Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

segunda-feira, 30 de abril de 2012

PARTE CATORZE: O LAMENTO DE MÃE DIRGHA!

Quando a enguia colossal regurgitou o Cruzeiro Espacial Delta no pátio interno do palácio, uma multidão de Nammajana – assim eles se alto-intitulavam – estava reunida do lado de fora da branca muralha perolada, curiosos, nervosos, com seus pequeninos tentáculos vibrando de excitação. Suas cabeças de lula inchadas aumentavam e diminuíam conforme filtravam a água, composto químico tão vital para eles quanto o oxigênio para nós humanos. Os veículos em forma de ostra da imprensa estavam em alvoroço ao redor dos pavilhões infinitos do palácio, planando do lado de fora dos muros enormes aos montes, a poucos centímetros das torres que o compunham, sem nunca invadi-lo. Isso seria um desrespeito para com Aib’Paguru, seu salvador. Um crime inafiançável. Atravessar a muralha que separa Punyapuri do resto de Muttu sem ser convidado era como matar outro Nammajana: imperdoável.

Mas isso não intimidava a admiração do povo para com aquelas torres que subiam tanto quase a ponto de alcançar a tão perigosa superfície, onde qualquer coisa que se movia se tornava presa fácil para as mandíbulas achatadas e letais das Prani. Torres construídas como bonecos de neve: esfera branca sobre esfera branca, seguindo a ordem natural da menor sobre a maior até seu último componente ser coroado por uma espécie de gota de cristal, através da qual os raios de sol atravessavam fugazes vindos da superfície para se diluir sobre o palácio em um espectro multicolorido. Para os olhos de um Nammajana o espetáculo era muito mais belo, graças à capacidade de enxergar além das simplórias sete cores e seus tons que nossos olhos são capazes de captar através do espectro luminoso.

A cabeçorra de Mãe Dirgha ficou enfiada exatamente no centro do palácio durante longas horas, enquanto isso seu corpanzil de cinquenta quilômetros espiralava acima da cidade bela e pacificamente, lançando sobre as casas a sombra cilíndrica da sua extensão poderosa ao mesmo tempo em que agitava as profundas águas geladas onde Muttu havia sido construída. Enchendo os olhos daquele povo que um dia a adorou e morou em suas costas com o espetáculo das ondulações delicadas de seu corpo ao sabor do ir e vir das bravas correntes marítimas que corriam acima da metrópole.

O grupo de visitantes espaciais foi recebido por mais cinco Nammajana que adentraram a nave exatamente como o Nammajana de metal retorcido dentro da ostra, – aquele que se apresentou como Aib’Paguru a eles – pela abóbada acompanhados de um intenso brilho azul, estes não falavam a língua humana e eram absurdamente asquerosos. Se sua versão de metal já era grotesca, a versão orgânica da criatura era um horror no sentido mais primitivo da palavra. Seis olhos saltados, três de cada lado da cabeça inchada em forma de seta, tentáculos minúsculos que escondiam a boca e retorciam-se como vermes, três pares de membros longos e finos tão compridos que os faziam parecer girafas rosadas donas de um torso quase humano. O par de membros que lhes serviam de braços quase sempre estava em posição de louva-a-deus, eram pouco maiores que cavalos de raça e exalavam um odor pútrido de feira às seis da tarde.

Estes vieram para recolher as armas e qualquer objeto que pudesse oferecer perigo a um Nammajana, carregando aparelhos às costas que bombeavam a água através de quatro tubos luminosos para dentro de suas cabeças pesadas – era visível a luta que eles travavam para se manter equilibrados fora d’água, seus corpos eram totalmente desproporcionais à espessura de suas pernas e ao tamanho de seus pezinhos de artrópode – estes indivíduos também vieram munidos de uma espécie de “arma”, uma bazuca que não servia para feri-los (apesar de Pietro e Chris terem feito um escândalo enorme ao verem descer aqueles aparelhos intimidadores), mas apenas para gerar cápsulas, bolhas impermeabilizantes que os mantivessem secos e os impedissem de afogar.

Assim, a câmara de controle do Cruzeiro Espacial Delta foi inundada, e a própria força das águas os içou para cima, para o novo mundo em que haviam chegado por mais uma artimanha do destino. Christopher Umbrella, aquele que um dia fora o pacato professor de astrofísica, agora em um caminho sem volta rumo às incertezas de uma profecia ancestral vasculhava as águas cristalinas e coloridas acima da sua cabeça em busca de Mãe Dirgha. A ex-deusa serpente já não estava mais lá, seu corpanzil tectônico se afastava aos poucos da capital construída em espiral ao redor de Punyapuri, até que nada mais restava senão a sombra ameaçadora de seu tamanho ondulando à distância, um monumento em movimento emitindo ondas sonoras deliciosas como o canto das baleias terrestres. Algo melancólico, profundo e doloroso. Quase um lamento, o lamento de alguém que um dia já foi deusa.

- Rajakumari? – Don pôs as mãos na cintura – espera um pouco, como ela pode se comunicar conosco através do vidro? – aqueles que estavam descansando em pufes muito próximos à vidraça da sala de estar levantaram-se e em passos lentos estavam recuando para trás de móveis e esculturas estranhas. Fábia e Ray chegaram ao ponto de correrem para trás da bancada que dividia aquela agradável sala de repouso da cozinha do lugar, por pouco as duas não derrubaram um dos aquários que ostentavam as coloridas algas marinhas que ornamentavam o apartamento provisório. Um quarto impermeabilizado na torre mais distante e mais alta de Punyapuri, a cidade-palácio sagrada no coração de Muttu.

A gritaria foi generalizada quando a criaturinha que vos falava atravessou a vidraça como se fosse um fantasma, enroscando-se no Professor Umbrella após flutuar alguns centímetros no ar em sua direção. Quatro perninhas finas deram a volta completa no tronco humano de Christopher enquanto os braços da criatura envolviam seus ombros num abraço mortal. A cabeça de lula estava prensada contra seu rosto e aquele cheiro de peixe podre característico dos Nammajana invadiu seu cérebro revirando seu estômago como um furacão de náusea imediata. Seu reflexo foi o mesmo de Pietro ao ser agarrado pelas costas nos esgotos de Hyeol-Aeg: correr, gritar e se debater: um monstro marinho do tamanho de um São Bernardo estava o agarrando e jogando todo o seu peso contra o seu corpo.

- TIRA! TIRA! TIRA ELA DE MIM! TIRA! – não obstante, jogou-se ao chão e iniciou um ritual de rolo compressor descontrolado. Donnick tentava se aproximar, mas os braços e pernas de Christopher se debatendo não permitiam tal façanha, Pietro foi o único com iniciativa e coragem para ajudá-lo sem pensar duas vezes: jogou-se de barriga em cima do professor, que bufou como se houvesse recebido um soco no estômago quando o peso do amigo o atingiu em cheio e o esmagou por completo: a jovem Nammajana, Rajakumari Paguru já estava longe deles, do outro lado da sala, enroscada num dos aquários cilíndricos. O modo como seus tentáculos vibravam feito chocalhos de cascavéis e todo o conjunto de movimento do seu corpo (inclusive aquele som semelhante a alguém gargalhando embaixo d’água) sugeria que ela estava... Rindo!

- Desculpe se os assustei! – ela continuou rindo, escorregando para o chão aos poucos e em seguida lutando para manter o equilíbrio fora d’água. Ela também possuía um aparelho ligado a sua cabeça por tubos e uma espécie de tiara em volta dela, uma tiara que ostentava uma enorme pedra azul-marinho cujo arco separava o primeiro par de olhos vermelhos dos outros dois pares secundários. Olhando daquela forma ela era bem menos asquerosa que seus parentes e muito mais humana que eles. – eu só queria dar as boas vindas! Me perdoem!

- Da próxima vez – fez Christopher, arfando apoiado nos joelhos – me avise quando for tentar me sufocar! – disse, entrecortando a frase com sua respiração tresloucada.

O silêncio imperou durante um tempo enquanto o grupo se recuperava do susto e a pequena Rajakumari mostrava que não representava perigo algum, sentando-se como um cachorrinho a espera da ordem do dono. Seus tentáculos minúsculos agora se retorciam preguiçosamente, seus três pares de olhos piscavam em sincronia enquanto sua cabeça inchava e esvaziava conforme o fluxo e água que entrava e saía enviado pelo aparelho.

- Agora que estão mais calmos, me apresentarei de novo – disse a criaturinha, e pela primeira vez o grupo percebeu que ela não movia músculo algum para falar, sua voz ecoava dos alto-falantes de uma coleira especial em volta do seu pescoço rugoso e transparente – sou Rajakumari Paguru, conselheira auxiliar e inventora nomeada oficialmente pelo Conselho de Muttu! Resolvi vir até vocês para ver com meus próprios olhos do que todos estão falando! – ela soava animadíssima. – os soldados me contaram que Mãe Dirgha os resgatara das florestas de alga e os trouxera para o pátio principal do palácio a mando do Sanrakṣaka! Eu vi o momento em que sua espaçonave invadiu a atmosfera do nosso planeta e se chocou contra as ilhotas flutuantes das Prani! Eu não acreditei no momento, achei que estivesse ficando louca, mas é verdade! Temos visitantes de outro sistema planetário, isso não acontece há muitos Śatamānada...

