voz feminina, mais sonora que a primeira – me poupe, nós que somos os terráqueos aqui!

- Então como devemos chamá-los?!

- Não sei, não sabemos nem em que planeta nós estamos! – era uma voz masculina, não tão grossa quanto a primeira, mas ainda assim masculina.

- Alguém sopra essa porcaria dessa fumaça pra longe? Eu não... Opa! – o indivíduo que falara escorregou em alguma peça solta e quase desceu a pilha de sucata rolando, mas foi apoiado pelos outros antes que caísse. – obrigado!

- Alienígenas, Lucy! – era Andrea ao pé do seu ouvido – eu não lhe disse?! Eu não lhe disse?!

- Não são alienígenas, Andrea... – a fumaça estava se dissipando, as silhuetas estavam tomando forma, cor. – são... – Lucy quase reiniciou o sistema com tamanha surpresa – HUMANOS!

Muitos robôs pifaram na mesma hora. Caíram desmantelados como marionetes no chão, soltando mais faísca e fumaça que a Eremita, seus companheiros correram em seu socorro.

- Hu... Manos?! – Andrea parecia mais assustada que Lucy, começou a tremer feito um motor velho – mas eles não estavam extintos?!

- No nosso planeta sim... Mas não conhecemos o universo lá fora... – Lucy estava maravilhada, suas mãos unidas diante do peito, seus olhos azuis brilhando como duas estrelas. A imagem que reproduzia um rosto humano na tela da sua cabeça-monitor oscilou como se estivesse recebendo interferência no sinal. – o universo é uma caixinha de surpresas.

◊◊◊

- Será que eles são todos robôs nesse planeta? – o contraste entre a pele dourada de Ray e seus novos cabelos brancos era muito mais belo à luz daquela cela coletiva. Um amplo quadrado branco, com luzes nos quatro cantos.

- É bem provável – fez Hikikimori, ainda estava zanzando de um lado para o outro da cela, tentando achar uma falha, uma porta, uma janela oculta, qualquer coisa. Sem sucesso. Eles haviam sido expostos a um gás e sonífero e acordado ali, amontoados outra vez como um bolo de carne cheio de pernas e braços. – não é muito comum, mas há boatos de que existam planetas onde os robôs evoluíram a ponto de substituírem o elemento orgânico vivo e criado sociedades semelhantes às nossas. Provavelmente os habitantes originais deste planeta os construíram, mas por algum motivo foram extintos e os robôs assumiram a partir daquele ponto, construindo outros robôs até...

- Povoarem o planeta de máquinas! – exclamou Donnick – é incrível!

- Sim, é maravilhoso... Utópico! – fez Christopher, levantando para esticar os músculos pela milésima vez.

- Quanto tempo mais eles vão nos deixar aqui dentro? – indagou Augusta, incomodada – espero que eles se lembrem de que somos seres vivos e ainda temos necessidades fisiológicas! – estava apertada para ir ao banheiro.

- Não sei se vocês repararam, mas isso já está virando costume! – exclamou Pietro, aderindo ao movimento Hikikomori em busca de uma saída. – já é o segundo planeta em que isso acontece, nós chegamos e eles nos trancam numa cela, onde estão os direitos humanos aqui fora no espaço?!

- Pelo menos em Nammamane tínhamos conforto e comida! – disse Fábia, sonhadora, os olhos brilhando ao lembrar-se do último planeta em que permaneceram por um longo período.

- Civilizações são hostis por natureza, pensem só – começou a Sybila, desistindo da busca e sentando-se ao chão na companhia dos outros companheiros que descansavam de pernas cruzadas em posição de borboleta. Ela juntou os longos cabelos escuros escorridos com as mãos e trouxe-os para o peito por cima do ombro – nos planetas selvagens que visitamos, nós simplesmente chegamos, pousamos, montamos acampamento, permanecemos alguns dias e então partimos. Nesse meio tempo só fomos incomodados por feras e alguns parasitas inconvenientes...

Todos olharam para Pietro. Ele revirou os olhos ao lembrar a situação embaraçosa em que ao se aliviar atrás de uma moita acabou atacado por um artrópode verde peculiar que muito lembrava as lacraias terrestres, em um planeta na região de Leão.

- Naqueles em que a vida havia evoluído a ponto de certos indivíduos montarem sociedade fomos recebidos com hostilidade, principalmente nos planetas em que o armamento bélico já havia sido inventado – completou Christopher ao lembrar-se da vez em que desceram num astro tão grande quanto Júpiter, desértico exceto pela existência de um pequeno mar ao norte. As criaturas que viviam ali pareciam estar passando por uma era das trevas, como o período medieval na Terra, mas a aparência dos seres era o que mais lhe chamara a atenção: tinham orelhas de cachorro caídas, enormes olhos castanhos, bico de papagaio e cabeça triangular, fora o corpo esquelético em que se arrastavam para cima e para baixo em vestimentas tão rudimentares.

- Acho que é fato comum social ter medo do desconhecido, do que veio de fora... – completou Augusta cruzando os braços ao lembrar-se da Terra e de como as coisas funcionavam por lá. Uma saudade violenta a arrebatou num abraço mortal, seu coração reduziu ao tamanho de um grão: fazia um longo tempo que eles não viam um rosto humano, outras pessoas senão seus próprios companheiros. Ela imaginou como as pessoas da Terra lidariam ao saber que existem planetas inteiros cobertos por organismos colossais em forma de raquete que alimentam-se da luz do sol e se comunicam através das raízes fincadas no chão, que interligam a superfície inteira numa cadeia de criaturas pensantes, feitas de carne e osso, mas sem olhos, sem boca, sem braços, sem pernas. Meio-vegetais meio-animais. Talvez aquele último planeta tenha sido o que mais lhe marcara em termos de biodiversidade.

- Mas é estranho... Não estamos lidando com uma sociedade natural, estamos lidando com robôs, eles deveriam ser estúpidos e seguir ordens, não ter medo de nós! – fez Ray Ann dando de ombros e cruzando as pernas ao sentar-se no único banco do lugar, este que aparentemente fazia parte da parede.

O susto foi tão grande que eles poderiam ter morrido ali mesmo. Não pelos estilhaços de concreto e metal retorcido que os atingiram em cheio ou pela nuvem de poeira e fumaça que os envolveu imediatamente após a luminosa explosão, mas pelo barulho reverberante que aquilo fez e pela força com que ela os lançou todos numa só mão contra a parede como bonecos de madeira velha.

- Há muitas coisas que nós robôs somos... – no meio da névoa, um vulto surgia. Pequenino, feminino, voz eletrônica, esguio e elegante. Seus olhos eram dois faróis azuis na neblina. – estúpidos com certeza não é uma delas! – a voz artificial deu uma risadinha sonora, soou quase como o toque de um celular.

- Pare de se exibir, Mekare, não temos tempo para brincar! – outro vulto surgia, tinha a mesma altura do primeiro. Este era claramente masculino pela silhueta. Olhando atentamente ele aparentava ser um pouco mais alto que o primeiro, e um tantinho mais robusto.

- Pessoal... – uma voz grossa, mas claramente feminina veio do lado de fora do enorme portal disforme e violento que havia se formado com a explosão, ecoando nas paredes de metal do que aparentava ser um corredor muito bem iluminado. Ela soou como um agouro, um aviso, o tempo estava passando.

- Ora, Cvalda, tenha dó! – era a voz da primeira, Mekare. – você sozinha arrebenta os Sem Rosto com um braço às costas!

A outra bufou em resposta. Robôs bufavam? O Apocalipse Club estava atordoado demais para reparar naquilo, dois deles já haviam até desmaiado. Fábia estava de boca aberta esparramada no colo de Donnick esmagando-o com todo o seu peso entre os restos de uma cela branca. Hikikomori, Pietro e Christopher puseram-se de pé assim que os três vultos tornaram-se visíveis quando a nuvem de poeira esvaiu-se.

A primeira, menor de todas era claramente uma androide, uma boneca perfeita, pele de porcelana e olhos de cristal profundamente azuis, brilhantes como estrelas. Se a sua pele não emitisse aquele estranho brilho de polimento e suas juntas não fossem escuras exibindo a fiação coberta por uma liga de borracha, eles poderiam jurar que ela era humana. Estava enfiada num apertado maiô azul-marinho que contrastava com suas curtas madeixas cinzentas que compunham o cabelo perfeitamente liso da boneca num corte Chanel de franja.

O segundo, claramente do mesmo modelo e da mesma série de fabricação pela cor do cabelo e pelos profundos olhos azuis cristalizados, seguia em base a mesma descrição da androide Mekare, exceto por estar enfiado num calção de banho colado azul marinho que deixava claramente explícita a ausência de sexo. Juntos eles eram um par de anjos artificiais, com rostos perfeitos e tão bem desenhados com seus interiores preenchidos de circuitos, engrenagens e parafusos. Sorriam como se tivessem sentimentos, interagiam como se fossem humanos. Réplicas perfeitas de duas existências escoltadas por uma cyborg brutamontes cujo único elemento distinguível na confusão de fios e peças remendadas do seu exterior era o rosto, claramente humano e assustadoramente inexpressivo. Esta possuía uma lente focal vermelha no olho esquerdo exatamente como a de Aib’Somar, o que causou arrepios coletivos.

- O que vocês estão esperando?! Viemos salvá-los! – exclamou a sorridente Mekare.

Uma incômoda sirene começou a soar.

Continua...











quinta-feira, 7 de junho de 2012

PARTE DEZESSEIS: A VINGANÇA DE AIB'SOMAR!


- Ainda olhando para a pedra? – Hikikomori surgiu por trás, da escuridão azulada à meia luz anil da câmara-dormitório, feito um espectro lânguido e curvilíneo ao contemplar da sua silhueta. Ela pôs as duas mãos nos ombros do Professor Umbrella e deu dois fortes apertos que o fizeram curvar-se para frente de dor. Ele sempre teve muitos nós de tensão nas costas desde pequeno, apertar aquela área mesmo de leve era um sacrilégio doloroso.

- Sabe o que isto significa? – ela apertou de novo, ele deu um gritinho baixou e olhou feio para trás. – isto é o peso do universo sobre as suas costas. É isto que causa os nós musculares nos seus ombros.

- Tudo bem, eu entendo, só não toque aí de novo, tudo bem? – ele mudou-se para a cama da frente, liberando espaço para que a Sybila sentasse.

- Eu tenho capacidades curativas, posso desfazer estes nós com a força do meu pensamento, você não quer tentar?

- Não, muito obrigado... – Christopher fez uma careta no escuro enquanto observava o brilho opaco da pedra que antes adornara a testa de uma pequena Nammajana, imaginando a dor lancinante das fibras musculares voltando à sua posição original lentamente.

- Você tem razão, iria doer um pouco, desculpe.

- Não, não se desculpe, você só queria ajudar. – Christopher guardou a pedra numa caixinha branca perolada e a pondo delicadamente embaixo de um dos “colchões”. As camas do dormitório da nave foram dispostas em formato de estrela bem no centro de uma câmara circular enorme, tinham o formato de cápsula que ao deitar-se, fechava-se como uma flor sobre o corpo daquele que iria adormecer, simulando temperatura e conforto ideais para as oito horas de sono necessário para o organismo humano.