Todos a observavam confusos, apreensivos e distantes, amedrontados. Hikikomori mantinha-se próxima da criatura com o cenho franzido pronta para reagir a qualquer ataque.

- Oh, me desculpe, isso equivale a um ciclo de 500 varṣagaḷa, mas provavelmente eu estou falando alavadês com vocês! Perdoem-me de novo! – ela voltou a emitir o som que talvez significasse uma risada. Todos continuavam em estado de choque, ou se entreolhando apavorados ou observando cada movimento daquela criatura com asco, em especial o dos tentáculos que pareciam mais um bigode cobrindo a sua boca – o Sanrakṣaka não faz ideia de que estou aqui, e ele não pode saber de maneira alguma! Antes de mais nada quero que vocês mantenham segredo!

- Quando você fala SanrakṣakaI... – começou Hikikomori, desconfiada.

- Eu me refiro ao nosso salvador e soberano Aib’Paguru! – Rajakumari disse aquele nome com profunda devoção – por algum motivo ele não quer que vocês tenham contato com o mundo exterior, e nem eles com vocês. Ele tem estado nervoso desde que vocês chegaram e não trocou uma única palavra sobre o assunto com ninguém do Conselho de Muttu, só dá ordens atrás de ordens, e a mais recente é essa... Ninguém entra e ninguém sai dessa torre!

O grupo estava sem palavras. Permaneciam apavorados demais para dizer alguma coisa. Foi Donnick quem quebrou o silêncio, olhando de relance para uma apreensiva Hikikomori enquanto dava alguns passos em direção ao monstrinho. Ela retribuiu o olhar, sabia o que ele tinha em mente.

- Você diz que já não recebem visitas do espaço exterior há algum tempo... – começou, de cenho franzido – o que aconteceu com os últimos visitantes que Nammamane recebeu?

- Sinto muito, senhor, mas naquele tempo eu ainda era uma larva! – ela deu uma risadinha animada – mas tenho de ir direto ao ponto, preciso saber tudo sobre vocês! Tudo! Sou uma estudiosa e dedico mais da metade do meu tempo apreendendo história, cultura, geografia e idiomas, por isso preciso saber: de onde vieram, de que espécie vocês são, os costumes de seu planeta, tudo! Tudo!

Enquanto Rajakumari falava, Hikikomori e Donnick se entreolhavam como quem compartilha de um importante segredo. Os outros apenas observavam a troca de olhares tentando interpretar o que aquilo significava. Provavelmente a Sybila não estava os contatando através de ondas mentais por precaução. Os Nammajana se comunicavam através de estalos produzidos por suas bocas, porém desde que ali chegara havia captado um número significativo de ondas cerebrais, talvez houvesse mais de uma maneira de se comunicar por ali.

- Tudo bem, o que sabemos até agora então? – começou Augusta esticando os dedos para começar a contabilizar as informações apreendidas pelo breve contato com Rajakumari: sentinelas, ou kavalugara como eles eram chamados, apareceram do lado de fora das janelas patrulhando e ela teve de partir às pressas.

- Eles não dormem, o dia deles nunca acaba porque eles possuem dois sóis... – respondeu Pietro revirando os olhos, já desanimado por não haver a horinha sagrada do descanso que é à noite

- Um de cada lado do planeta! – berrou Ray Ann levantando a cabeça em meio ao seu jogo de baralho (pelo menos o conjunto de cartas em forma de vírgula repletas de desenhos coloridos estava sendo usado para essa finalidade por ela e Fábia, já estressadas e entediadas de tanto esperar por sabe-se lá o quê). – acho um absurdo isso.

- O cérebro deles aprende dez vezes mais rápido que o cérebro humano... – completou Christopher, assistindo pela milésima vez o documentário sobre a vida sexual das Prani, os machos da espécie ostentavam quatro falos em forma de tentáculo e isso era nauseante, porém curioso.

- Aib’Paguru não tem um corpo fixo... – fez Fábia se espreguiçando após ganhar mais uma partida do seu joguinho improvisado de baralho alienígena, irritando Ray.

- Mas isso nós já sabíamos! – disse Chris voltando-se para uma séria Hikikomori – nossa amiga Sybila nos deixou isso bem claro.

- Exato – Hikikomori levantou-se – seu corpo original é desconhecido, ele está sempre pilotando um robô à distância, e geralmente o “avatar” de Paguru possui pinças ao invés de mãos.

- Será que ele é um caranguejo gigante? – Fábia olhou para o teto, pensativa. Ray riu baixinho.

E de repente, como num relâmpago onde a ameaça é vislumbra após o feixe derradeiro de luz, o rosto de Chris perdeu toda a cor, o sangue lhe escapou da face instantaneamente após o choque de realidade.

- Não! – ele berrou, levantando-se e jogando o pufe onde estava sentado longe, quase acertando por pouco Pietro – Não! Não! Não!

- O que foi, o que aconteceu?! – Hikikomori correu para os seus ombros, tentando em vão acalmá-lo.

- Aib’Paguru opera o seu corpo à distância, não opera? – disse o professor com lágrimas nos olhos.

- Sim... – Hikikomori já havia entendido onde ele havia chegado, e o sangue também correu do seu rosto. Donnick foi o segundo a se levantar irado exclamando alguma indignação, bem baixinho.

- Ele pode nem estar nesse planeta! Ele pode estar comandando tudo de longe! E nós estamos presos aqui no fundo desse oceano sem saída! Perdidos! – sem perceber, Christopher já estava urrando. Augusta cruzou os braços e sacudiu a cabeça em desaprovação, Fábia iniciou um choro baixo e Ray, já tão acostumada àquelas situações perturbadoras, começou a recolher o baralho alien friamente. Já estava cansada de se debater e chorar diante daquilo tudo, era como bater o pé esperando que a montanha saísse do lugar.

Sua vida, sua família, seus amigos, sua casa... Tudo parecia tão distante e onírico, as lembranças eram doces e cheirosas, suaves e surreais. Outra Ray, outra época. E como será? Como será que a Terra ficou após o primeiro ataque alienígena da história da humanidade? A mídia noticiou? Ou o governo abafou? Qual a desculpa que eles deram dessa vez? Mais um acidente no espaço graças a uma falha técnica? E os corpos das vítimas, onde estão agora? Só de pensar em tudo o que ela passou, em onde ela estava agora. Tudo parecia um pesadelo com o qual ela não se importava tanto quanto deveria, apenas o aceitava. Tanto tempo havia passado desde Cosmogony, mas a lembrança soava tão próxima, e as coisas destoavam tanto da realidade que tudo parecia estar acontecendo ao mesmo tempo, sem divisória de passado, presente ou futuro.

Talvez aquilo que Hikikomori dissera no começo desta jornada fosse muito mais prático do que teórico, muito mais do que ela chegou a imaginar. Aquilo sobre o tempo em si ser um conceito totalmente humano. Sobre a inexistência de uma linha temporal no espaço. O cérebro humano não foi feito para pensar dessa maneira, e pensar demais em coisas assim acabaria a enlouquecendo mais cedo ou mais tarde. Era hora de manter o foco: escapar de Nammamane.

Mesmo que isso parecesse impossível àquela altura.

◊◊◊

- Eu sabia que eles viriam mais cedo ou mais tarde. Eu sempre soube – sem os efeitos de computador, a voz de Aib’Paguru era muito mais antiga, profunda, soava como algo marinho, perverso. Como a maré entrando e saindo de uma gruta na praia.

- E o que você fará a respeito deles agora, mestre? – o arquiduque possuía um servo de confiança, assim como todos os outros Aib de Azura. Este tinha a voz rouca, como se usufruísse do tabaco desde a infância, ouvi-lo era difícil, interpretá-lo era um desafio. Não passava de uma lesma montada num robô em forma de copépode, seus olhos extensíveis escapavam por entre as cavidades oculares feitas especialmente para ele. Suas pinças batiam nervosas.

- Por enquanto nada... Por enquanto – uma nuvem de bolhas de ar subiu em direção à luz da abertura no teto daquele aposento escuro e frio. Algas cresciam ali embaixo por toda a parte, pequenas criaturas rastejantes das profundezas arrastavam-se sobre pedras e tesouros perdidos. Cabos ligados a telões em forma de vírgula (completamente cobertos por muco e detritos orgânicos marinhos) exibiam o mundo lá fora, Nammamane prosperando em paz – sem as armas eles são apenas humanos inofensivos. Não me preocupo com eles aqui em baixo. Qualquer tentativa de fuga é morte por afogamento.

Fez-se silêncio por um minuto, mais uma nuvem de bolhas de ar subiu em direção às fissuras do teto, borbulhante, tentando escapar rumo à superfície. Agitando as águas geladas e agourentas das profundezas daquela carcaça abandonada de nave espacial, há pouquíssimos quilômetros de Nammamane.

- O que ainda está fazendo aqui Kraken? Já está dispensado. – apesar do modo como falava, o arquiduque não parecida nervoso. Deveria estar, na verdade, por passar metade do tempo enclausurado numa salinha apertada que mais parecia o interior de um submarino naufragado.

- Sua preterida, Rajakumari, foi vista rondando a torre dos prisioneiros.

As águas ali embaixo se agitaram inesperadamente, nuvens de bolhas nervosas subiram em direção às frestas do teto baixo, como se algo estivesse se revolvendo na lama e no limo do lugar.

- Os kavalugara conseguiram encontrá-la?! – a voz abissal tornou-se ameaçadora.

- Ela desapareceu antes que pudéssemos fazer alguma coisa, lamento mestre.

- Volte para dentro daquele robô Nammajana e fique de olho em Punyapuri. Não vou poupar o seu corpo gelatinoso caso algo saia do controle, nem por uma falha mínima que seja!

O corpinho de lesma do mar espremido dentro da réplica robótica de copépode retorceu-se de pavor e deixou o lugar nadando rumo às frestas no teto, deixando para trás os destroços naufragados da primeira nave que chegou àquele planeta selvagem, muito antes de Muttu ser erguida. Quando os Nammajana ainda moravam nas costas da serpente Dirgha, e tudo era ignorância.

A floresta de algas era muito mais tenebrosa ali, perto das fossas e fissuras abissais onde os renegados moravam, próximo das raízes das quilométricas algas azuis e entre as pedras vulcânicas pontiagudas. Ali embaixo todo o tipo de criatura nociva se retorcia em busca de alimento, crustáceos minúsculos fingiam ser um só piscando como vaga-lumes, criaturas ostentando pescoços compridos e seis patas espalmadas como remos que se esticavam repulsivamente para fora dos seus cascos vasculhavam por entre os galhos roxos de alguma planta aquática, procurando o que comer. Kraken cuidou de sair dali o mais depressa possível, não queria virar o almoço enlatado de alguma fera marinha.

Após um tempo que pareceu longo demais para a espera humana, mas que provavelmente não passara de poucas horas para um Nammajana – Ray jurou de pés juntos que um dia inteiro se passou, tentaram averiguar através do tablet de Augusta, mas o aparelho estava descarregado havia algum tempo. – o grupo de Christopher Umbrella foi surpreendido por um banquete enviado até eles de forma misteriosa: flashes luminosos os cegaram por alguns instantes e em seguida o balcão perolado branco que dividia a enorme câmara redonda estava permeado de longas travessas em forma de meia lua ornamentadas por algas marinhas coloridas que transformavam os “pratos” do cardápio em verdadeiras alegorias. Pareciam mais esculturas do que alimento.

Isso sem contar que algumas coisas ali servidas eram realmente muito estranhas e até um tanto repulsivas. Havia uma espécie de foca azul em miniatura – talvez algum tipo de peixe – numa bandeja feito um leitão à pururuca, e não muito longe da criaturinha também jazia tostada uma verdadeira barata gigantesca com pinças de lagosta e antenas retorcidas em espiral. O cheiro que ela exalava não condizia a sua aparência: enchia a boca dos famintos viajantes do espaço de água. Talvez os pratos mais aceitáveis do self-service alienígena marinho eram peixes mutantes levemente semelhantes aos que existem na terra e coisinhas roxas enormes que pareciam camarões. Fora uns rolinhos de alga colorida que lembrava sushi.

Uma mensagem holográfica exibida logo em seguida lhes dizia que análises feitas com o DNA de fios de cabelo e restos de pele morta tornaram possível que identificassem os nutrientes necessários nos alimentos para que o organismo humano funcionasse perfeitamente, e baseado nessas análises um banquete de boas-vindas estava sendo oferecido aos visitantes do planeta.

- Se estamos embaixo d’água, como eles conseguiram cozinhar este alimento? – Fábia largou os palitinhos que seguravam seu sushi por um instante para indagar algo que não lhe saíra da cabeça desde o primeiro vislumbre da refeição.

- Cale a boca e continue comendo – Augusta enfiou um bolinho verde goela abaixo da garota antes que ela levantasse mais dúvidas que a fizesse ficar mais receosa para com aquela comida do que já estava.

E as surpresas não pararam por aí: após o banquete – que foi saboreado primeiramente com apreensão e desconfiança para logo depois virar uma disputa de glutões – tubos brancos desceram do teto e os envolveram em prisões claustrofóbicas durante alguns minutos. Neste meio tempo eles foram borrifados por uma fumaça cor de rosa vinda de cima, uma espécie de ácido que derreteu cada peça de roupa que usavam camada por camada até deixá-los completamente nus. A única que conseguiu escapar da armadilha foi Hikikomori, rápida demais para ser surpreendida, tentava libertar seus companheiros que estavam aos berros com seu poder de telecinese, sem sucesso. A hora da morte havia chegado então, eles derreteriam até virar sopa humana, era o que pensavam, mas antes que a fumaça pudesse prejudicar seus organismos, os tubos que os aprisionavam retrocederam ao teto.

Numa espécie de exposição ao ridículo coletiva, os companheiros se viram como vieram ao mundo uns na frente dos outros, o que para Hikikomori não era nada demais, afinal de contas ela usava um tapa-sexo de borracha na maior parte do tempo, de modo que ela não entendeu muito bem o porquê dos escândalos e das risadas. Coisas de humanos. Humanos estes que ficaram mais tranquilos ao perceberem que as travessas do banquete foram substituídas por pilhas de roupas novinhas feitas de uma espécie de látex mal cheiroso; que mais tarde revelou-se através do holograma falante ser feito do muco que uma criatura gigantesca chamada Balli soltava enquanto rastejava no fundo do oceano feito uma lesma. Eram coladas ao corpo, azuis, elegantes e dotadas de ombreiras pontiagudas, carregavam o símbolo de Nammamane, a gota azul, no meio do peito e eram absurdamente resistentes também, aquela borracha esticava infinitamente e sempre voltava ao lugar, além de serem aerodinâmicas e terem a superfície tão lisa quanto sabão.

- Tudo bem, e agora, o que vai vir?

A pergunta do Professor Umbrella foi respondida pelo silêncio e pela monotonia que veio logo em seguida. Nada aconteceu durante um longo e tedioso tempo em que o grupo se deixou hipnotizar pelo novo documentário exibido no holograma em forma de vírgula. Dessa vez nada sobre a vida sexual das Prani ou a força magnética que mantinha os blocos de pedra flutuando entre as nuvens, agora era algo novo: dragões marinhos enormes, réplicas gigantescas daquelas criaturas pitorescas que habitavam a costa sulista australiana residiam naquele planeta, com a aparência não muito diferente da dos seus pequenos primos terrestres, se reproduzindo aos montes entre as algas azuis da floresta que cobria quase 90% do planeta. Ali eles eram chamados de Ganya e mediam tanto quanto um verdadeiro dragão marinho deveria medir.

◊◊◊

Nós éramos muitas. Todas fêmeas. Não sabíamos como havíamos surgido ou como chegamos àquele tamanho, mas tínhamos consciência da nossa existência e do laço que havia entre cada uma de nós. A maior de nós tinha mais de cem quilômetros de comprimento, as ondulações vagarosas e delicadas do seu corpo que a impulsionavam para frente faziam com que sua passagem através da floresta de algas fosse longa e duradoura, devido ao seu tamanho colossal. Vivíamos em paz, tudo o que precisávamos para viver estava ali; as algas que cobriam o planeta inteiro de uma ponta a outra.

Estas quando morriam e subiam à superfície aos montes eram torradas pelos nossos sóis e se tornavam muito mais atrativas e deliciosas para nós. Íamos a superfície disputar as ilhotas de algas saborosas que flutuavam ao sabor das marés, só não íamos aos pólos onde a água era rasa e a superfície congelada. Encalharíamos e morreríamos em pouco tempo ao cair nesta armadilha natural.

Assim vivíamos em paz, naquela época não havia contagem de tempo, de modo que não existia o agora, o depois, o amanhã ou o ontem. Nunca conferimos a nossa idade e nem medíamos o passar das eras, a única preocupação era o alimento... O alimento que nos fez entrar em guerra umas com as outras. Nunca precisamos do elemento masculino para nos reproduzir, gerávamos uma vida nova a nosso bel-prazer, mas isto só acontecia uma única vez. Cada uma de nós só poderia dar origem a um único indivíduo novo, separando-se da metade final das nossas longas caudas.

Este método de reprodução acabou superpopulando nosso planeta, que sequer possuía um nome ainda. Logo o alimento foi ficando escasso, e as algas se acumularam e prosperaram nos pólos aonde jamais íamos. O que aconteceu a seguir você já deve imaginar. Mortes em massa, lutas violentas que tornavam as profundas águas turvas por muito tempo, provocando maremotos e ondas gigantescas nas superfícies, tendo sempre um desfecho trágico para uma de nossas irmãs. Ou para duas.

Logo nos tornamos pontinhos solitários em nossos mares infinitos, temendo umas às outras, evitando o contato, procurando qualquer broto de alga que pudesse nos alimentar. E então aconteceu.

Eu dei origem ao primeiro Nammajana, e depois deles, milhares de outros vieram.