Demorou muito tempo até que a nave ficasse pronta. Era uma nave comum que acabou sendo reformada pelos engenheiros de Muttu com a ajuda de Pietro e Donnick para trazer o máximo de conforto possível a seres humanos, as últimas naves em que eles estiveram não tinha acomodações lá muito confortáveis, sendo a pior de todas a Nave-Mãe do Império de Taurus, roubada por singelas toupeirinhas quando eles ainda estavam no solo de um planetóide distante e desértico...

O grupo de viajantes do espaço passou ainda muito tempo em Nammamane antes de finalmente poder partir, tempo o suficiente para acompanharem a cerimônia e as homenagens à jovem Rajakumari com o coração em cacos e ruminar aquilo por semanas a fio. Aprenderam um pouco mais sobre a cultura Nammajana, o modo de vida peculiar que eles levam sem saber o que é a escuridão total durante as horas mortas que chamamos de noite, entre outras coisas interessantes que serviram para o aprendizado de como os sistemas sociais podem ser diversificados e bem planejados fora da bagunça que é o governo no planeta Terra.

Até chegar o dia de partir, eles já haviam se acostumado a levar borrifos de spray rosa todos os dias ao se acordar, acompanhar a expansão da espiral da cidade avançando cada vez mais rápido graças ao benefício de Nammajanas nunca dormirem ou realmente se cansarem, explorar Muttu dentro de um dos veículos em forma de ostra que estavam sempre pra lá e pra cá, aprenderem cantigas, danças e lendas folclóricas que apesar da tecnologia massiva e assustadoramente avançada ainda vigoram entre o povo com virilidade.

As cantigas deles nada mais eram que estalos ritmados produzidos pelos seus tentáculos – os Nammajana tinham duas maneiras diferentes de se comunicar: através de sons como os dos golfinhos ou pequenos estalos produzidos pela vibração dos tentáculos, quase o mesmo sistema usado pelos anéis do rabo de uma cascavel terrestre, sendo o primeiro mais utilizado para se comunicar com animais ou xingar uns ao outros. – já suas lendas vinham dos tempos dos estômagos de Mãe Dirgha, de modo que eram bem macabras e esquisitas. Suas danças realmente faziam jus a ornamentação de seus prédios e praças, era algo muito oriental, muito indiano, mãos demais e pés demais em uma sincronia perfeita jamais quebrada enquanto eles estavam em movimento, algo belo e alienígena, um balé de longos membros cor-de-rosa.

O Apocalipse Club também viu de perto o tratado de paz enfim ser assinado entre aqueles que moravam nas profundezas abissais e os habitantes de Muttu, como uma forma de compensar a morte prematura dos companheiros que partiram em resgate atendendo ao chamado de Rajakumari. Em outras circunstâncias isto teria gerado uma guerra terrível, mas até que a aparência grotesca dos habitantes do oceano de Nammamane era compensada pela racionalidade e pela lógica apurada que seus enormes cérebros proporcionavam. Eles eram criaturas extremamente práticas, racionais e simplistas, assimilavam tudo de uma maneira tão rápida e fácil, arranjavam soluções para os problemas do dia-a-dia e apoiavam as decisões grupais com uma facilidade tão grande que não era de se espantar estarem milênios à frente da humanidade.

Não havia uma doença que não pudesse ser curada. Também não havia um equivalente para “fome” na língua dos Nammajana, já que eles se alimentavam de quase tudo, o que era bem nojento às vezes, mas que fazia com que a cidade e os indivíduos estivessem sempre limpos. Uma utopia estranha e assustadora às vezes, mas tão simples e tão aceitável, uma síntese de como poderíamos viver em paz se fizéssemos apenas a nossa parte e apoiássemos uns aos outros. A maioria dos sentimentos humanos era desconhecido ali, em especial os que traziam malefícios a convivência em grupo, talvez o histórico genético daquelas criaturas nunca houvesse desenvolvido os hormônios necessários para ativar as áreas do cérebro que geravam tais sentimentos pela simples ausência de necessidade. Era incrível.

A estrutura familiar também era peculiar: dois pais e uma única mãe. O equivalente masculino da espécie possui glândulas que produzem tanto “óvulos” quanto “espermatozóides” ao mesmo tempo, mas estes não possuem um compartimento interno, como o útero, por exemplo, para acomodar o embrião de modo que ele cresça até que se torne maduro o suficiente para vir ao mundo. A fêmea possui este “compartimento”, e ela recebe o embrião após a cópula dos machos e passa a gerar o pequeno Nammajana a partir de então. Dois pais e uma mãe.

O povo Nammajana era algo realmente fora de série, foi triste deixá-los quando finalmente a hora chegou. Depois do desaparecimento de Mãe Dirgha após a morte de Rajakumari, eles passaram a sentir-se tão vulneráveis e desprotegidos que chegaram a contratar Snehitas para fazerem a proteção externa da cidade, impedindo que as feras aquáticas adentrassem no território da cidade, o que antes era o trabalho da deusa-serpente. Deste modo, a partida dos visitantes do espaço os deixou realmente abalados e mais tristes que antes, mas era a chegada a hora de partir, e a cerimônia de despedida que aconteceu no círculo mais interno de Punyapuri deixou doces lembranças aquecidas nos corações de todos os integrantes do Apocalipse Club.

- O que é esse som? O que eles estão fazendo? – Ray Ann tinha os olhos lubrificados por lágrimas que teimavam em vir, cada vez mais fortes e independentes. Eles já estavam dentro da concha gigante, da bela espiral cor-de-rosa repleta de espigões adornando seu casco, aquela seria a casa deles durante um longo período, eles seriam como caracóis agora.