Eles já existiam há muito tempo dentro dos nós, não como parasitas, mas como parte da nossa flora intestinal, limpando a parede dos nossos sete grandes estômagos, se alimentando das impurezas que ingeríamos junto com as algas e nos mantendo saudáveis. Eu os regurgitei porque senti sua presença dentro de mim, eles falavam comigo como minhas irmãs falavam, através do pulsar gerado pelas suas existências. Eu não podia deixá-los ali. Pus todos para fora, e eles rastejaram sobre meu flanco e fizeram das cavidades entre as minhas escamas o seu lar. Se alimentando das impurezas que impregnavam meu lombo enquanto eu os protegia dos predadores que haviam então surgido da lama abissal e já ocupavam o fundo do oceano ostentando uma fome voraz.

Adoraram-me então como sua deusa e deram a mim o posto de criadora do mundo. Minhas irmãs ainda vivas acompanharam tudo de longe, e aqueles que viviam dentro delas também sentiram a mudança. Eles vieram para fora naturalmente sem que elas os cuspissem, mas estes não eram tão inteligentes quanto os meus, eles eram rústicos, primitivos, violentos, competitivos e nada pacíficos. Suas disputas por território acabavam matando suas criadoras, minhas irmãs. Somos organismos frágeis apesar de gigantescos, e precisamos de equilíbrio e paz para sobreviver, com o estresse das batalhas constantes em suas escamas, minhas irmãs morreram um a uma até que me tornei a única exemplar viva da nossa espécie.

Vi-me rodeada por uma nova floresta de algas que havia crescido repentinamente e tomado metade do globo, agora transbordando de vida, novas espécies haviam surgido e povoado recifes inteiros. Aqueles que habitavam os lombos de minhas irmãs migraram para a lama profunda e lá habitam até os dias de hoje, porque eles se recusaram a fazer parte da nova civilização que o Arquiduque Paguru pretendia criar aqui neste planeta.

Ele veio do espaço acompanhado por um cortejo infinito de naves, trazendo consigo seus soldados Sem Rosto que podiam mudar de forma quando tivessem vontade. Não demorou para que fizesse contato com o povo pacífico que vivia entre as minhas escamas e implantasse seus ideais nas mentes liberais e compreensivas daqueles que ele batizou de Nammajana. Aib’Paguru trouxe sua língua, seus costumes e suas leis para o nosso vasto oceano. Até então eu ainda era a deusa e o próprio Arquiduque exigia que me tratassem sob a alcunha de Mãe Dirgha, a Original. Mas isto só custou o tempo que meu povo levou para descer das minhas costas. Desceram porque engolia os mortos e os consumia em respeito às suas famílias, para que eles se tornassem parte de mim e não morressem definitivamente, disseram que eu também devorava os vivos cruelmente, Nelesive, mentira. Até então essa palavra não existia entre nós.

Quando dei por mim, os estava servindo de protetora, guardando os arredores de Muttu já erguida e espantando as feras das florestas que teimam em se aproximar das construções peroladas erguidas neste mineral do qual nosso solo é rico. Minha sombra sempre pode ser vista vagando no azulado horizonte distante, numa melancolia eterna que se materializa no meu canto. Um canto que poucos podem ouvir.

Um canto que você ouviu, Cavaleiro. Um canto que você ouviu, Christopher. Christopher Umbrella.

- Ela estava falando com você, não estava? – a voz de Hikikomori o trouxe de volta de seus sonhos. Ele estava tão zonzo que o mundo a sua volta diluía em tons marinhos e voltava a ser concreto numa velocidade nauseante.

- Quem estava...?

- A serpente, Dirgha. Ela estava falando com você enquanto dormia. Eu ouvi os pensamentos dela através dos seus. – Hikikomori estava parada em pé ao seu lado lhe velando mais uma vez, num dejàvu de algo que realmente já havia acontecido, em outro lugar, em outra época.

- Do que você está falando? – ele levava às mãos à cabeça e piscava constantemente tentando se livrar da tontura. Nunca se sentira tão cansado na vida. O ambiente ao redor estava imitando a noite, a enorme fachada de vidro do apartamento estava completamente vedada e a luz do lugar havia sido reduzida a um ponto de semi-escuridão tranquila e aconchegante.

- Agora sei o que era aquele pulsar incessante, eram ondas cerebrais emitidas pela deusa-serpente. Ela estava tentando fazer contato esse tempo inteiro, mas parece que só a sua mente é capaz de captá-la. Você está vibrando na mesma sintonia que ela! – Hikikomori agachou-se ao lado, pegou a mão do Professor delicadamente retirando-a da sua testa e segurando-a entre as suas mãos. Os olhos dela estavam brilhantes, ela estava maravilhada por ter encontrado uma criatura tão fascinante quanto Mãe Dirgha, e mais ainda por saber que o Cavaleiro de Ouro possuía uma conexão com ela. – é incrível...

- Vocês precisam sair daqui – a voz eletrônica de Rajakumari invadiu seus ouvidos alto demais. A pequena Nammajana havia se materializado em cima do balcão iluminada pela luz azul fantasmagórica que vinha de cima. Aqueles que dormiam sobre os pufes do gigantesco estofado circular acordaram-se sobressaltados com o susto, a criaturinha estava sendo projetada por um holograma. – imediatamente!

Continua...









quinta-feira, 19 de abril de 2012

Nōvina hāḍu

E vem a dor
A dor de saber que um dia ao acordar
Não encontrarei mais seus olhos
A me velar

A dor de saber que um dia
O lugar ao meu lado estará vazio
É o curso que segue este rio
Sinto a dor vindoura

A dor do futuro
A dor de um mundo tão duro
Sem estas mãos macias para torná-lo
Suportável


Insuportável será a dor
De não mais sentir o seu viver
Do apagar da sua existência
Do começo de uma penitência

A dor de uma vida sem cor
Sem amor, sem calor
O começo de uma película
De terror

Mãe, por favor,
Faça-se eterna como a lua
Mas que pena que até ela
Um dia deixará a órbita da terra.


~


Louie Mimieux

PARTE TREZE: NAMMAMANE!


A superfície azul intocada daquele mundo distante descansava em silêncio absoluto no momento em que uma estrela brilhou à luz do dia, quase ofuscando os fracos raios de um sol longínquo e sereno. Tudo ali emanava serenidade quando o enorme objeto de metal veio do espaço, rodopiando, costurando entre as nuvens e se chocando contra as ilhotas flutuantes desembestado, espalhando nuvens de poeira e pedra em todas as direções, destruindo a ordem estabelecida pela natureza há milênios.

As bestas aladas com seus seis braços interligados por membranas semitransparentes descansavam tranquilas naquele dia em seus ninhos de alga, empoleiradas em picos de rocha flutuante, deliciando-se com a brisa, inalando o nitrogênio das nuvens tão necessário para viver. Era por isso que elas viviam lá, nos ares, nas ilhotas flutuantes que cobriam grande parte daquele planeta em colossais agrupamentos separados por milhas de céu aberto. Elas escancararam suas bocarras serrilhadas e puseram-se a grasnar apavoradas quando a coisa desceu do espaço a toda velocidade, algumas delas não ficaram para ver: abriram os braços e se jogaram nas fortes correntes de ar, planando para longe enquanto blocos de pedra inteiros eram destruídos um a um pelo rodopio desenfreado do monumento de metal que descia das estrelas.

Alguns machos da espécie ainda tentaram defender suas casas, atirando-se contra o casco da nave, chifrando-a e grasnando furiosamente. Outros foram esmagados sem dó nem piedade pelo impacto da proa giratória contra os blocos de pedra onde descansavam. De cabeças achatadas e pequenos olhinhos amarelos apertados, as bestas alada respiraram aliviadas quando o monstro de ferro atravessou o campo magnético das rochas flutuantes entre as nuvens e por fim se chocou contra o oceano, levantando um tsunami de metros infindáveis de altura. Aquilo teria dizimado cidades costeiras inteiras, caso ao menos houvesse terra firme naquele novo planeta.



◊◊◊




Foi um belo despertar, um belo e agradável despertar. Os outros já estavam de pé, é claro, tão encantados quanto ele com o que havia ao redor. A sala de controle da nave era um perfeito simulador da realidade exterior em três dimensões, e o que os cristais refratores das paredes exibiam agora era uma paisagem incrível, uma floresta de algas marinhas azuis gigantes ondulando sem parar enquanto seres semelhantes a lontras alaranjadas listradas de amarelo-pus espiralavam ao redor das faixas ondulantes. De repente, algo mudou o comportamento das criaturas e elas, assustadas, mudaram de cor abruptamente, tornando-se azuis escuras salpicadas de losangos anil, exibindo dentinhos brilhantes para uma criatura enorme que surgiu das sombras, um inseto aquático semelhante a uma lacraia terrestre dona de uma espessa couraça vermelha. O holograma realista atravessou o corpo do Professor Umbrella enquanto ele se levantava do chão.

- Onde...

- Constelação de Câncer – Augusta apressou-se a responder. Seus olhos de bola de gude estavam mais esbugalhados do que o normal. – Hikikomori disse.

- E onde ela está?

- Ela foi lá fora. – respondeu Donnick, brincando com o holograma das algas azuis, atravessando sua mão de lá para cá entre elas.

- Lá fora?! Você quer dizer... – ele engoliu em seco.

- Não seja bobo, ela foi à torre de controle um, verificar alguma coisa. – Pietro também estava tão maravilhado quanto os outros, passeando na sala holográfica a passos lentos e largos.

- Mas ela disse... Ela disse que não haviam planetas nessa área!

- Pelo visto o mapa de navegação estelar estava um pouco desatualizado desde os tempos de Azura.

O nome da princesa fez o coração de Chris palpitar e seu rosto corar. Todo o sangue subiu para as bochechas. A princesa. A cada planeta ela se tornava mais real, mais viva em uma memória que ele nunca teve, isso era normal?

Um feixe de luz circular surgiu no centro da câmara trazendo a figura alta e esguia de Hikikomoride baixo, elevando-a ao mesmo plano de seus companheiros de viagem.

- Estamos encalhados – disse a Sybila, tensa. – não temos como sair daqui, estamos sem combustível.

- O quê?! – exclamou Fábia apavorada – estamos presos no fundo de um oceano alienígena para sempre?! – seus olhos começaram a se encher de lágrimas. Pietro a puxou para um abraço imediatamente antes que ela começasse a berrar, sua expressão um tanto quanto indiferente e monótona perante a situação: já havia se acostumado. Durante os nove meses em que estiveram cruzando o espaço Fábia caíra no choro pelo menos umas vinte vezes ao dia.

- Acalmem-se. Pode haver civilização neste planeta, não temos certeza – Hikikomori tentava acalmá-los assumindo uma postura tranquila e confiante – eles podem ser evoluídos o bastante para explorarem combustível orgânico ou vegetal.

- Ou podem ser macacos selvagens com guelras! – exclamou Augusta cruzando os braços.

- Ora vamos, vocês tem de ter fé!

- Fé? Você está louca? Olhe para nós! Encalhados num planeta que sequer está no mapa! – Ray Ann foi atravessada ao meio por algo semelhante a uma enguia com milhares de pares de perninhas atrofiadas.

Algo se chocou contra o casco da nave pelo lado de fora, o impacto os fez oscilara nos joelhos, Fábia foi de testa ao chão e berrou.

- Mas o que foi isso agora?! – fez uma Augusta nervosa olhando ao redor, procurando a origem do tremor. Para medo geral, todos os animais que brincavam nas algas ao redor haviam desaparecido, deixando em seu lugar um vazio tenebroso de ondulantes e obscuras folhas longas com centenas de metros de altura. A luz do sol distante atravessava de modo sombrio por entre as faixas tão unidas das algas. A paisagem estava levemente torta, inclinada pelo que havia empurrado a nave para o lado.

- Fábia, por favor, eu acho que já chega não? – fez um Pietro irritadiço em resposta aos puxões que a garota dava em sua jaqueta. – Fábia, por favor...

- Ge... gente... – o dedinho curto da garota estava em riste apontando para cima. Em lugar das algas agora havia um enorme olho amarelado de pupila losangular os observando curiosamente. Era tão grande que ocupava quase toda a circunferência do teto transparente.

- Ai, Deus.

Solavancos violentos começaram a sacudir a nave, como se uma criança curiosa estivesse balançando a latinha da surpresa pelo lado de fora, tentando descobrir o que havia dentro a todo custo. O monstruoso globo ocular amarelo que outrora os espionava tenebrosamente do alto havia sumido, e agora tudo era sombras: o que quer que os estivesse sacudindo feito sardinha em lata, estava exatamente em cima da nave e não descansaria enquanto não partisse o navio espacial ao meio.

Obviamente a coisa que os estava agredindo pelo lado de fora era muito maior do que a própria nave, e tão forte que os lançava facilmente de um lado para o outro como bonecos velhos de pano, não demorou muito para que a energia começasse a falhar: o cristal alimentador na câmara das máquinas foi sacado para fora com a última e mais poderosa sacudida. Os cativos sequer tinham forças para gritar agora, apenas se arrastar pelo chão ao sabor dos seus hematomas cortando o ar com gemidos dolorosos.

A emulação do ambiente externo era claríssima: mostrava um ambiente fechado, como o interior de um saco ou uma bolsa de couro amarelada, feita de algo tão fino que as sombras do mundo lá fora se esgueiravam para dentro dela como assombrações produzidas por um teatro de silhuetas. Vultos negros de coisas indefinidas e perturbadoras estendiam-se e brincavam por entre tênues linhas que desenhavam um mapa na superfície elástica do bolsão gigantesco de couro em que eles se encontravam. A calmaria não duraria muito e isso ficava mais claro cada vez que os solavancos voltavam.

- O que está acontecendo?! – Pietro foi o único que conseguiu produzir algum som, exclamar alguma coisa, mesmo numa voz entrecortada e falha. Seus cabelos ondulados que haviam crescido tanto ao longo destes meses intermináveis estavam mais emaranhados que nunca, e ele tentava tirá-los do rosto a todo custo. Hikikomori era a única que estava de pé naquele momento, olhando para cima, para a cúpula de vidro do alto da câmara de controle. Tentava decifrar o que era aquele céu marrom bolorento dividido ao meio por protuberâncias de aparência óssea que estendidas sobre eles traçavam uma linha perfeita ao longo do que parecia ser um túnel escuro colossal desaparecendo aos poucos na escuridão às costas do grupo.

- Estamos no papo de um animal! – exclamou ela o mais alto que pode, tentando manter a postura de Sybila, sem sucesso, sua voz sonora estava carregada de desespero. Ela fechou os olhos – um animal enorme! Como a serpente marinha mitológica do seu mundo! Existem vários espécimes semelhantes a elas em outros planetas, MAS ESTA É A MAIOR QUE JÁ VI! CAPAZ DE ENGOLIR O CRUZEIRO ESPACIAL DELTA!

Após a descoberta feita pela Sybila, a energia foi cortada definitivamente: o emulador do ambiente exterior foi perdendo força aos poucos, as imagens incompreensíveis do mundo lá fora foram ficando cada vez mais opacas, indistintas, transparentes até que não havia mais nada além de uma escuridão maciça. O tempo em que o grupo passou olhando para o vazio das trevas, procurando os contornos dos corpos dos companheiros, algum sinal de vida ou de luz, estava parecendo durar demais. Logo aquela situação se tornou insuportável, como a sala de espera para o inferno, jazendo na apreensão da ignorância sem saber o que viria após isto. Alguns andavam de um lado para o outro olhando para cima, enquanto outros apenas permaneciam sentados esperando por algo que não viria.

Sem o cristal alimentador da nave não havia força, logo a plataforma que ficava no centro do salão circular não poderia sequer abrir. Estava completamente lacrada, de modo que não havia saída alguma daquele enclausuro forçado. A pergunta que pairava, jamais verbalizava: quanto tempo mais o ar respirável duraria ali dentro?

- Ok. Então estamos presos dentro do papo de uma espécie de enguia colossal no fundo de um oceano alienígena e sem energia. – Augusta falou tudo de um fôlego só, levou a mão à testa e jogou seus cabelos curtinhos para trás mais uma vez, havia cortado suas longas madeixas há não muito tempo. – como proceder numa situação como esta após passar nove meses enlouquecedores dentro de um navio espacial com colegas de curso que nem conhecia direito até um dia desses, meu professor e uma alienígena de dois metros de altura?

- Você esqueceu a parte em que nós lutamos numa arena contra monstros espaciais e depois derrotamos uma coisa com tentáculos na cabeça – lembrou Pietro, sempre divertido. Ray Ann desenhava círculos no chão, camuflada no escuro com as costas apoiadas em Fábia (que aliás já havia recuperado a cor negra natural de seus cabelos há algum tempo, as pontas lilases já lhe batiam pelos flancos), a garota dormia profundamente. Como ela conseguia dormir naquela situação?

Augusta bufou, pôs-se de pé e se espreguiçou. Já estava exausta e nem havia feito esforço, a situação em si a cansara aos extremos. Donnick Hills, que agora havia adotado o simples apelido de “Don” estava escorado de braços cruzados num canto, de olhos fechados, imaginando o tempo que levaria para que a enguia os engolisse de verdade e a nave fosse derretida em ácido estomacal. Imaginava também a possibilidade de estarem sendo levados como sobremesa para os filhotes da criatura. Arrepiavam-lhe todos os pelos do corpo tentar criar em sua mente a imagem do monstro que os engolira: a nave em si era um colosso com 2 km de comprimento e meio quilômetro de largura, seu interior era praticamente infinito graças à tecnologia de compactação de espaço. O que seria tão grande e largo capaz de engoli-la por completo? Era aterrorizante pensar no tipo de criatura que os havia sequestrado.

Sua linha de pensamento foi cortada bruscamente pelo acendimento repentino (e violento) das luzes. Mãos e braços voaram em direção aos rostos desprotegidos para protegerem as vistas agredidas após tanto tempo de escuridão.

Um holograma em forma de vírgula horizontal – que mais lembrava uma gota muito bem desenhada – surgiu acima das suas cabeças, e aos poucos a luz intensa foi rareando. O sistema havia sido invadido e aquele era o brasão dos invasores. Traços de luz confusos iniciaram um balé intrincado, estavam formando símbolos tão rápido que seus olhos não podiam, de maneira alguma, acompanhar o movimento. Como um laser agredindo a superfície, a saudação se formou:




ಸುದ್ದಿಗಳು ಭೇಟಿ




- Ótimo, tudo o que precisávamos era outra língua alienígena incompreensível como o japonês da Fábia! – Augusta estava incrivelmente mal humorada àquela “manhã” (levando em conta o horário no tablet da garota), talvez a situação estivesse servindo de válvula de escape para todo o estresse acumulado ao longo daqueles meses intermináveis sem sombra de pistas sobre para onde iriam e o que fariam dali por diante.