- Eles estão... Cantando – Augusta estava emocionada, as duas mãos cruzadas sobre o peito com força.

- É a mesma canção de Dirgha! Foi o som que eu a ouvi produzir certa vez, como o canto das baleias do nosso mundo! – Christopher também não continha as lágrimas, elas vinham sozinhas, embaçando o painel que exibia Punyapuri em forma de alvo lá embaixo enquanto a nave subia à superfície, ficando cada vez mais distante. Ele tinha o rosto grudado contra a enorme tela em forma de vírgula e as mãos espalmadas sobre a imagem da cidade sendo deixada para trás, a subida estava ficando cada vez mais veloz.

- Nunca pensei que fosse me apegar tanto a um lugar... – ele foi puxado para fora de seus devaneios pelo som das risadas de Ray e Fábia vindos de algum lugar ali próximo, elas brincavam entre os corredores da nave o tempo inteiro. – ainda por cima tão... Estranho e assustador quanto Nammamane. Nós estávamos embaixo d’água cercados de criaturas apavorantes por todos os lados, mas eu me sentia tão... À vontade.

- Isso acontece porque você não é um alguém superficial, você enxergou Nammamane, Muttu, com os olhos do seu coração – Hikikomori pareceu sorrir por um instante.

- É, talvez tenha sido isso...

- Eu fico feliz que vocês tenham aprendido tanto, crescido e evoluído tanto ao longo desta viagem... – começou a Sybila, com certo tom de orgulho. Orgulho não era um sentimento comum à espécie dela, ela estava adquirindo cada vez mais humanidade e entrando em simbiose com os costumes humanos, a convivência já estava a transformando numa mulher humana completa – e isto porque ainda não estamos nem no começo da jornada, sequer passamos pelo pior. E fico tão feliz que tenhamos resolvido tudo sem violência em Nammamane, até agora não acredito que presenciei o inflexível Aib’Paguru se comportando de forma racional e compreensiva. A convivência com os Nammajana realmente mudou ele, ele não lembra em nada o consorte de Aib’Koletis que um dia conheci.

- Mudanças. – balbuciou Christopher, de cabeça baixa.

- Sim.

Fez-se silêncio por um momento.

- Já perdemos a conta de quanto tempo se passou desde que deixamos a Cosmogony, não é? – ele quebrou o silêncio. – acha que um dia voltaremos para casa? Para nossas vidas normais? Para nossas famílias?

Hikikomori respirou fundo.

- Eu sou uma Sybila, sou parte do universo, sinto cada estrela queimando como o meu coração batendo, e posso sentir cada forma de vida exercendo sua existência nos lugares mais remotos se assim me convir. Posso também profetizar quando esta for a minha missão, mas no momento ela é apenas guiá-los aos seus destinos finais...

- Tudo bem, tudo bem, eu já entendi – ele bufou – vamos morrer no final disso tudo, não vamos? Não vou tornar a ver a Terra de novo e nem um deles também vai. Eu sinto isso.

- Não se precipite Christopher Umbrella. O poder de construir o futuro está em suas mãos, você decide se irá morrer ou não. – ela então pôs-se de pé, seus quase dois metros de altura produziram uma longa sombra sobre aquele que costumava ser o Professor Umbrella. Em nada mais lembrava o que um dia fora. A Sybila curvou-se cordialmente e caminhou em direção à saída do dormitório lentamente. Até as passagens da nave tinham aquele formato exótico de gota, de vírgula, quase sempre estava deitada como nos monitores, raras vezes estava de pé como nas passagens, e tudo era muito branco e limpo, as paredes eram incrivelmente polidas e peroladas, tão lisas quanto o próprio piso. O único defeito do lugar era a iluminação: pequenas placas circulares acopladas ao teto tornavam o lugar um tanto sombrio e fantasmagórico derramando sua fraca luz outrora azul, outrora rosa.

A iluminação só deixava de ser algo subliminar quando se tratava da sala de controle. Lugar onde eles passavam grande parte do tempo analisando os mapas digitais das áreas que seriam cobertas dali por diante, tentar interpretar aqueles símbolos mirabolantes da grafia Nammajana era uma tarefa no mínimo desgastante, até a própria Hikikomori que parecia ser a única a entender aquilo vez ou outra se confundia. Ali a iluminação era forte, e o sistema de funcionamento dos computadores era praticamente gêmeo ao do Cruzeiro Espacial Delta: as imagens eram projetadas em hologramas a partir de uma esfera turquesa brilhante que flutuava poucos centímetros acima de um pedestal, este mais parecia uma réplica em menor escala das torres de Punyapuri, exatamente no centro da câmara. Era a partir daquela esfera que se controlava a nave inteira e mais além.

- É como brincar de bola de cristal! – disse Fábia certa vez, alguns dias após deixarem a atmosfera de Nammamane, enquanto cruzavam uma nebulosa multicolorida de bilhares de quilômetros de extensão. Controlar a nave não era muito difícil, você poderia usar uma única mão ou as duas se preferisse, assim indicando à direção em que ela deveria seguir com leves movimentos sobre o sensor magnético, contornando o objeto cintilante com a palma da mão delicadamente. A única regra era jamais tocá-la: tocar na esfera turquesa era como encostar-se aos tentáculos de uma medusa. Cada movimento possuía seu significado específico que ia desde o abrir e fechar de portas até o lançamento de mísseis, disparo dos canhões de plasma e tiros de laser. Afinal, eles deveriam estar preparados para tudo o que encontrassem no meio do caminho, de modo que a nave deveria estar equipada com no mínimo algum tipo de arsenal.

A tripulação da Eremita (assim Fábia e Ray batizaram a nave) também foi equipada com seu próprio arsenal: além de receberem suas armas antigas de volta, receberam também armas novas exatamente idênticas àquelas usadas pelo exército Nammajana – que mais tarde revelou-se nada menos que uma manada infinita de robôs metamorfos que assumiram a forma dos nativos do planeta para se misturar à população e vigiá-los. – estas consistiam em lanças elétricas, metralhadoras, bazucas e outras coisinhas que eles sequer tinham ideia do que faziam, mas que possuíam um design excêntrico e um tanto colorido em alguns casos.

- Estamos praticamente preparados para a guerra – disse o capitão Donnick empunhando uma das lanças elétricas. Ela estalou. Havia uma unidade de cada arma para cada tripulante, assim como uma câmara particular da nave para cada um deles também. Seu interior possuía uma série de salas de lazer para jogos, quadras para esportes e uma piscina para relaxar. Era o equivalente a um pequeno prédio viajante em forma de concha de caracol, flutuando na imensidão do espaço traçando o caminho rumo à próxima missão, ao próximo Aib a ser derrotado, um passo a menos em direção ao último destino, à resposta para todas as perguntas.

Não demorou muito para que os meses começassem a passar rápido outra vez, e quando menos se esperava, um ciclo terrestre de rotação ao redor do sol fechou-se. Não houve motivos para que o Natal e o Ano Novo deixassem de ser comemorados pelos humanos, nem Hikikomori ficou de fora das celebrações. Ela havia aprendido tanto com eles e assimilado tantos comportamentos puramente humanos, nada mais lhe era tão estranho como no começo. Suas irmãs do mosteiro diriam que ela estava poluída, logicamente. Ela já não pensava dessa forma há algum tempo. Ela apenas havia se habituado, e muito mais rápido do que o esperado por uma Sybila.

- Feliz Natal, tripulação! – Christopher ergueu sua taça contendo o suco cor-de-rosa reluzente proveniente da fruta verde em formato de coração que crescia em abundância no último planeta visitado por eles. Após Nammamane, muitas luas e sistemas planetários acabaram surgindo no meio do caminho, seja por obra do destino ou pelo simples erro de coordenadas nos mapas arcaicos cedidos por Aib’Paguru na partida. A grande maioria deles era primitiva e estava habitada por todo o tipo de vegetais e animais inimagináveis. Em algumas luas era impossível distinguir animal de vegetal, seres com coluna vertebral e pulmões fazendo fotossíntese era uma coisa fora de série para Augusta, a “astrobióloga” oficial do grupo.

Os outros também ergueram as taças aos risos e abraços, comemorando a data cristã implantada no solstício de inverno apenas para se sentirem mais próximos de casa, aquecidos por doces lembranças de um passado que talvez jamais volte. À mesa um banquete repleto de aves e frutos do mar os esperava, algumas tortas geladas exalavam um forte cheiro de goma de sorvete. Tudo ali era produto do reabastecimento da nave a cada novo planeta, a cada novo sistema solar.

- Vamos atravessar a base da Nebulosa do Cone em cinco minutos! – exclamou Ray Ann checando um aparelhinho em forma de vírgula que exibia o radar mostrando a posição da nave com relação à área em que ela se encontrava. Fábia pulou no ombro da amiga para enxergar melhor.

- É exatamente por isso que decidimos fazer a ceia no observatório! – revelou Donnick, rindo da cara de espanto dos companheiros de tripulação – eu e Ray não queríamos contar pra vocês, mas estudamos os mapas e vimos que exatamente à meia noite do dia terrestre de 25 de dezembro estaríamos cruzando uma nebulosa! – ele colocou os braços pra trás estufando o peito, orgulhoso.

- Não sabíamos qual seria a nebulosa, afinal os nomes estão diferentes e as posições dos objetos estão diferentes, já que não estamos observando o espaço do nosso planeta natal, mas graças a uns cálculos básicos conseguimos descobrir hoje cedo! – ainda com o dedo deslizando sobre a tela do aparelhinho, Ray Ann acionou o comando que tornou uma parede inteira transparente, exibindo o exato momento da lenta aproximação da nave à nuvem de gás triangular, cuja ponta arredondada reluzia coroada por três estrelas que num brilho mútuo jorravam luz como um único e poderoso astro. Labaredas vermelhas ondulavam ao redor da nuvem escura de poeira num balé doce e ao mesmo tempo perigoso. Aquela travessia seria dura, em contrapartida os fogos de artifício comuns na Terra àquela época do ano não chegavam sequer aos pés daquele espetáculo que se desenhava diante dos olhos dos cosmonautas.

Então para espanto geral, no momento em que a nave penetrou-a e tudo se banhou de vermelho, Pietro gargalhou alto pegando o resto do grupo de surpresa num susto coletivo que fez Fábia soltar um gritinho abafado.

- Vocês por um acaso sabem onde a Nebulosa do Cone fica? – ele perguntou cheio de confiança, como se houvesse acabado de descobrir o segredo da criação do universo, e aquela resposta lhe fosse única e exclusiva, de mais ninguém.

Eles se entreolharam confusos. Ele cruzou os braços.

- Dá pra acreditar na coincidência? Fica no Aglomerado da Árvore de Natal!

As exclamações vieram em uníssono, surpresa, felicidade, alegria, admiração. Quando a nave adentrou nas profundezas da nebulosa e tudo se tornou mais escuro, as luzes internas do observatório totalmente decorado pelas garotas pela manhã acenderam, revelando um enorme pinheiro improvisado (na verdade aquela planta lembrava mais um cacto sem espinhos do que qualquer outra coisa) enroscado por cordas de neon reluzentes coloridas. As mesmas cordas haviam sido usadas para escrever “Feliz Natal” na parede, ao lado de uma estrela cadente, um anjinho e algo que deveria ser uma representação do Papai Noel.