Fábia acordou sobressaltada ao ouvir aquela blasfêmia, cortando um ronco ao meio!

- EPA! – berrou a garota limpando a baba do canto da boca e levantando-se bruscamente do chão, derrubando uma Ray desavisada. – aquilo era COREANO para sua informação!

- Ora porra, que se dane! Pra mim é tudo a mesma coisa!

- Como é que é?!

- Garotas, por favor, vamos nos acalmar – Christopher estava falando (surpreendentemente, soando como um adulto responsável) pela primeira vez. Meses digerindo aquela situação e encarando os fatos haviam o transformado tanto, aquele professor atrapalhado e impressionável havia desaparecido quase por completo, ele e Don desenvolveram muitas semelhanças como o cenho sempre franzido e o constante silêncio. Foi até um espanto sua voz irromper da semi-escuridão daquela maneira. A foice que ele carregava para cima e para baixo o tempo inteiro estava radiante como nunca. Desde que havia adquirido aquele brilho ele não a havia largado.

Rapidamente aquela situação mundana foi substituída por atenção redobrada e espanto com a voz subaquática que invadiu seus ouvidos, emanando do emblema de luz que havia surgido acima das suas cabeças. Se uma sereia resolvesse falar debaixo d’água, na certa sairia algo assim, como aquela voz, borbulhante, excitante, instigante e ao mesmo tempo pavoroso, sonoro e melancólico.

Com base nos sons emitidos pelos órgãos de comunicação sonora de seus organismos, captamos seu idioma e faremos uma livre-tradução da mensagem de boas-vindas ao nosso planeta!”
Fez a voz feminina. O Apocalipse Club se entreolhou confuso. Hikikomori era a única que permanecia em estado de alerta, mergulhada em desconfiança.



Iniciou-se então a reprodução de um vídeo, usando a vírgula holográfica como tela. Nele, uma horripilante criatura metálica (talvez um robô) os observava ameaçadoramente.

Observava mesmo? Ou apenas estava ali retorcida em posição fetal, encaixado perfeitamente no interior de um tipo de concha perolada em forma de vírgula, rodeada de objetos marinhos estranhos que denotavam grandeza e poder? Não era nada semelhante a qualquer coisa já vista pelo olho humano, talvez a única referência que aquele corpo horrendo fazia a algo vivente nos oceanos terrestres era a cabeça, (ou algum tipo de órgão que provavelmente deveria ser a cabeça) esta lembrava e muito os cefalópodes, em especial as lulas. Três pontos luminosos vermelhos na lateral da “cabeça” do robô (talvez olhos?) piscavam enquanto a coisa verbalizava.

-
Bem vindos à Nammamane, nossa concha universal. Aqui estamos protegidos de todos os perigos que o universo exterior pode nos oferecer – a imagem foi imediatamente substituída por algo espetacular: o planeta visto do espaço, orbitando uma estrela relativamente nova, pouco mais velha que o nosso sol, dividindo o sistema com outros quatro planetas. Estes próximos demais da sua estrela-mãe para sustentar a vida – nosso planeta mantém-se oculto dos olhos cobiçosos de nossos vizinhos há muitos sahasrāru, graças a avançada tecnologia trazida ao nosso lar por Aib’Paguru, o Sanrakṣaka.
– a imagem mudou mais uma vez, aproximando-se do enorme planeta azul aos poucos, revelando pequenos satélites enviando sinais uns aos outros, formando uma teia ao redor do mundo e criando a ilusão de um enorme gigante gasoso morto.

Hikikomori que já estava em posição de defesa desde que a voz robótica iniciou seu discurso eletrônico retesou seus músculos. Os outros a imitaram por instinto, já ouviram aquele nome antes, sabiam o que significava, quem ele representava. Mais um Arquiduque a ser derrotado, um perigo a ser transposto, mais um obstáculo imprevisível. O que estaria esperando por eles agora?

-
Aib’Paguru representou um período de mudanças em nosso vasto planeta, que equivale a três planetas iguais ao seu. Ele nos trouxe a medicina, a filosofia, e em especial as artes manuais, que nos ajudaram a erguer enormes centros populacionais em pouquíssimo tempo. Com a ajuda dele, colonizamos os pontos principais do nosso profundo oceano e expulsamos os rebeldes para as fissuras abissais, onde aqueles que se recusaram a aderir ao progresso repousam pensando em seus atos
. – a imagem mostrada no vídeo mudava conforme a narração, mostrando exatamente tudo o que ele dizia.

Eles viram o planeta Terra ser multiplicado por três e se unir num mundo enorme e novo coberto por um enorme oceano, mostrou a chegada de Aib’Paguru e seu exército em enormes naves perfeitamente brancas em forma de concha de marisco, e logo após vieram as etapas de construção das cidades. Prédios sendo erguidos como bonecos de neve: esferas brancas sobrepostas e equilibradas se perdendo entre luas crescentes e cogumelos gigantescos disputando espaço com pirâmides de base circular e cilindros ovais. Os veículos, réplicas das conchas brancas onde Aib’Paguru chegou, passeavam livremente por entre as construções, planando acima dos prédios.

E aquelas criaturas. Aquelas criaturas horríveis por toda parte. Aparentemente eles eram o povo habitante daquele planeta, a civilização daquele lugar. Monstros horripilantes pouco maiores que Hikikomori, donos de três pares de longas e finas pernas como as dos insetos, mas que de alguma forma os faziam parecer um tipo mutante de girafa. O terceiro par de membros, os superiores, terminava em mãos com quatro longos dedos que se agrupavam em pares opositores. O torso, o tronco das criaturas era bem simples, quase um busto humano que terminava num pequeno resquício de algo que deve ter sido uma cauda no passado distante daquele povo. A cabeça era a parte mais assustadora: três pares de olhos que variavam de tons dourados a vermelhos intensos, um de cada lado da cabeça em forma de berinjela. A boca ficava oculta por tentáculos pequeninos com pouco mais de 10 centímetros, e a cor da pele variava do macho para a fêmea: as “mulheres” eram mais claras e os “homens” mais escuros, ambos rosados. E as fêmeas, estas possuíam uma espécie de “barbatana” lateral nas cabeças que ondulavam sem parar o tempo inteiro, as crianças também a ostentavam.

- Mas que diabos eles são?! – exclamou Pietro enojado. Fábia vomitou em seu pé.

-
Mas o principal feito de nosso Sanrakṣaka foi domesticar Mãe Dirgha, a ancestral enguia que cultuávamos como deusa no passado distante, e que nos mantinha em um eterno ciclo de comensalismo, devorando aqueles que se recusavam a comer da sujeira que brotava em sua couraça.

O grupo estremeceu ao somo de um gorgolejo profundo que ecoou através das câmaras mais obscuras do Cruzeiro Espacial Delta. Mãe Dirgha estava falando, e não estava nada satisfeita com a situação a qual tinha sido imposta. Ela era agora o burro de carga e o cão de guarda de uma nação inteira, como mostrava o vídeo. Ao verem do que se tratava o monstro que os carregava no papo, náuseas e vômito foram generalizados, fora à parte os gritos e gemidos de pavor: a enguia possuía praticamente 50 km de comprimento, desafiando todas as leis da natureza com relação a seres colossais.

Não havia nada no universo comparado àquela criatura, nenhum mundo sustentaria a existência de uma criatura tão grande quanto aquela! Seu próprio respirar era um absurdo! Do que se alimentava aquele monstro horrendo? Como um corpo tão grande se locomovia? De onde ele tirava a energia necessária para isto? E o mais peculiar ainda estava por vir, o choque foi tremendo ao perceberem que a enorme cabeça da serpente marinha era uma réplica colossal da cabeça daquelas criaturas que antes a adoravam: alguma coisa cefalópode repleta de tentáculos cobrindo a boca e seis olhos grotescos, três de cada lado da cabeça.

-
Hoje em dia, Mãe Dirgha, assim como nós, é serva de Aib’Paguru, nosso pacificador, e serve a ele com todo prazer seguindo nosso exemplo. – a espaçonave chacoalhou. Algo lhes dizia que Mãe Dirgha não estava tão satisfeita assim em servir o Arquiduque.
– preparem-se, visitantes, pois vocês estão prestes a conhecê-lo! Saúdem nosso soberano, Aib’Paguru!

As luzes se apagaram e tudo se banhou em trevas, o movimento da enguia se locomovendo cessou.

- E agora? – chiou Fábia, baixinho.

Foram então surpreendidos por um raio de luz azulado intenso vindo de cima, atravessando a transparência da cúpula e inundando o salão numa onda luminosa poderosa, assemelhava-se ao nascimento de uma estrela os engolindo aos poucos até não restar nada além de luz, e no cessar do brilho, algo enorme surgiu exatamente no centro da câmara circular: a metade flutuante de uma ostra perfeitamente polida, branca e perolada, a luz fazia círculos e desenhava linhas macias em sua superfície. Na metade côncava perfeitamente encaixada numa espécie de “almofada”, a criatura que vos falava a pouco no holograma, toda feita de metal, estava retorcida em posição fetal. Só então se pode perceber que ela era uma versão metálica, robótica dos seres horrendos que viviam em sociedade no fundo do oceano daquele planeta. As respirações no ambiente estavam totalmente suspensas.

- Porque temem a minha presença, visitantes? – disse uma voz pacífica, ecoando de dentro da criatura de metal. Seus três olhos vermelhos piscavam enquanto emitia as ondas sonoras – eu não represento perigo, nada neste lugar representa perigo para vocês.

Para espanto geral, a coisa começou a se mover. Com um ruído pneumático, seu braço que terminava em pinça de caranguejo deslocou para fora do encaixe, como um brinquedo sendo retirado da embalagem. Seus três longos membros articulados repetiram o mesmo movimento e giraram procurando o apoio do chão, que serviria para alçá-lo para fora da ostra. Por último a cabeça de lula veio à tona também com seus ondulantes e pequeninos tentáculos de borracha. Em um instante que pareceu durar horas havia um monstro de metal do tamanho de um cavalo parado diante deles, apoiado em dois longos pares de perna enquanto pinças nervosas de crustáceo abriam e fechavam.

Fábia desmaiou e Ray correu em socorro da amiga.

- Entendo que para vocês a aparência deste corpo artificial pareça nociva, assim como a imagem dos seres que habitam este mundo lhes é assustadora... – a criatura dobrou-se em suas patas para nivelar-se à altura dos humanos, ficando pouco mais baixa que a Sybila – mas creiam em mim quando lhes digo que este não é mais um planeta selvagem desde a minha chegada, e que os receberemos como se fossem de casa.



◊◊◊




- Tudo bem, eles são os mais feiosos que nós já encontramos até agora, porém de todos os mais gentis – Augusta deu de ombros enquanto olhava através da janela, para além dos limites da infinita metrópole subaquática que agora os abrigava como hóspedes. Aquele lugar parecia imitar uma floresta de corais no formato irregular da maioria dos prédios, havia umas construções muito estranhas ali que não foram mostradas no vídeo de boas-vindas – eles nos ofereceram um apartamento gigantesco com ar fresco e respirável, oxigênio puro! Não tratariam o jantar tão bem assim... ou tratariam?

Augusta deu as costas para a paisagem pontilhada de ostras voadoras e voltou-se para os seus companheiros, esparramados na sala de estar gigantesca. O contraste entre eles e o lugar era imenso, de várias formas. Ele havia sido projetado para os habitantes do planeta, e não para humanos, mas de alguma forma tinha um quê indiano em sua decoração, em sua arquitetura interna. Todos descansavam em seus pufes brancos e azuis espalhados sobre uma espécie de “cama” redonda enorme de tecido sintético bem no meio da sala enfeitada por algas marinhas coloridas que ondulavam em tanques cilíndricos aqui e ali. As estampas e os bordados do “estofado” eram a parte mais bonita da decoração: mandalas e formas geométricas totalmente alienígenas.

- Eu estou tão confusa... – Hikikomori cochichava, alto demais para que suas reflexões fossem exclusivas. – este lugar... Estas criaturas... Nada faz sentido para mim. É uma civilização totalmente nova, emergente, eles acabaram de descobrir a tecnologia e assimilaram isso de uma forma tão coerente e sensata. Por que Aib’Paguru faria isso? Porque ele traria uma era de paz e prosperidade para um povo bárbaro que crescia e se multiplicava nas costas de um monstro marinho gigante? O que ele ganharia com isso? Ele sempre foi conhecido pelo temperamento estourado que ostentava. Sua fúria, sua ganância.

- Tem razão, ele não parece em nada com o que você vem nos relatando a respeito dele ao longo de todos esses meses – pronunciou-se Don, tão confuso quanto a Sybila às margens daquela situação suspeita. Talvez ele estivesse mais temeroso que a própria. – Um povo que se desenvolveu baseado numa utopia, que se isolou do resto do universo para preservar os recursos naturais do planeta...

- E tendo como patrono o mais improvável dos seres: o cruel colonizador de Azura. Ele e seu exército de androides metamorfos eram encarregados da conquista dos planetas em nome do Império! – Hikikomori estava prestes a explodir de tanta dúvida. Seus olhos estavam vidrados, o cenho franzido e o maxilar pronunciado, nunca a haviam visto tão perturbada antes. – Porque ele não escravizou esse povo e o vendeu como fez com o povo de Alado? Porque este lugar não está sob a jurisdição extrativista de Aib’Koletis?! Não faz sentido algum!

Fez-se silêncio por um curto período de tempo enquanto o enorme holograma em forma de gota reproduzia um documentário sobre o planeta na íntegra. Os únicos realmente interessados nele eram Pietro e Fábia, Ray Ann só parecia estar assistindo quando na verdade estava ponderando tanto quanto seus outros preocupados companheiros. De certo modo eles eram reféns de monstros marinhos racionais, não podiam sair dali de maneira alguma ou se afogariam imediatamente. O Cruzeiro Espacial Delta havia sido levado para sabe-se lá onde, e suas armas foram confiscadas graças à proibição do porte de objetos nocivos nos limites de Muttu, a metrópole-capital do planeta tão grande quanto três estados de São Paulo unidos.

- Nammamane... – Christopher levantou-se de seu pufe macio, desceu do enorme estofado redondo e caminhou até a janela, parando exatamente ao lado da Sybila que apoiava as duas mãos, nervosa, contra o vidro, mantendo a cabeça baixa e seus longos cabelos negros caindo em cascata. – é um belo nome não acha? Um belo nome para um belo planeta – Chris pôs a mão delicadamente sobre o ombro tenso de Hikikomori. Sim, ele estava tão preocupado quanto os outros, mas a magnitude do novo mundo que eles haviam acabado de descobri o entorpecia de tal maneira que a ameaça representada por Aib’Paguru já não significava perigo.

Enquanto eles observavam, ao longe, a sombra de Mãe Dirgha como uma faixa negra serpenteando no horizonte, o documentário traçava o padrão de comportamento sexual das bestas aladas que viviam entre as nuvens, ou “Prani” como eles as chamavam. Na superfície, poucos quilômetros acima das suas cabeças, estas mesmas Prani pescavam tranquilamente seu almoço, e o dia sequer estava na metade. Quantas horas tinha um dia naquele planeta subaquático? Quantas horas possuía um dia em Nammamane?

- Que dizer “Nosso Lar” – uma voz feminina ecoou tão próxima que todos foram pegos de surpresa. Até mesmo a preocupada Hikikomori foi expulsa de seus pensamentos à vassouradas perante o som agudo da voz infantil. Havia uma daquelas criaturas horrendas parada do outro lado do vidro, exatamente do outro lado da janela, rosada e asquerosa, planando diante do rosto de um surpreso Christopher com o auxílio de uma espécie de turbina como mochila a jato presa ao flanco. – me chamo Rajakumari Paguru, prazer em conhecê-los, visitantes!

Continua...




































Belo comeback!

domingo, 15 de abril de 2012

Feliz Dia do Desenhista!


Não sou lá aquilo que possa se chamar de "desenhista", meus traços são amadores e rústicos, mesmo assim eu me arrisco vez ou outra em alguma coisinha aqui e ali. Já me considerei desenhista quando era mais novinho, e depois que vi o que é um desenhista de verdade (a.k.a Igor Conrado) percebi que esse tempo inteiro eu só brinquei de desenhar G_G que aliás é uma coisa que eu adoro com todas as forças do meu coração, apesar de ser algo que faço muito raramente hoje em dia ^^.


Aí em cima vocês veem uma obra sem nome, de minha autoria. Só mais um esboço sem noção de alguma coisa que vive em um dos milhares de mundos que criei, é um dos meus favoritos e realmente não sei porque ainda não tinha postado no blog /oh. Parabéns a todos vocês, verdadeiros desenhistas que amam o que fazem. Vocês talentosos por natureza - ou que desenvolveram o talento com o tempo - merecem, por tornarem nosso mundo mais bonito!



xoxo, Antonio




terça-feira, 10 de abril de 2012


Olha só quem resolveu homenagear o blog também!


Feliz semana de aniversário, The Fatcat House!

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Feliz Aniversário, The Fatcat House!

Hey, Pessoal!



Domingo passado, dia 8 de Abril (PÁSCOA HEHEHE) o blog completou 4 aninhox de idade ♡ é um bebê ainda, mas já passou de 20 mil visitas e carrega nas costas mais de 500 postagens. Ano passado nós comemoramos essa data com um easteregg especial (que ainda está disponível numa página secreta com o link oculto no rodapé) bem romântico e cheio de magia, do jeito que a gente gosta. Esse ano não vai ser diferente! Trouxe a vocês um textinho bem romântico que faz parte do universo de Space Oddity, quase um Spin-Off. Ele conta o que aconteceu ao povo de Alado depois de deixarem as minas do planetinha governado por Aib'Koletis. Espero que gostem, e feliz aniversário para nós :)

♥ ♥ ♥

Amor Sem Fim


Nossos ancestrais nos contavam as histórias mais antigas, de antes do Grande Retorno, nos contavam de cavernas úmidas e profundas, onde a escuridão era trespassada pelos ávidos raios multicoloridos de um sol que nunca foi visto pelos olhos do nosso povo durante o tempo em que permaneceram ali embaixo. Como a luz dele chegava até eles nunca foi mistério: tudo era feito de estrelas, a luz atravessava seus pedacinhos minúsculos incrustados em toda parte, no chão, nas paredes, no teto, e se desfazia em milhares de faixas e espectros até então desconhecidos aos nossos olhos. Os cabelos prateados das nossas mães e irmãs se tornavam vislumbres divinos inigualáveis sob aquela iluminação cálida, as gemas violetas, azuladas e prateadas dos nossos globos oculares misturavam-se às preciosidades que brotavam debaixo de nossos pés, acima das nossas cabeças e em toda a parte.