- Bela tentativa, meninas – brincou Pietro sentando-se à mesa.

- Ora, cale a boca – exclamou Augusta emburrada. Havia sido um esforço enorme deixar tudo impecável para aquela noite.

Ray Ann pegou os globos prateados que ganhara de presente de despedida do Príncipe Alado há algum tempo atrás e sacudiu-os até que produzissem seu brilho costumeiro e começassem a flutuar acima das cabeças da tripulação da Eremita. Com aquela iluminação, logo pareceu que a nebulosa havia invadido a nave, e deste modo eles transformaram a bancada de pesquisas em um antro de paz, harmonia, risos e brincadeiras. A festa não demorou muito para acabar, os preparativos foram cansativos demais.

Por algum motivo aquela noite foi muito mais gostosa de se dormir do que qualquer outra no espaço, apesar das turbulências ocasionadas pelas lufadas de gás no interior da nebulosa. Acordar pela manhã no dia seguinte e se deparar com o aglomerado de nebulosas e estrelas da Árvore de Natal brilhando no horizonte cada vez mais distante não teve preço. Completamente impagável. Este foi o primeiro Natal do Apocalipse Club no espaço, o primeiro de muitos que ainda viriam.

◊◊◊

Um ano depois.

- Objeto estranho se aproximando da nave! – a voz de Donnick atravessou os quatro cantos da nave sutilmente, afetando os ouvidos de cada um dos tripulantes em suas atividades diárias tentando evitar o tédio. Pietro pingava suor na quadra de basquete enquanto Ray Ann, Fábia e Augusta brincavam de cantoras na sala de karaokê. Augusta e Christopher relutaram em sair da água morna da piscina, mas no final acabaram cedendo, vestiram seus macacões feitos da fibra elástica e borrachuda produzida pela criatura rastejante do oceano de Nammamane e partiram rumo à sala de controle às pressas.

A parede frontal inteira estava transparente, mostrando o universo em eterna combustão lá fora a brilhar em toda sua magnitude. Das estrelas fulgurantes, um enorme globo prateado vinha flutuando preguiçosamente, refletindo o brilho dos astros em sua superfície perfeitamente redonda e espelhada. A tripulação inteira estava reunida ao redor do pedestal onde Donnick pilotava a Eremita com cautela, diminuindo a velocidade aos poucos. A coisa vinha exatamente em sua direção sem vacilar, como se tivesse a intenção de se aproximar, quase como se possuísse vida própria.

- Estranho... – Augusta semicerrou os olhos – eu tenho a impressão de já ter visto isso antes...

- Vejam! – Ray Ann ergueu os braços mostrando a tela do seu pequeno radar ao restante do grupo – estão vindo outros objetos como este de todas as direções! – o radar mostrava pontinhos vermelhos se aproximando em alta velocidade do triângulo azul neon que representava a Eremita.

- Será que invadimos algum tipo de campo minado? – Pietro aproximou-se da parede transparente para observar melhor a aproximação da coisa.

- Estou com um mau pressentimento... – Augusta cruzou os braços e levou as unhas à boca, nervosa.

- Onde está Hikikomori? Onde ela está? – a Sybila quase nunca saía da sala de controle, onde ela estaria? Ele vasculhou o local com os olhos, sem sucesso, sua guia não estava ali... Naquele momento.

- Ativem o escudo magnético, posicionem as armas, deem toda a carga nos canhões de plasma! – ela adentrou na sala de controle esvoaçante, seus longos cabelos escuros ondulando ferozmente enquanto seu rosto se fechava em uma máscara de pavor.

- O que está acontecendo?! – berrou o Professor Umbrella em resposta.

- Piratas espaciais!

Silêncio.

- Como é que é?! – Pietro não estava acreditando.

- Isso realmente existe? – Augusta estava confusa, a esfera prateada se encontrava agora perigosamente próxima da Eremita.

- Pensei que fosse coisa de ficção – Ray fez uma careta.

- O que estão esperando?! Assumam seus postos! – o grito de Hikikomori soou muito mais alto que um grito humano, zumbiu nos ouvidos da tripulação durante um tempo atordoando-os momentaneamente – Ray e Fábia; confio em vocês para montarem dupla nos canhões principais! Pietro e Christopher; preciso de vocês dois nas metralhadoras de laser! Augusta, você é perfeita para supervisionar o escudo e averiguar os danos, você assume os controles!

- Ué, mas...

- Você continua exatamente onde está! – Hikikomori interrompeu Donnick rispidamente enquanto poltronas brancas aerodinâmicas eram elevadas em suas plataformas ao nível da câmara de controle. Cada uma delas vinha equipada com um capacete, um joystick prateado em cada braço e um holograma circular que mostrava o exterior em menor escala, exibindo o posicionamento dos inimigos e o da nave com relação a eles. Um pequeno alvo lhes serviria de mira.

- Isso vai ser o máximo! – Pietro vibrou.

- Como jogar vídeo game!

- Exato, mas ao contrário do jogo, nós não temos muitas vidas para serem gastas à toa... – fez Ray, séria. Augusta foi a primeira a colocar o capacete, os outros o estavam pondo quando um enorme holograma vermelho materializou-se diante deles, distorcido violentamente por alguma interferência. Quando a transmissão se estabilizou, eles não acreditaram no que estava parado diante dos seus olhos, há poucos metros de distância, entre a parede transparente e as poltronas dos controladores.

- Saudações, terráqueos! – fez a familiar voz debochada daquela que já havia sido derrotada uma vez há muito tempo atrás. Um fantasma do passado distante havia retornado.

- Não é possível... – Hikikomori exibia os dentes e unia as sobrancelhas numa careta mista entre terror, nojo e descrença, sulcos desenharam-se entre seus olhos, feito o focinho de uma gata arisca prestes a ser atacada.

- Ora, é claro que é possível, Sybila Hikikomori, sua tola! – gargalhou Aib’Somar em sua versão ciborgue. Todos os seus membros haviam sido substituídos por peças de metal, um lado inteiro da sua face estava tomado por uma máscara prateada cravejada por uma lente de foco vermelha como a das câmeras fotográficas, esta ia e voltava conforme sua visão focava no rosto de um dos seus alvos. Seu chifre esquerdo jazia partido ao meio, de modo a lembrar assustadoramente uma versão feminina e eletrônica de um clássico vilão televisivo das eras passadas. Ela gargalhou outra vez – vocês me subestimaram, humanos. Não os culpo, vocês não me conheciam... Até agora! Que este dia seja o marco de minha vingança... – ela apontou seu longo dedo metálico em direção a Christopher Umbrella – e da sua derrocada, Cavaleiro de Ouro!

Do lado de fora da nave, os enormes globos prateados explodiam em formas humanoides perversas, milhares delas, criando braços e pernas, se esticando e retorcendo até assumirem a aparência natural dos androides metamorfos que compunham o exército de Aib’Somar: seres sem mãos, sem pés e sem rosto, o reles molde de uma criatura sem alma, sem vida, composta por minúsculos átomos de uma matéria desconhecida, alienígena, indestrutível e mortal. Uma liga metálica como nenhuma outra.

- Eles estão avançando! – berrou Augusta. – alguns já se chocaram contra o escudo da nave, estão tentando penetrá-lo!

O holograma circular diante dela mostrava os pontos em que o escudo repulsivo magnético estava sendo forçado externamente. Do lado de fora, os androides transformavam seus braços em lâminas, canhões e britadeiras furiosas atritando contra a parede invisível de polígonos a toda potência.

- Nos vemos em breve, humanos. Não vai demorar muito até que meus bebês arruínem a defesa deste enlatado que chamam de nave – com um risinho confiante e um sorriso debochado no rosto, Aib’Somar desapareceu da mesma maneira que surgiu. No horizonte estrelado, uma frota de naves semelhantes a gigantescos ouriços foi surgindo, vultos enormes e pesados repletos de espinhos despontando entre o pontilhado de esferas prateadas guiados por uma nave em forma de ferradura.

- Não temos chances contra eles, são muitos! – o radar de Ray Ann estava tomado por pontinhos vermelhos que se espalharam no mapa feito sarampo, brilhando em conjunto e banhando seu rosto naquela luz macabra de presságio mortal – e destes cinco objetos que estão se aproximando, dois tem a densidade de um planetoide! Estamos perdidos!

- Não podemos desistir sem lutar! – exclamou Pietro socando o braço da sua poltrona, já havia colocado o capacete e estava se preparando para começar a atirar contra os alvos.

- Pietro tem razão – corroborou Christopher, colocando seu capacete com cuidado e assumindo o controle das metralhadoras de laser ao lado do companheiro. – a vitória nem sempre é certa, mas devemos nos certificar de que perderemos com honra!

- YAY! – berrou Fábia, animada, queimando a largada ao dar o primeiro disparo do canhão de plasma que arrasou terça parte dos androides que se aproximavam da nave pela esquerda, o impulso jogou para trás aqueles que estavam de pé e fez com que a nave deslocasse alguns metros para a direita. A tripulação encontrou-se boquiaberta com a potência e o poder bélico de uma nave tão pequena, Donnick mais que rapidamente pôs-se de pé para assumir o controle da esfera e devolver a Eremita para a posição estratégica inicial.

- Pelo visto nós não estamos tão desprotegidos quanto pensávamos! – fez Ray com um risinho nervoso, esbugalhando os olhos e assumindo os joysticks da sua poltrona. – vamos lá então! – ela deu de ombros e fez o segundo disparo de plasma, que arrasou mais uma multidão de androides metamorfos que se aproximava pela direita. Porém, não obstante o quão poderoso o disparo fosse ou quantos inimigos ele houvesse tirado do caminho com a sua potência, o exército de androides que escoltava a frota de naves de Aib’Somar aparentemente era infinito: o número de alvos no horizonte triplicava a cada explosão, quanto mais eram explodidos, mais deles surgiam aos montes, mais rápidos e mais fortes.

- Augusta, eles estão se acumulando no escudo repulsivo, ative a chave de repulsão maciça imediatamente! – a Sybila passeava as costas das poltronas, indo de uma ponta a outra a passos largos, seus olhos dançavam entre os hologramas dos controladores e a parede invisível que mostrava a situação do universo lá fora, estava nervosa como nunca estivera antes.

- É pra já! – um teclado holográfico surgiu sobre o colo da garota, ela digitou o comando e apertou o botão principal, foi o suficiente para fazer a área correspondente ao escudo dobrar de tamanho com um impulso elétrico que afetou célula por célula dos androides que estavam tentando penetrá-lo para chegar à Eremita. Estes tornaram-se uma massa disforme de liga metálica espalhando-se no vácuo.

- Atirem contra eles, Pietro, Christopher! – ordenou Hikikomori. Não houve tempo para pensar, os operadores dos disparadores de laser iniciaram uma série de tiros certeiros que tiraram grande parte dos atordoados da jogada, aqueles que antes estavam pendurados no escudo prestes a destruí-lo. A expansão do escudo o enfraqueceu em algumas partes, era essencial que eles não permitissem a aproximação de nenhum dos androides, caso de vida ou morte.