Era um mundo belo, porém obscuro, sombrio, opressivo. Vivíamos sob a vista grossa dos Sem Rosto, que nos mantinham em rédeas curtas constantemente. E nossas asas, estas belas asas que hoje em dia são livres para cruzar os céus das nossas mais de 600 luas, viviam amordaçadas, atrofiando aos poucos, impedidas constantemente de se movimentarem, esticarem e levantarem voo. Presas em amarras feitas sob medida para cada um de nós, ferindo nossa carne frágil e penetrando nossa pele delicada ciclo após ciclo. Os períodos de escuridão eram os mais dolorosos, quando o trabalho se tornava mais dificultoso e muito mais severo.

Eles nos forçavam a operar suas máquinas e escavar aquele solo duro, compactado pelos milhares de ciclos intermináveis de vida e morte pelos quais aquele planeta passou. Os que não se adaptaram, morreram, e os que não morreram, sofreram até a última pulsação de vida em seus corpos. Mesmo assim encontramos forças para amar, para formar famílias, para darmos as mãos e nos mantermos unidos enquanto raça. Escavamos covas profundas e nelas montamos ninhos aconchegantes aos quais tivemos o luxo de chamar de “lar”, os interligamos por uma rede de pequenos túneis pelos quais só o nosso povo poderia transitar. Ali sobrevivemos nos alimentando dos pequenos habitantes da escuridão e bebendo do gelado rio que corria nas profundezas.

Mas nem o conforto de um lar provisório nos protegeu da tirania de nossos carrascos, da crueldade de Nossa Soberana Koletis, a Mulher Sem Rosto, Senhora dos Sem Rosto com seus corpos líquidos que refletiam nossas faces como o metal polido. Havia uma criatura chamada Vigia, que mantinha sob custódia severa nossa Família Real. Príncipes, Reis e Rainhas pereciam em gaiolas dependurados numa câmara fria e escura sem direito a luz, geração após geração. E quando o último Príncipe Alado nasceu toda a árvore genealógica foi dizimada das raízes até os brotos infantes. Para não sofrer as consequências do destino de seus familiares, o último Rei Yeovah escapou à morte e se juntou ao seu povo que definhava na extração mineral das câmaras mais profundas, pretendendo começar a rebelião que nos libertaria... Mas ele estava muito velho para isso, e desde o princípio soube que não era o destinado a este grande feito.

Aquela a quem chamam SybilaAlethea surgiu em sonho lhe contando daqueles que viriam de cima, trazendo a ruína de Aib’Koletis. E eles realmente vieram, trazendo consigo o lendário Cavaleiro de Ouro – que àquela altura ainda não havia sequer despertado como restaurador do universo – e o nosso semelhante, aquele que faria a ponte entre o nosso mundo e o deles, compreendendo a nossa língua e sendo empático aos nossos costumes. A partir daquele momento, soubemos que as nossas vidas jamais seriam as mesmas.

Eles nos libertaram, eles derrotaram o Vigia e tiraram o Príncipe Alado de seu cárcere, de corpo e de alma. Extirparam o mal aniquilando a terrível Aib’Koletis e partiram, porque a verdadeira missão deles neste universo ainda estava por ser cumprida num lugar distante, num tempo distante. As asas cálidas do nosso amado príncipe, oprimidas através dos ciclos intermináveis, atrofiando nas suas amarras de couro bruto e mentiras enfim desabrocharam ao sabor da maturidade da alma, lançando suas plumas brancas sobre a superfície ressequida do planeta desértico.

Aquelas asas viris e poderosas nos guiaram de volta para nossa terra através das estrelas durante tempos intermináveis. Dez gerações completas de Alados se passaram enquanto navegávamos através do espaço profundo em nosso campo de força criado pelo poder da mente única do nosso povo. Todas as almas se uniam em uma única para gerá-lo e rasgar o vácuo do universo. Vivemos como nômades durante um período interminável que pareceu infinito aos olhos de muitos dos nossos, nos hospedando em planetas estranhos e luas selvagens, lutando para sobreviver e nos alimentar, nos adaptando e readaptando a cada novo lar e em seguida partindo rumo a nossa galáxia natal, numa viagem eterna que nunca terminava.

Foi o suficiente para que nossa descendência voltasse a crescer e atingir a altura natural, sem mais ter de se curvar ao teto baixo das cavernas. Da mesma maneira que seus músculos se desenvolveram como os dos primeiros da espécie, e aquelas pequenas e frágeis asas do memorável tempo da escravidão deram lugar a estas poderosas asas que vemos hoje cruzando nossos céus. Arrisco até mesmo a dizer: maiores, mais alvas, mais macias e mais fortes que as dos primeiros, aqueles que descendem dos deuses. Tornamo-nos o futuro, a evolução, a sucessão.

Quando enfim chegamos ao nosso sistema planetário original na galáxia natal, uma luz dourada nos mostrou o caminho. Sabíamos que era o sinal do Cavaleiro, ele não havia se esquecido de nós, e estava lutando sua própria batalha à distância, seu fulgor estava iluminando todo o universo de uma ponta a outra, e só ele foi capaz de nos mostrar a real localização de onde nosso povo havia sido retirado à força.

Os gigantes de vários braços não mais ameaçavam a nossa existência ali, haviam sido extintos, dizimados há muito pelos exércitos da Imperatriz Cruel. Assim, nos instalamos e repovoamos nossas luas natais, sem nunca aproximarmo-nos das colossais moradas onde viveram nossos antigos opressores, em respeito à bravura que demonstraram resistindo às investidas do Império até o último momento dando a vida pelo seu lar, pela sua paz. Limitamo-nos a orbitá-los e admirá-los de longe com profunda admiração.

Tivemos a sorte de o destino tê-los colocado no caminho do nosso sofrido povo, aqueles bravos guerreiros que auxiliaram na libertação do nosso povo...

- E como você sabe de tudo isso Baabr? – perguntou em sua vozinha estridente o primeiro jovem sentado à frente, chamando o ancião pelo equivalente a “avô” em sua língua alienígena. As asinhas felpudas do pequeno cupido sacudiam ansiosas enquanto seus olhinhos de um verde líquido brilhavam ávidos por mais, muito mais. – você fala como se tivesse estado lá! – o pequenino pôs-se de pé e esticou os braços o mais alto que pode, as garotinhas que estavam sentadas logo atrás soltaram risadinhas. Seus cabelos prateados ondularam delicadamente ao movimento de seus pescoços tão jovens e tão lânguidos. A monitora do grupo lançou um olhar penetrante de advertência ao pequenino, que enrubescido, voltou a sentar-se. Os risinhos então generalizaram.

O ancião sorriu, esticando seu rosto de papel enrugado em direções opostas, onde as marcas do tempo que desenhavam os mapas de uma história sem começo e sem fim se tornaram mais nítidas, mais poderosas e admiráveis. Suas grossas e cheias sobrancelhas brancas inspiravam poder e respeito.

- De certo modo eu estive lá, e você um dia vai ter estado lá também, pequeno Alado – ele repousou sua mão frágil e ossuda sobre os cabelos encaracolados cor de lavanda do pequeno garoto. O próximo Alado. Aquele que um dia seria o novo guia do seu povo, que assumiria o lugar que este Alado deixaria e que o outro lhe deixou como herança. Um legado de Alados sem fim.

Assumir o posto de Príncipe Alado, e consequentemente Rei Yeeovah, era assumir também memórias milenares que nunca se apagavam, e só pesavam em sabedoria e valor com o passar das eras e o virar dos éons. Mais de dez gerações de Alados já haviam se passado desde aquele que vivera aprisionado na gaiola durante um período de trevas interminável, mas nada até agora foi capaz de apagar as marcas profundas que o rosto daquela humana deixara na alma do primeiro Alado a conhecê-la. Os gestos dela ainda estavam frescos na memória como se ainda estivessem acontecendo, o som da voz dela ecoava pela mente de cada um dos Alados com tanta vivacidade geração após geração, que só o ato de relembrá-la tornava-a cada vez mais viva, mais forte.

Ray Ann nunca havia deixado seu Príncipe Alado de verdade. Ela estivera sempre ali, no subconsciente, marcada para toda a eternidade, passando a fazer parte do legado eternamente, num ciclo infinito de amor que começa no exato momento em que as memórias de um Yeovah atravessam para a alma de um Alado no momento do Toque, da transferência da Herança Real. Assim o amor jamais acaba, apenas se renova, recomeçando sem nunca acabar. Um ciclo de amor eterno. Transcendental.

Um ciclo de amor sem fim.
















Assim como meu amor pela escrita :')