- Sabem como fazer isso, não sabem? – perguntou Hikikomori aos dois, e iniciou as coordenadas. Seguindo os comandos da Sybila eles ativaram lasers ocultos ao longo de toda a circunferência da nave, desde a primeira volta da concha até o seu último e pontiagudo anel, no topo da Eremita. Compartimentos circulares abriram-se por todo o corpo da nave colocando para fora metralhadoras de todas as formas e tamanhos, a visão da aparência externa da Eremita a fazia parecer uma exótica concha repleta de espigões flutuando no vácuo, habitada por alguma espécie marinha de encher os olhos. Estes espigões tão atrativos, em sincronia iniciaram então uma chuva de disparos azuis letais, aniquilando uma área de quilômetros inteiros daquelas criaturas disformes que se aproximavam famintas por destruição.

Feito um pião letal, ela girava em torno de si própria enquanto efetuava uma leva de disparos automáticos sem pausa. Isto aniquilou uma parte relevante do exército inimigo, mas não todo ele. Ainda haviam muitos para serem aniquilados quando os lasers esquentaram ao extremo, sobrecarregando grande parte das metralhadoras.

- Parem os disparos! Estamos com os motores em sobrecarga, mais um pouco e vamos nos tornar uma panela de pressão gigantesca! – berrou Hikikomori para Pietro e Christopher, que empolgados quase deixaram a advertência passar. – conto com vocês duas...

Algo atingiu a nave em cheio com um baque surdo, fazendo-a rodopiar no vácuo descontroladamente. As luzes falharam e as sirenes de alerta iniciaram seu canto fúnebre e agourento como os berros das aves de rapina, a energia oscilava, indo e voltando como a respiração fraca de um enfermo que já não consegue puxar o ar. Tudo ao redor vibrava e reverberava com a força do impacto, a tripulação da Eremita estava descontrolada e completamente desnorteada, divididos entre proteger suas vidas e tomar o controle de volta. Outros projéteis estavam sendo lançados contra eles, estes passavam de raspão no casco da Eremita, zunindo em seus ouvidos: as grandes naves que se aproximavam estavam finalmente atacando, tão próximas que pareciam gigantes prestes a esmagá-los.

Comparada àqueles cruzeiros espaciais a Eremita era um veleiro que poderia ser aniquilado a qualquer momento, eles não tinham chance alguma! O primeiro disparo real feito pelos inimigos havia avariado a nave aos extremos, forçar os cristais alimentadores seria morte na certa, explodiria a Eremita de dentro para fora espalhando os restos mortais pelo universo para toda a eternidade. Eles estavam completamente sem saída, bater em retirada já estava fora de questão, os motores não possuíam forças para isso. A jornada havia terminado, então? Era assim que tudo acabaria?

- Não podemos! – urrava Augusta à altura das sirenes. Ray jazia desacordada em seu colo. – Não podemos fazer isso! Estamos completamente aniquilados, desista!

- É a nossa única chance, temos de arriscar! – Hikikomori assumira o lugar de Donnick no controle da direção, este havia quebrado a perna em dois lugares no momento em que o impacto que tirou a Eremita da jogada o lançou contra o chão. Estava entre a vida e a morte com a cabeça apoiada no colo de Christopher que se esforçava para mantê-lo acordado com tapas leves no rosto. Todos haviam abandonado seus postos para ajudar uns aos outros, o ataque havia causado estragos tanto fora quanto dentro da nave, a tripulação estava aos pedaços.

As cinco grandes naves inimigas estavam praticamente em cima deles, enormes canhões apontados exatamente na sua direção, prontos para efetuar o disparo de misericórdia.

- RENDAM-SE, HUMANOS! RENDAM-SE E EU TEREI PIEDADE DE VOCÊS! – a voz de Aib’Somar ecoava através dos corredores da Eremita.

- NUNCA! – urrou Christopher.

- ENTÃO PREPAREM-SE PARA VIRAR POEIRA!

Os canhões estavam a postos, a circunferência dos seus enormes canos estavam acendendo aos poucos, a carga total estava sendo dada. Era a hora da morte.

- Não aqui, não agora. – Hikikomori fechou os olhos e desenhou um S sobre a esfera turquesa, traçando uma seta sobre ele com a ponta do indicador e em seguida um círculo. Ela banhou-se em rosa, as sirenes calaram-se, tudo tornou-se escuridão, um manto de silêncio caiu sobre a tripulação arrasada – ATIVAR HIPERESPAÇO! – anéis de luz formaram-se ao redor da esfera agora rósea, ela expandiu-se e os engoliu vorazmente, assim como toda a extensão da Eremita. O campo de força cor-de-rosa inflou-se no espaço como um balão rosa, e em seguida retrocedeu ao tamanho original na velocidade da luz até compactar-se tanto a ponto de gerar um impulso antes de sumir, levando a Eremita consigo. Uma explosão colorida poderosíssima originada do ponto em que desaparecera lançou as monstruosas naves da frota de Aib’Somar para longe. O pulsar foi forte a ponto de fazer com que duas das naves se chocassem e explodissem logo em seguida num show de cores e luzes.

- NÃO! NÃO! DE NOVO NÃO! – a nave de Aib’Somar capotou no espaço três vezes antes de se chocar contra uma das suas companheiras e partir-se ao meio. A explosão que veio em seguida foi tão colorida e majestosa quanto a primeira, se a Arquiduquesa não virou poeira no dia em que Hyeol-Aeg caiu, havia se tornado agora, juntando-se às estrelas, à poeira, à nuvem multicolor da nebulosa que as explosões estavam formando.

Continua...